quinta-feira, 30 de abril de 2015


NOUDAR



Por uma razão muito pessoal, nunca esqueço o aniversário do Encontro com os mestres construtores de Noudar, organizado pelo Cláudio Torres há 31 anos no Castelo de Noudar, em Barrancos, um verdadeiro "hapening" de práticas patrimoniais no que era (e continua a ser) de facto o Portugal profundo. É que quando estava para partir para o dia do encerramento, com os meus colegas e amigos Clementino Amaro e Carlos Jorge Ferreira (este já falecido entretanto), o meu filho David resolveu antecipar o nascimento e tive de, em boa hora, trocar Barrancos, pela sala de espera da maternidade do Hospital de Évora.
Infelizmente, o projecto lançado em 84 acabou por não ter pernas para andar. O isolamento do local, a distância em relação a Barrancos, já de si longe de tudo e, sobretudo, a desertificação de uma terra que só viria a entrar no mapa mental dos portugueses por causa do mediatismo dos "touros de morte", empurrariam de novo o castelo e as ruínas da sua vila medieval há muito abandonada, para o esquecimento. Uma década depois do encontro dos mestres construtores, um novo sobressalto, chamou de novo a atenção para Noudar. Esmagada a "Reforma Agrária", devolvido latifúndio da Coitadinha (curioso nome...) aos numerosos herdeiros, perspectivava-se o que aconteceu a muitas outras grandes propriedades alentejanas, a sua venda a quem mais oferecesse, e com ela, a venda do próprio Castelo que, o estado monárquico falido, havia alienado no final do Século XIX. Aproveitando o espaço de crónica que à época partilhava com o Luis Raposo no Diário de Notícias, em 14 de Julho de 1994, num tom um tanto ou quanto" nacionalista" (falava-se da venda da Herdade e do Castelo aos espanhóis da Pedro Domecq...), denunciei a perspectiva de venda a privados de um Monumento Nacional com o significado histórico tão especial (crónica que aqui republico em "facsimil" (consta da edição da Europa-Amériaca, 1996, "A Linguagem das Coisas"). 
A venda acabou por acontecer, três anos mais tarde, mas num contexto totalmente diverso do que parecia adivinhar-se, e em cujo processo tive afinal a grata oportunidade de participar, apoiando o Administrador  da EDIA Joaquim Marques Ferreira, responsável pela idéia. No âmbito de um acordo celebrado entre a empresa do Alqueva e a Câmara Municipal de Barrancos, a Herdade e o Castelo foram adquiridos conjuntamente, ficando assim no domínio público, tendo o respectivo investimento sido considerado como uma medida compensatória das perdas e impactos patrimoniais e ambientais verificados no Vale do Guadiana com a construção da Barragem. Mais tarde, por destacamento, a EDIA manteve a pposse e a gestão da Herdade, ficando o Castelo na posse da autarquia. Hoje, a Herdade (Parque da Natureza de Noudar- www.parquenoudar.com/) recuperado o seu magnífico "monte", adaptado a turismo da natureza, é um exemplo magnífico do que se pode e deve fazer no "Portugal profundo". Já o Castelo, infelizmente e apesar das preocupações da autarquia, da própria EDIA e das entidades da tutela, parece não ter beneficiado especialmente com o "negócio". As várias tentativas que têm sido feitas no sentido da revitalização turística do monumento esbarram sempre com a falta de meios humanos e financeiros da autarquia (especialmente agravados nos últimos tempos) e com a falta de um modelo de intervenção ajustado às circunstancias muito próprias da região que enquadre um necessário e urgente plano de recuperação patrimonial que interrompa a sua progressiva e evidente desagregação.




A última torre a cair em Noudar (foto de 2011)


terça-feira, 28 de abril de 2015

O Museu de Évora e a Arqueologia da região, um testemunho de há 20 anos...


O Museu de Évora é sobretudo conhecido pela sua importante colecção de pintura antiga, com especial destaque para o monumental retábulo da Sé. No entanto, desde a sua fundação remontando à colecção trazida para Évora pelo Arcebispo Frei Manuel do Cenáculo, que a arqueologia nele sempre esteve condignamente representada, ainda que inicialmente muito focalizada, ao gosto dos tempos, na epigrafia e na estatuária clássica ou medieval. Em 1970, com espaço ganho no seu subsolo, seria finalmente aberta uma galeria dedicada à Pré-história, domínio que nos anos 60 conhecera um desenvolvimento assinalável na região de Évora, com as descobertas dos Almendres, Anta Grande do Zambujeiro, Escoural, etc... Nos anos 80, com o funcionamento da Universidade e a instalação em Évora dos Serviços Regionais de Arqueologia do IPPC, a arqueologia regional conheceria novos desenvolvimentos a que o Museu de Évora não era estranho. Com os documentos anexos recordamos um ciclo de conferencias promovido em 1993 no Museu de Évora, chamando em particular a atenção para os temas focados, eles próprios o retrato da arqueologia de Évora, duas décadas atrás. Hoje com a última remodelação e com o espaço recuperado no subsolo do antigo Forum Romano, a arqueologia ganhou uma presença mais consistente no conjunto do acervo patrimonial do Museu.


A conferencia de António Carlos Silva no dia 24 de Novembro de 1993

A inauguração da Sala de Arqueologia do Museu de Évora em Maio de 1970


Aspectos da actual galeria arqueológica do Museu de Évora, espaços recuperados com as escavações na área do Forum Romano, em cuja investigação participou o Doutor Theodor Haushild que aparece na foto anterior.

segunda-feira, 27 de abril de 2015



Filhos da madrugada...

A incursão pedestre à Serra da Estrela (Junho de 74) organizada pelo Eduardo Osório


Ganhou profundas raízes, a pergunta que Baptista-Bastos vulgarizou em antigo programa de entrevistas, "Onde é que você estava no 25 de Abril?" E de facto, enquanto alguns representantes das gerações que já tinham consciência em 74 sobreviverem, haverá sempre quem saiba responder com plena propriedade e maior nostalgia àquela questão. Estava então nas vésperas de fazer 22 anos de idade mas, passados 41 anos, consigo ainda descrever todas as horas desse dia fundador. No entanto, glosando ainda o Baptista-Bastos, gostaria de pôr a questão de outra maneira. Quem que te avisou no 25 de Abril? É que a cena volta à minha lembrança em cada 25 de Abril que passa. Acordei nesse dia com um estridente toque de campainha seguido de vozes no corredor do pequeno apartamento dos meus pais com quem ainda morava, na Amadora. Não tive sequer tempo de me levantar, pois de imediato estava ao meu lado o Eduardo Osório, cujos pais viviam perto, muito agitado, que me pedia para acender o rádio. Correspondi á ordem, ainda estremunhado e sem me levantar, pois bastava esticar o braço para chegar ao aparelho, e lá começamos a ouvir as marchas militares (em si pouco animadoras...) interrompidas de tempos a tempos pelo enigmático comunicado do desconhecido Movimento das Forças Armadas...

Ambos frequentávamos já a Faculdade, o Eduardo Osório Gonçalves em Arquitectura e eu em História, e estávamos no pleno da nossa juventude, social e culturalmente muito empenhados (menos politicamente, por razões óbvias e até familiares) participando através de um grupo de jovens amigos, em projectos de alfabetização e animação cultural nos numerosos "bairros de barracas" da Amadora e Brandoa, sob a cobertura do então Padre João Bragança, coadjutor na paróquia local. A predisposição para a mudança era total e assim passámos o resto desse dia 25, em grande ansiedade e agitação, só apaziguada pela cada vez mais "contestatária" banda sonora que dominávamos completamente e que a rádio ia transmitindo naquela que terá sido uma das últimas revoluções do século XX, sem televisão. O nosso grupo, em boa parte liderado pelo Eduardo, graças à sua especial veia artística, nomeadamente musical, ainda se envolveria nalgumas acções comuns, mas face à louca dinâmica social da época e aos vários interesses escolares, rapidamente se dispersaria ficando apenas a amizade entre todos. Em 74, eu participava já regularmente nos trabalhos arqueológicos promovidos pelo GEPP, o grupo de estudantes da Faculdade de Letras envolvido no estudo da arte rupestre do Tejo, descoberta em Vila Velha de Ródão no final de 1971 e o Eduardo Osório, que colaborava já com conhecidos arquitectos, envolver-se-ia rapidamente no processo SAAL, com Nuno Portas (que proferira pouco antes do 25 de Abril, a pedido do Eduardo, uma palestra na cave da Igreja da Amadora, sobre o problema das "barracas" o que motivou um especial "interesse" da polícia pelo tema). Em Junho de 1974, poucas semanas depois do 25 de Abril, o grupo da Amadora ainda se envolveu no que seria uma das derradeiras iniciativas em comum. Organizada pelo próprio Eduardo, cuja família era natural de Nespereira (Gouveia) onde ainda possuía uma casa meio senhorial, fizémos uma inesquecível excursão pedestre à Serra da Estrela (a segunda paixão do Eduardo, depois da Arquitectura). Durante uma semana, sob a orientação do Eduardo "perdemo-nos" pelos vales mais recônditos da Serra, acampando onde calhava, bebendo água dos ribeiros e fugindo sempre que podíamos das estradas. Ainda que já imbuídos no maior respeito pela mãe natureza e com interesses diversos que decorriam já da nossa formação universitária, pelo menos dos mais velhos, não resistimos a uma pequena tropelia, própria da juventude e dos tempos. Não muito longe da Torre, do lado do Gouveia, havia à época sobre um penedo bem destacado na paisagem, uma grande  estátua de cimento, cópia algo tosca de um dos célebres guerreiros castrejos, de que o Museu nacional de Arqueologia conserva alguns exemplares. Uma inscrição remetia a figura, para Viriato, o guerreiro lusitano, erroneamente associado por alguma historiografia tradicional, aos Montes Hermínios, ou seja à Serra da Estrela. É certo que o fascismo português, bem ao contrário do italiano, alemão ou mesmo espanhol, nunca viu na arqueologia qualquer interesse apologético especial, à parte de uma única excepção, Viriato. De tal modo que os portugueses que participaram pelo lado nacionalista, na Guerra Civil Espanhola, se denominavam "os Viriatos". Fosse por isso, ou por simples rebeldia fruto da época e da juventude, não descansámos enquanto não mandámos encosta a baixo o fraco arremedo do Viriato de cimento, que na queda se desfez em mil bocados...Aqui fica a confissão vandálica, tardia e certamente prescrita...

Depois disso poucas vezes tive ocasião de reencontrar o Eduardo, ainda que fosse acompanhando o seu percurso profissional à distância. Trabalhou a nível autárquico na sua Beira natal para onde se mudara cedo e, entre 1988 e 1996 foi director do parque Natural da Serra da Estrela, naquela que terá sido certamente a função que, pelo menos afectivamente, mais próxima terá estado do seu ideal de serviço público. Na mesma época, eu assumira entretanto as funções de Director do Serviço Regional de Arqueologia do Sul, com sede em Évora. Abandonou as funções no Parque Natural no ano em que Joaquim Marques Ferreira, o Director Geral do ICN que o nomeara, deixou aquele Instituto para assumir o papel de responsável pelo ambiente no projecto Alqueva, precisamente no ano em que eu próprio entrei para a EDIA onde foi o meu chefe directo. Falávamos por vezes no amigo comum por quem Marques Ferreira nutria evidente simpatia e respeito profissional. Ainda na EDIA, tive o prazer de trabalhar no "master-plan" da zona da Barragem do Alqueva, com o Eng. João Caldeira Cabral, familiar muito próximo do Eduardo Osório, que me deu notícias dos seus novos interesses pela cultura, história e genealogia beirã, que se traduziriam em monumental obra "Raízes da Beira", editada em 2006. Infelizmente, a doença bateu-lhe precocemente à porta acabando o Eduardo por falecer em 2011 e, embora através de amigos comuns tivesse tido conhecimento da sua difícil situação, faltou-me a coragem para um reencontro cuja ausência ainda hoje me penaliza. Outras imagens irão certamente esfumando-se, mas enquanto por cá andar e a memória não me atraiçoar, fica para sempre na minha lembrança o Eduardo a acordar-me para essa madrugada única e irrepetível.

Passeio à Serra da Arrábida, talvez em 1972. O Eduardo Osório, à viola acompanhado pelo Mário Madeira e pelo Luis Vaz (este, também já falecido)

O Eduardo, sempre à viola (já que não era possível levar o piano, que também "arranhava") e parte do grupo da Amadora
Em Gouveia, na terra natal do Eduardo Osório, aqui de barrete (1973?)


Próximo de Nespereira, Gouveia (1973?)

Eduardo Osório Gonçalves, em 2006 no lançamento da sua obra "Raízes da Beira" (imagem recolhida em http://seiaportugal.blogspot.pt/2011/02/faleceu-eduardo-osorio.html)


O "nosso grupo" actuando julgo que na Voz do Operário, provavelmente em 1974 mas, obviamente, já depois do 25 de Abril (o palco está decorado com bandeiras dos movimentos de libertação das colónias portuguesas...). Esta "formação "ad-hoc", derivada quase em directo do grupo coral da Igreja da Amadora, chegou a actuar num espectáculo de "Canto-livre", realizado numa sociedade recreativa do Barreiro, em conjunto com artistas bem conhecidos, nomeadamente o Fernando Tordo e o poeta José Carlos Ari dos Santos, com quem partilhamos os "bastidores"... O Eduardo está ao centro, à guitarra e de camisola amarela. (Foto acrescentada a este post em 10 de Maio de 2016)

Outra foto do mesmo concerto. O cartaz deve ter a palavra de ordem "Solidariedade com os povos das colónias"

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Lucefecit, o vale sagrado do Endovélico

A Rocha da Mina, margens do Lucefecit


Por motivos profisionais (é verdade, ainda não estou aposentado...) participei ontem numa reunião na DGPC, promovida pela Câmara Municipal do Alandroal, preparatória da classificação cultural do vale da Ribeira do Lucefecit. Sendo que a iniciativa parte do município, para já está em causa avaliar do hipotético interesse nacional que justifique uma categoria de salvaguarda superior. E, parece óbvio que os valores de ambiente natural, paisagem, cultura material e imaterial que estão em causa, ultrapassam largamente a escala local, facto que os próprios Romanos reconheceram há mais de 2 000 anos, valorizando e integrando no seu panteão, uma importante divindade indígena. Sendo certo que a redescoberta histórica do Endovélico, remonta ao Século XVI, graças ao espirito antiquarista do Duque de Bragança, D.Teodósio I, também é verdade que Leite de Vasconcelos não hesitou, por sábia precaução, em levar para o seu Museu de Belém, no final do século XIX, com o apoio da Casa Real tão ligada à vizinha Vila Viçosa, tudo o que de valioso ainda encontrou no que restava das ruínas da capela de São Miguel da Mota, erguida sobre o antigo santuário romano, pois parecia que localmente, de tão velha tradição já pouca ou nenhuma memória restaria. 


Caberia, no entanto, a um escritor nosso contemporâneo, infelizmente desaparecido do nosso convívio, João Aguiar (1943-2010),  devolver ao Alandroal, graças a um romance de grande sucesso, "A Voz dos Deuses" (1984), o elo afectivo que perdera com esses tempos. Os arqueólogos, nomeadamente o Manuel Calado, também dariam o seu contributo para esse reencontro e, recentemente, a própria autarquia, envolvida em projectos de colaboração com o Museu Nacional de Arqueologia, onde ainda decorre uma grande exposição sobre as "Religiões da Lusitânia", com um peso significativo a colecção epigráfica recolhida por Leite de Vasconcelos no Alandroal. O projecto de classificação do Vale do Lucefecit está ainda no seu início, mas parte do reconhecimento de que existe uma realidade territorial com fortes raízes identitárias, forjadas e moldadas pelo tempo e que perduram para além das transformações das superestruturas políticas ou religiosas. Para esse reconhecimento, muito contribuíram também as experiencias locais de prospecção arqueológica, já materializadas numa Carta Arqueológica do Alandroal, editada em 1993 por Manuel Calado, revista e ampliada vinte anos depois com a colaboração de Conceição Roque e integrado muitos dados novos, alguns de grande relevancia, já resultantes do gigantesco esforço de investigação promovido na região pelo projecto do Alqueva.

Carta Arqueológica do Alandroal, 1993


Nova Carta Arqueológica do Alandroal, 2013

João Aguiar em 1993 na Rocha da Mina, Alandroal, numa visita promovida pela Câmara Municipal por ocasião do lançamento da Carta Arqueológica e que tive a sorte de acompanhar no terreno.

João Aguiar e Manuel Calado, no Castelinho, Alandroal (1993)







quarta-feira, 22 de abril de 2015

A propriedade dos bens arqueológicos_ uma questão em aberto


Lidando a Arqueologia com bens (móveis e imóveis) que podem por vezes configurar interesses e valores comerciais elevados, seria de esperar que a problemática relacionada com a sua descoberta, posse e eventual comercialização, estivesse claramente estabelecida para evitar a perda ou ocultação de bens de interesse cultural importantes para toda a comunidade, ou pelo menos, para evitar situações de conflitualidade que, inevitavelmente, acabam na barra dos tribunais. E ultimamente temos tido notícia de alguns casos...

Há duas décadas, numa altura em que se anunciava a intenção de rever a Lei 13/85, a nossa primeira Lei de Bases do Património Cultural que acabaria por ser revista apenas em 2001, publiquei no Diário de Notícias (4 de Maio de 1995) um texto de reflexão sobre esta problemática.  Algumas questões então colocadas (como a inconsequência da declaração dos bens arqueológicos como "património nacional") foram posteriormente clarificadas pela Lei 107/2001 de 8 de Setembro, ainda em vigor, a qual passou a reservar essa titularidade para os bens provenientes de "trabalhos arqueológicos" (nº3 do Artº 74). Diga-se, no entanto, que este princípio mantem-se em contradição com o articulado do "Código Civil", um instrumento legal que se sobrepõe hierarquicamente à Lei do Patrimónnio e que no respeitante à regulamentação dos chamados "achados de tesouros"  deveria clarificar a situação de excepção dos "achados" em escavações arqueológicas, o que não acontece. A Lei 107/2001, mantendo a obrigatoriedade da notificação de qualquer achado arqueológico, independentemente da propriedade do terreno (um princípio que remonta na nossa tradição legal, pelo menos ao tempo de D.João V) introduziu entre nós o princípio "anglo-saxónico" do direito a uma recompensa (raramente reclamada e ainda menos atribuída) no caso de achados declarados e entregues às autoridades, que possuam valor comercial relevante (nº 2 do Artº 78). Apesar dos progressos legais, pelo menos no domínio dos princípios, a situação dos espólios provenientes da actividade arqueológica de investigação ou prevenção, continua no entanto muito confusa. Os arqueólogos responsáveis pelas escavações, são para todos os efeitos, os fiéis depositários pelos bens arqueológicos recolhidos, mas sabendo-se que na sua maior parte são hoje assalariados ocasionais de "empresas prestadoras de serviços", transferem para estas, informalmente, essa responsabilidade. As empresas tendem, dados os custos associados, a entregarem tão breve quanto possível esses materiais às entidades oficiais que de uma maneira geral têm poucas condições para a sua recepção e conservação nas condições mais adequadas. Por outro lado, a disponibilização para usufruto público ou para investigação de terceiros, uma tarefa prioritária dos Museus, está hoje enredada numa teia de procedimentos burocráticos absurdos que impede a rápida incorporação museológica, mesmo no caso dos bens mais relevantes.

Apesar do tempo decorrido, julgo que como testemunho da evolução verificada neste domínio, se justifica a republicação da crónica de há 20 anos que acabou por não integrar a compilação editada pela Europa-América em 1996 (Raposo e Silva, A Linguagem das Coisas_ Ensaios e Crónicas de Arqueologia).

terça-feira, 21 de abril de 2015

A Igreja de Vera Cruz de Marmelar


De ano para ano, em resultado de uma (aparente) maior consciência social da importância cultural (e económica) do património, autarquias e outras entidades "civis, militares e religiosas" desdobram-se em centenas iniciativas em torno da comemoração do Dia Internacional dos Sítios e Monumentos, de Norte a Sul de Portugal. Por dever, interesse e prazer, procuro dar sempre o meu pequeno contributo, como "actor" ou "espectador", tendo este ano respondido positivamente à proposta do Grupo PróÉvora (a mais antiga associação de defesa do património cultural do país), orientando uma visita ao Cromeleque dos Almendres, recentemente promovido a Monumento Nacional e à Anta Grande do Zambujeiro, um monumento nacional à procura de soluções que lhe confiram importância turístico-cultural que a sua especial relevância arqueológica, justifica. Como curiosidade refira-se o apoio do Exército Português à iniciativa do PróÉvora, através da cedência de um pequeno autocarro para transporte dos visitantes (não tantos como seria desejável, fosse pela falta de divulgação ou pela forte concorrencia de outras iniciativas eborenses). Já como simples espectador, aproveitei uma iniciativa da Câmara Municipal de Portel, um concerto pelo Coral de S.Domingos (Montemor-o-Novo) realizado na Igreja de Vera Cruz de Marmelar no dia 19 de Abril, para revisitar um monumento singular no contexto da arquitectura religiosa alentejana. Desde logo pela sua escala arquitectónica, claramente destacada no casario envolvente, mas sobretudo pela fortíssima carga histórico-mítica que lhe está associada e que se reflecte na sobreposição estilística, nos elementos arquitectónicos aparentemente estranhos, ou no valioso recheio artístico que conserva. Como arqueólogo, chamam-me a atenção em particular as pré-existências (paleo-cristãs, visigóticas, moçarabes?) que remetem as origens deste lugar e das lendas associadas para época bem anterior ao estabelecimento local dos Hospitalares por doação de D.João Peres de Aboim, o homem de confiança de Afonso III, fundador do Senhorio de Portel. Em face de vestígios tão antigos e objectivos apetece "escavar" na cerca do antigo paço dos comendadores de Vera Cruz, edifício abandonado e em ruínas, contrastando fortemente com o relativo bom estado da Igreja anexa. A recuperação e a valorização de todo este conjunto esteve uma década atrás nas intenções da Câmara Municipal de Portel, através de um programa concebido e liderado pela historiadora Ana Pagará (minha antiga "vizinha" na Amadora, ainda que de geração mais nova, posteriormente colega de Mestrado na Universidade de Évora e actual responsável pelo Mosteiro de Alcobaça). O projecto que contava com a colaboração dos historiadores Vitor Serrão (meu amigo e colega de curso) e Nuno Vassalo e Silva (actual Director Geral do Património Cultural), não teve infelizmente pernas para andar, mas resultou do mesmo uma excelente monografia, esgotada mas disponível em PDF.
http://www.museusportugal.org/multimedia/File/Igreja%20vera%20cruz.pdf


O concerto do Coral de São Domingos, na Igreja da Vera Cruz, no âmbito das comemorações do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios (19 de ABril de 2015)















Apenas uma pequena história retirada do baú das minhas memórias pessoais. Estive pela primeira vez em Vera Cruz de Marmelar poucas semanas após o 25 de Abril de 1974, num passeio de fim de semana com um grupo de adolescentes e jovens amigos da Amadora, tendo ficado alojados na casa de família de um colega nosso, filho de um comerciante da Amadora, alentejano como tantos outros nossos vizinhos e natural de Vera Cruz. Para além de uma colecção de "slides" onda avultava já a imponente Igreja da Vera Cruz (e que deverão estar algures no meio da minha papelada...), ficou-me dessa viagem a memória do primeiro comício do Partido Comunista Português realizado em liberdade na aldeia de Vera Cruz  e a que, por um misto de curiosidade e de fervor revolucionário muito comum à época, não deixámos todos de assistir. 

E, em aditamento de 15 de Fevereiro de 2017, aqui ficam algumas dessas fotos de 1974 (finalmente reencontradas) já verdadeiros documentos gráficos da Igreja de Vera Cruz, meio século atrás:










segunda-feira, 20 de abril de 2015

"Monfurado, A mui ignorada serra do Sul de Portugal"




Em 8 de Janeiro passado publiquei aqui a cópia de uma reportagem de Mário (Vieira) Henriques, publicada no Diário Popular de 13 de Outubro de 1967 -  http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/01/a-mais-bela-maquina-de-viajar-no-tempo.html. Na sequencia de mais uma visita guiada que no sábado dia 18 de Abril tive ocasião de fazer nos Almendres, por ocasião do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, numa organização do Grupo PróÉvora, aqui deixo mais um documento para a história da identificação deste sítio, (ocorrida em 1964), em concreto, um texto de 1965 do Dr. José Fernandes Ventura, (então professor na Escola de Regentes Agrícolas da Mitra (Valverde) ilustrado com fotos do Eng. Albano Salles de Mattos Fernandes. O texto em causa foi publicado no nº 10 da revista da "Lavoura Portuguesa", datada de Outubro de 1965 e é um importante contributo para a história da descoberta, graças em parte às fotos que o acompanham. De facto comprovam aquilo que já sabíamos por testemunhos directos de alguns intervenientes no processo, de que a quando da identificação do sítio por Henrique Leonor de Pina em 1964, alguns meses antes da visita de Fernandes Ventura com o Coronel Afonso do Paço, Presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses em Novembro de 1964, uma parte dos menires tinham já sido recolocados na vertical por iniciativa do proprietário, Eng. Miguel Soares. Nas mesmas fotos é possível observar ainda outros menires, semi-tombados mas ainda na provável "cama" original. O artigo de Fernandes Ventura, retratando um período de importantes descobertas nesta região (Almendres, Gruta do Escoural, Castelo do Giraldo, Corôa do Frade, etc...) termina com uma "nota da redacção" que ilustra nas suas entrelinhas alguma conflitualidade típica entre a pequena classe arqueológica da época, funcionando regionalmente à sombra dos "notáveis" da capital. Depreende-se do corpo do texto que Fernandes Ventura pensava ter descoberto com Afonso do Paço, o "menir dos Almendres", mas pela "nota", dá-se conta conta de que afinal Leonor de Pina já o conhecia, porque o tinha já referido numa entrevista entretanto concedida ao Diário Popular. Esta referencia levanta outra questão. A reportagem do Diário Popular que acima referimos, data de Outubro de 1967, bastante posterior portanto a este artigo da "Lavoura Portuguesa", pelo que haverá uma "entrevista" anterior dao DP, que desconheço, na qual Pina terá feito referencia aos achados dos Almendres, entretanto referidos no relatório não impresso que apresentou à Junta Distrital de Évora, respeitante às suas actividades arqueológicas entre 23 de Março e 3 de Abril de 1964.
Nota: uma explicação para a fraca qualidade dos originais aqui fotografados. O exemplar do nº 10 da Lavoura Portuguesa que possuo em muito mau estado, veio ter às minhas mãos em circunstancias algo fortuitas... Quando por ocasião da coordenação dos trabalhos arqueológicos do Alqueva assentei por meia dúzia de anos arraiais em Mourão, deparei a certa altura com uma antiga casa de lavoura abandonada e completamente devassada. Numa inspeção mais curiosa do que necessária, deparei numa das dependencias com restos de documentação diversa, já semi queimada e, obviamente, deixada para trás. No meio da papelada, chamou-me a atenção a foto do "menir" dos Almendres ilustrando a capa de uma velha e já rasgada revista que resolvi "salvar" do lixo...





Na imagem de cima vários menires já colocados na vertical por iniciativa do Eng. Miguel Soares, sendo bem visível a marca das zonas que estariam semi enterradas, face à diferença óbvia de "colonização " pelos líquenes. Na foto inferior, menires ainda na posição semi tombada, correspondendo ao sector mais a Ocidente do monumento.

Outros menires já na vertical, evidenciado as "marcas" correspondentes às zonas anteriormente tombadas. De notar ainda a densidade de vegetação, posteriormente cortada a pedido de Leonor de Pina para facilitar o levantamento topográfico, única intervenção de campo que faria neste monumento, apenas escavado nos anos 80 por Mário Varela Gomes.

quinta-feira, 16 de abril de 2015




Cromeleque do Xerez



O Cromeleque no GoogleEarth, (imagem de Setembro de 2013), comprovando a desvirtuação do projecto paisagístico

Numa página do Facebbok que julgo oficial (Câmara Municipal de Reguengos?) acompanhando uma excelente foto, recolhi o seguinte texto:

Cromeleque do Xerez

Erguido cerca de 5000 anos antes de Cristo por uma comunidade pré-histórica de agricultores e pastores, talvez num ritual de apropriação do território, o Cromeleque do Xerez foi identificado em 1969 por José Pires Gonçalves após a sua descoberta por José Cruz e Leonel Franco. O seu singular formato quadrangular desenvolve-se em torno de um menir central de cerca de 4 metros de altura, que apresenta numa das suas faces diversas covinhas em toda a sua verticalidade. Este cromeleque foi o único monumento da região a ser transferido para outro local (junto ao convento da Orada), em 2004, devido à construção da barragem de Alqueva.


Dadas as minhas antigas responsabilidades em todo o processo que envolveu a (re)escavação do local original pelo Mário Varela Gomes (1998), a respectiva publicação e posterior decisão para desmontagem e reinstalação do monumento próximo da Orada, segundo projecto do Arquitecto Daniel Monteiro, executado pela Câmara Municipal de Reguengos (2004) e financiamento da EDIA, não resisti a ler os comentários deixados na rede social, alguns bem críticos do estado actual do monumento. De facto, tendo lá passado recentemente, também verifiquei com desagrado a situação de aparente abandono de um sítio que tinha todas as condições para ser um ícone quer do rico megalitismo de Reguengos, quer do projecto arqueológico do Alqueva, fazendo o contraponto com o Museu da Luz na outra margem do Lago. É certo que a (ambiciosa) intenção original da autarquia, passava pela construção neste mesmo terreno, em articulação com a reinstalação do Cromeleque, de um grande museu de arqueologia que tirasse partido das centenas de escavações arqueológicas realizadas no âmbito do Aqueva. Tal intenção, infelizmente, não teve condições para avançar (nomeadamente financeiras), limitando-se a intenção à concretização, parcial, do excelente projecto do arquitecto Daniel Monteiro (colaborador do Arquitecto Souto Moura na obra do estádio do Braga). A situação que observei no local, é de facto algo desoladora, mas felizmente não é irreversível, carecendo essencialmente de alguma manutenção e sobretudo, de alguma disciplina no controle do acesso indiscriminado de viaturas até junto do monumento, que acontece à revelia de toda a lógica do projecto, com espaço previsto e construído para estacionamento. É certo que o acesso pedonal deveria ser feito através de uma "casa abrigo" hoje fechada (mas onde chegou a haver exposições) e que dificulta a passagem dos visitantes ao longo da interessante "alameda" de alvenaria branca que nos leva ao cromeleque. A sua substituição por um simples telheiro que exponha alguma informação e, sobretudo, o "corte físico" do acesso de viaturas ao Cromeleque, é um primeiro passo para a requalificação que se espera a autarquia possa concretizar urgentemente.

Desmontagem e transporte dos menires do Xerez em Novembro de 2001
O "anúncio" do Museu que não chegou a sair do papel...

Remontagem do Croemeleque, junto da Orada em Junho de 2004

A degradação visual da envolvente imediata do Cromeleque. O placard do "Museu" anuncia agora o "Dark Sky do Alqueva"!


Nas proximidades, uma inefável rotunda megalítica (?), tem pelo menos melhor apresentação...