sexta-feira, 29 de janeiro de 2016



Documentos para a história da nossa Arqueologia





Criado em 1997 pelo Ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho na sequencia do mediático e polémico processo em torno da salvaguarda das gravuras rupestres do Vale do Côa - que culminaria em final de 1995 com a suspensão da construção da Barragem do Côa, uma das primeiras decisões tomadas pelo Governo recém-eleito de António Guterres - o novo Instituto Português de Arqueologia, acabou por ter vida curta e atribulada. Ainda assim, a sua existência deixaria marcas profundas na Arqueologia portuguesa na transição do século XX para o século XXI e algumas das estruturas então criadas ainda persistem (ainda que algumas muito debilitadas) hoje integradas na DGPC (Direcção Geral do Património Cultural)  e influenciam no dia a dia, a prática da salvaguarda do património arqueológico em Portugal.

Referimo-nos em particular à Biblioteca e Arquivo, às base de dados informáticas ENDOVÉLICO, ao ex- CIPA (hoje intitulado Laboratório de Arqueociências - ver aqui um balanço da sua actividade)
ou mesmo às estruturas da arqueologia subaquática, ex-CNANS (Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática).

Em Maio de 2002, já no contexto do Governo PSD de Durão Barroso, surgiam os primeiros sinais de que poderia haver alterações significativas a nível das estruturas da Cultura. Ainda que definitivamente abandonada a construção da Barragem, havia no ar ainda algum ressabiamento relativamente às corajosas decisões de Guterres e a ideia original de construção de um Museu no próprio sítio da Barragem (o que inviabilizaria ad aeternum a Barragem) foi a primeira a cair. Mas as baterias estavam apontadas já ao IPA. Algum tempo depois, perante a confirmação da decisão, a direção do IPA (João Zilhão e Monge Soares) dimitir-se-ia e o IPA entraria num período de longa agonia, acabando formalmente por ser extinto no final de 2006, integrando-se os seus serviços na orgânica de um novo Instituto, o IGESPAR, por sua vez substituido em 2012 pela actual DGPC.

Na sequencia imediata  das notícias ameaçadoras sobre o IPA -a cuja primeira Comissão Instaladora, presidida pelo Vitor Oliveira Jorge, pertenci- reagi com um texto que julgo nunca conheceu a luz do dia. Reencontrado mais de uma década depois, aqui fica como testemunho pessoal de um período conturbado da pequena história da nossa arqueologia.


A morte anunciada de um instituto cultural ?


Ainda que falte a confirmação oficial, o destaque de primeira página dado pelo Expresso ao assunto (“Governo trava museu de Foz Côa”- 04/05/02) parece anunciar aquilo que, desde as últimas eleições, na modesta paróquia arqueológica uns já temiam, outros esperavam e, alguns, até desejavam. Atrás da revisão do processo do Museu do Côa, polémica já herdada da anterior gestão socialista e que o PSD, no respectivo programa eleitoral, prometia reapreciar, perfila-se agora também a extinção do Instituto Português de Arqueologia, classificado pelo Expresso como “outro emblema socialista”. Sobre esta questão, embora prevendo mexidas na área do Património, o programa do Governo era lacónico e vago quanto baste. Mas, face ao discurso sistemático da crise orçamental e, por consequência, da inevitável extinção de serviços e institutos públicos, que melhor “bombo da festa” se poderia encontrar? Antes de mais porque, ignorando ou esquecendo a importância das respectivas atribuições, não preenchidas por outros organismos, é fácil associar a sua criação (1997) a uma qualquer contrapartida pós-Côa ou cedência do Governo PS ao lobby(zinho) dos arqueólogos portugueses. Depois porque, sendo demasiado pública a proverbial guerrilha entre as diversas capelinhas arqueológicas, não será difícil encontrar apoios para amortecer ou explorar eventuais efeitos colaterais, nomeadamente os mediáticos, que tal decisão possa acarretar. Aliás, a forma como a notícia veio a lume (o Director do IPA, João Zilhão, confrontado com o teor da notícia do Expresso declarou ao “Público” de 05/05/02, que “não fora essa a posição que o Ministro da Cultura lhe comunicara, porque, caso contrário, já se teria demitido”) parece apenas o primeiro acto de uma estratégia cautelosa mas implacável.

Mas, esquecendo por um momento, a normal e saudável diferença de perspectivas culturais entre a direita e a esquerda que naturalmente pressupõem e fundamentam, mesmo nos domínios mais consensuais da salvaguarda e valorização do património histórico-cultural, políticas divergentes, vale a pena fazer uma pequena reflexão sobre o papel do IPA e as circunstâncias conjunturais que determinaram o seu aparecimento. Pese embora o tempo e o modo como surgiu, aquele Instituto visava preencher uma lacuna objectiva no quadro das responsabilidades que o Estado vinha assumindo desde o início dos anos 80 em matéria de salvaguarda, estudo e gestão dos recursos arqueológicos do território, entendidos como parte integrante do património identitário nacional. Curiosamente, deve-se a um Governo AD (1980, sendo Secretário de Estado da Cultura o Dr. Vasco Polido Valente), no quadro da criação do IPPC (Instituto Português do Património Cultural) o reconhecimento da especificidade territorial do património arqueológico, promovendo a criação de Serviços Regionais de Arqueologia. Num quadro global de interdisciplinaridade e de equilíbrio que a amplitude das atribuições do velho IPPC impunha (gerindo monumentos, museus, arquivos, sítios arqueológicos, etc...) podemos dizer que a Arqueologia, apesar dos meios sempre reduzidos, soube então por mérito próprio mas também por reconhecimento institucional, ganhar algum espaço na política patrimonial, facto que assume especial significado se tivermos em conta que à data do 25 de Abril de 1974, praticamente não existiam ainda arqueólogos profissionais em Portugal. Contraditoriamente, seria no quadro da progressiva fragmentação sectorial do IPPC, decorrente da importância crescente que as políticas patrimoniais assumiram ao longo da década de 80, que a “Arqueologia” começaria a perder terreno. Por um lado porque algumas das suas atribuições passam a ser diluídas pelos novos Institutos ou organismos (nomeadamente no que respeitava às questões museológicas, ao restauro ou mesmo ao inventário) por outro, porque de reestruturação em reestruturação, acabaria por ficar confinada ao papel de parente pobre no IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico) criado por Santana Lopes no início dos anos 90 e onde prontificavam, quer na estrutura hierárquica, quer na definição estratégica, os arquitectos e engenheiros civis, muitos deles tardiamente despertos para o “património”. Os Serviços Regionais de Arqueologia foram extintos e os respectivos arqueólogos integrados nas novas Direcções Regionais. Sem a definição de uma política própria, condicionados por uma gestão incompetente ou casuística, os arqueólogos da Administração Central, entraram praticamente em auto gestão, apesar do desenvolvimento e importância que a salvaguarda do património arqueológico, vinha assumindo de forma crescente na sociedade civil. Isso verificava-se em particular na multiplicação de cursos superiores, nas políticas culturais ao nível local e, finalmente, nas novas exigências de minimização de impactes patrimoniais, tornadas obrigatórias com a plena integração na Comunidade Económica que fizeram surgir as primeiras empresas privadas no sector. Quando surge a questão do Côa, num quadro de maior exigência legal no domínio da defesa integrada do património cultural e de crescente interesse da opinião pública por estas questões, a fragilidade técnica das estruturas arqueológicas da administração do Estado revelou-se por inteiro. Entre o arqueólogo funcionário que no campo descobrira as primeiras gravuras e o Governo a quem competia o cumprimento da legislação patrimonial aplicável, não havia praticamente ninguém (Directores Regionais, Directores de Serviços, Directores Gerais...) que tivesse a mínima ideia do que estava em jogo, com as consequências que se viram.

Portanto, mais do que um prémio ou uma cedência, o IPA visava criar condições para assegurar o cumprimento das obrigações ou responsabilidades que o Estado assumira, pela integração de princípios internacionais ou pela aprovação de legislação própria. Poder-se-ão, no entanto, colocar duas questões pertinentes. Não teria sido possível, ainda que com nova reestruturação do IPPAR, dar cumprimento a esses mesmos objectivos sem a criação de novos serviços, solução sempre onerosa porque inevitavelmente duplicadora de algumas estruturas? Terá o IPA, nestes 5 anos de existência, correspondido às expectativas então geradas?

No que à primeira questão se refere, a minha resposta não pode deixar de ser afirmativa. Com efeito, e pese embora o facto de ter pertencido à Comissão Instaladora do IPA, nunca escondi que teria visto com melhores olhos a reestruturação do IPPAR, valorizando uma perspectiva integradora da política de salvaguarda e gestão do património cultural imóvel embora precavendo, através de novos mecanismos estruturais, a autonomia própria do sector arqueológico em domínios específicos, como a arqueologia subaquática, o património rupestre e a arqueologia pré-histórica em geral, ou mesmo o inventário (Carta Arqueológica). Obedecendo a uma lógica que vinha já dos Governos de Cavaco Silva, de progressiva desintegração disciplinar, a criação de um novo organismo (que de facto constava do programa eleitoral do PS) acabou por fazer vencimento. No entanto, e entramos já na segunda questão enunciada, o figurino que prevaleceria, acabou por corresponder a uma situação algo híbrida que se viria a reflectir ao nível da capacidade de actuação do novo Instituto. Cedo se tinha verificado que, entre as expectativas da Comissão Instaladora (e nas quais eu próprio então me revia totalmente, porque uma vez assumida a decisão de criar um novo Instituto, este deveria herdar, não só as atribuições mas as próprias estruturas e meios do IPPAR, no domínio arqueológico) e a realidade dos equilíbrios da distribuição dos poderes dentro do novo Ministério da Cultura, ia um fosso intransponível. Embora não exclusivamente por estes motivos, a Comissão Instaladora acabaria por se dissolver, tendo vencido, mais por força das circunstâncias do que por convicção, a tese de um “mini-IPA” dividindo as suas naturais competências e atribuições com o todo poderoso IPPAR que apesar do novo parceiro, mantinha largas competências em matéria arqueológica e uma estrutura técnico-administrativa cada vez mais pesada. Mesmo assim, e apesar de alguma crescente conflitualidade entre ambas as instituições decorrente da duplicação ou sobreposição de funções, o IPA teve nestes anos um papel fundamental para o desenvolvimento de uma política consistente em matéria de prevenção e salvaguarda do património arqueológico português, nomeadamente no que respeita ao estreito acompanhamento das grandes obras públicas. É especialmente reconhecido por toda a classe arqueológica, o grande esforço efectuado ao nível da política da publicação científica, ou, apesar da escassez de financiamento, da cooperação científica entre a arqueologia e as diferentes disciplinas da paleo-ecologia. Por consequência, e seja qual for a decisão política que venha a ser tomada pelo novo Governo, descontadas as necessidades de alguma demagogia de discurso para consumo mais generalista, espera-se pelo menos alguma coerência de atitude. Das duas uma. Ou numa lógica meramente economicista neo-liberal, se entende que as atribuições do IPA são excedentárias e o Instituto é descartável, mas para isso o Governo terá de lançar borda fora toda uma série de legislação nacional, comunitária ou mesmo internacional (incluindo em especial a “Convenção Europeia para a protecção do Património Arqueológico”, assinada em nome do Governo da República Portuguesa em La Valetta, Malta, em Janeiro de 1992 pela Dra. Maria José Nogueira Pinto) ou, pelo contrário, mesmo insistindo na extinção do IPA, o Governo garante através dos meios mais adequados, o cumprimento integral das suas obrigações e responsabilidades nesta matéria. Recordo porém que, em múltiplos domínios, o Ministério da Cultura não apresenta actualmente alternativas efectivas para as funções cobertas, com maior ou menor eficácia, pelo Instituto cultural com morte agora anunciada. Significativamente, ou não, o primeiro com “nome” dos muitos que vêm sendo apregoados como necessários à salvação do equilíbrio orçamental.


António Carlos Silva- arqueólogo (vogal da Comissão Instaladora do IPA, em 1995/96)








 
Ainda que extinto desde finais de 2006, o IPA continuaria a funcionar os seus serviços técnicos essenciais, não só a nível das suas "extensões territoriais" mas também nas suas instalações da Avenida da Índia, num antigo edifício militar. Em 2008, porém, e perante a "revolta dos arqueólogos", seria finalmente despejado para se começar a construção do megalómano novo Museu dos Coches.

Sobre este assunto podem ver-se também:



quarta-feira, 27 de janeiro de 2016


Arqueologia em Évora, há um quarto de século

"Laconicum" das termas da Praça do Sertório, Évora, em curso de escavação no final dos anos 80 (Arquivo: CME)


Por mero acaso acabo de "tropeçar" com um recorte do Diário do Alentejo de 14 de Setembro de 1990, já lá vão pois mais de 25 anos. (Para os mais jovens convém lembrar que "recortes de imprensa", eram notícias escolhidas a partir dos jornais ou de fotocópias, que empresas especializadas recolhiam sobre temas específicos previamente identificados pelos clientes; a leitura e tratamento regular destes recortes era, naturalmente, uma fonte preciosa de informação, uma espécie de ronda pela "internet" da altura...)

Neste recorte, o Diário do Alentejo (não sei se na altura ainda "diário" ou já "semanário"), dava conta de uma série de projectos de Arqueologia em curso no Verão de 1990 na cidade de Évora e seus arredores. A lista é impressionante, não tanto pela quantidade, mas sobretudo pela importância dos projectos e dos sítios ou monumentos então em curso de investigação ou escavação, incluindo projectos internacionais (Colin Burguess da Universidade de Newcastle-pré-história- e Theodor Haushild do Instituto Arqueológico Alemão) e envolvendo aquela que é hoje a "nata" do património arqueológico de Évora (Cromeleque dos Almendres, Villa Romana da Tourega, Templo Romano, Termas da Praça do Sertório...). É certo que nunca se fez tanta arqueologia (preventiva) como hoje, nomeadamente no contexto das obras públicas e privadas, mas também é inegável que raramente com consequências práticas para o cidadão comum. Mas, e esse é o grande calcanhar de Aquiles da actual arqueologia, a Administração Central ou local, sobretudo nas áreas mais afectadas pela crise económica, deixou praticamente de ter iniciativa neste domínio, limitando-se a exigir a terceiros, uma atitude preventiva, importante mas por vezes frustrante porque implica afetação de recursos por parte da sociedade que, muitas vezes, seriam bem melhor empregues no estudo e valorização de tantos e tantos sítios ao abandono.





sexta-feira, 22 de janeiro de 2016




A delegação de Évora da firma H. Vaultier (anos 60?)

Maxime Vaultier (1898-1969)


Não é a primeira vez que o Gonçalo Pereira, editor da National Geographic portuguesa, me presenteia amavelmente com “tesourinhos arqueológicos” que vai descobrindo nas suas pesquisas pela velha imprensa portuguesa. Há poucos dias enviou-me um recorte do Diário de Lisboa, de 12 de Julho de 1942 que aproveito para divulgar. 

Trata-se de uma “entrevista” a Maxime Vaultier, uma figura algo “misteriosa” mas quase omnipresente na “bibliografia arqueológica portuguesa” de meados do Século XX, o que me deixou na expectativa de encontrar novos e desconhecidos dados sobre a sua pessoa. Infelizmente, o tom e o conteúdo da entrevista deixa-nos um pouco defraudados, por “culpa” da personalidade do próprio, que apenas por muita insistência do jornalista terá acedido a falar, não sobre si, mas sobre a Arqueologia portuguesa.Considerando-se um simples amador, citará praticamente todos os nomes activos na Arqueologia portuguesa da época. Dá natural destaque à figura de Henri Breuil, o grande pré-historiador francês presente em Portugal durante parte da 2ª Guerra Munidal, que já conhecia de França e cuja estadia, segundo o testemunho de Octávio da Veiga Ferreira publicado na revista ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA, AAP, 9ªsérie, V.II, 1970  (que aproveito para divulgar também), terá sido em parte patrocinada pelo próprio Vaultier.




E aqui podemos começar a falar um pouco do que podemos apurar desta figura que, sem ser arqueólogo de formação, teve um papel tão importante na Arqueologia portuguesa do seu tempo. Apesar de já nascido em Portugal, o seu pai o francês Henri Vaultier, fora o fundador da firma industrial H.Vaultier, empresa muito ligada ao fornecimento de maquinaria diversa à indústria e à agricultura, com expansão a nível nacional (pessoalmente ainda recordo a sua publicidade nas paredes de um loja já abandonada na Praça do Giraldo nos anos 80). Tendo estudado em França, Maxime Vaultier aí terá sido jornalista (a crer no artigo do DL), tendo entrado para a firma do pai a partir de 1922, onde chegaria rapidamente a sócio gerente. Homem de muitos interesses (é um grande impulsionador dos desportos de vela em Portugal) a sua ligação à arqueologia terá começado por volta de 1937, segundo o seu próprio testemunho. Graças à sua fortuna pessoal dispunha de meios que raramente estavam ao alcance dos arqueólogos portugueses, nomeadamente de “grande viatura particular” que muitas vezes colocará generosamente ao dispor dos numerosos amigos arqueólogos que vai conhecendo e apoiando. Estes retribuem como podem, associando o seu nome às publicações que vão fazendo, o que acaba por tornar o seu nome quase omnipresente. Eu próprio já havia confirmado essa situação  quando tive oportunidade de estudar com mais detalhe as circunstancias da descoberta e confirmação da arte rupestre paleolítica da Gruta do Escoural. Com efeito, a primeira publicação de Farinha dos Santos sobre o assunto nas páginas d’O Arqueólogo Português (1964) havia sido recebida pela generalidade dos colegas nacionais, com grande cepticismo, até pela inexperiência do autor neste campo. Terá então sido decisiva a intervenção de M. Vaultier. Eventualmente recorrendo às suas antigas relações com Henri Breuil, recentemente falecido (1961), Vaultier conseguirá convencer o seu sucessor André Glory, na altura a estudar a arte de Lascaux, a vir a Portugal no início de 1965. A viagem foi também patrocinada pela Gulbenkian, mas terá em grande parte sido garantida pelo próprio Vaultier. Glory não esquece esse facto e quando em Maio desse mesmo ano apresentou os resultados da sua expedição ao Escoural, na Sociedade Pré-histórica Francesa, associará à posterior publicação da conferencia, os nomes de Farinha dos Santos e de Maxime Vaultier. Estava previsto que Glory regressaria ao Escoural no Outono seguinte, provavelmente de novo com o apoio de Vaultier que assim continuaria a ligar o seu nome ao Escoural. Infelizmente Glory, morreria num acidente de carro nesse mesmo ano de 1966 e Vaultier, em 1969, ao que depreendo das palavras de Veiga Ferreira, de ataque cardíaco. Um último dado curioso, a propósito da personalidade de Vaultier. Procurando alguma informação complementar na NET, descobri o seu nome num Blog francês que divulga os nomes dos “Combatentes da França Livre”. Julgo que não terá andado na “guerrilha”, mas foi fundador e presidente do Comité português da França Livre.

Um recorte de jornal (?) datado de 1965 (?), relatando uma conferencia de Maxime Vaultier sobre a Gruta do Escoural. Nela Vaultier evocou as suas antigas relações com Henry Breuil e que estiveram na origem do convite que endereçaria a ANdré Glory que visitou o Escoural em Janeiro desse mesmo ano (1965) 

Maxime Vaultier, (em primeiro plano à direita)a ser recebido na Câmara Municipal de Lisboa pelo general França Borges.
O edifício onde está actualmente instalada a Fundação Portuguesa das Comunicações, da autoria do arquiteto João Simões Antunes, já foi uma fábrica e uma central de Telex. Originalmente pertencente ao Instituto Superior Técnico, foi vendido em 1944, por 645 mil escudos, à empresa H. Vaultier & Companhia, ainda na fase de construção. Era constituído por três parcelas, que a Vaultier preferiu ver transformadas numa única estrutura.








terça-feira, 19 de janeiro de 2016

As "pedras talhas" e a neve

Já não consigo ter a certeza quanto ao dia, mas foi a um domingo (talvez, 29 de Janeiro de 2006), pelo que está prestes a concluir-se uma década sobre um dos maiores nevões a que o Alentejo terá assistido nos últimos 100 anos. Alguns idosos lembravam-se de qualquer coisa parecida, nos anos quarenta ou cinquenta do século XX. Tratou-se de uma rara oportunidade para conseguir algumas imagens desconcertantes e as que consegui fazer nesse dia nos Almendres, onde apenas consegui chegar graças ao meu velho Patrol) tiveram natural sucesso. Para além de ilustrarem os calendários que a Junta de Freguesia de Guadalupe mandaria executar no ano seguinte, deram a volta ao mundo, graças ao poder crescente que a INTERNET já tinha por essa altura, contribuindo ainda mais para a divulgação deste monumento único da nossa região. Aqui deixo no Blog das "Pedras Talhas" algumas dessas imagens de há uma década atrás.











A neve, naturalmente, também marcou presença na vizinha Serra do Monfurado.

Na Gruta encontravam-se nesse dia, "em serviço de guardaria turística", o  Pedro Carapetudo e a Helena. Por razões que nunca percebi, o Pedro não aproveitou a boleia da Helena e resolveu esperar pelo pai que, por causa do "nevão" já não conseguiu chegar de carro à Gruta. Avisado da situação, alertei a GNR que o colocou em lista de espera por algumas horas dando-lhe tema para uma "história" para contar ao filho (que entretanto já teve, com a Helena...).



segunda-feira, 18 de janeiro de 2016


OLISIPO

São eventos como o que tive oportunidade de viver ontem (17/01/2016) no velho cinema São Jorge, que nos mostram que, apesar de todos os problemas e dificuldades, o "mundo pula e avança"...

Como vão longe os tempos em que fazer Arqueologia em Lisboa era praticamente uma excentricidade! Já aqui neste blog recordei a figura de IRISALVA MOITA (1924-2009) ver aqui, a arqueóloga que, lutando contra muitas adversidades, deixou o seu nome ligado às raras intervenções arqueológicas verificadas em Lisboa antes do 25 de Abril, como as da necrópole romana da Praça da Figueira (decorrente das primeiras obras do Metro no final dos anos 50) ou sd escavações dos anos 60 no Teatro Romano, ao Caldas. Eu próprio contaria ainda com o seu apoio directo (como Directora dos Museus de Lisboa) para o lançamento da primeira grande escavação arqueológica lisboeta posterior ao 25 de Abril, acção que promovi no início dos anos 80 como responsável do Departamento de Arqueologia do IPPC, no âmbito da recuperação da Casa dos Bicos para a XVII Exposição Europeia de Arte, Ciência e Cultura. Eram acções isoladas, negociadas caso a caso e que normalmente eram entendidas pelas entidades promotoras das obras, como "concessão de facilidades" aos arqueólogos e não como obrigações decorrentes dos impactos negativos induzidos pelas intervenções, nos "arquivos materiais" conservados no subsolo das cidades históricas. Vivi ainda essa situação de forma muito objectiva e concreta no final dos anos 80 e início dos anos 90 em Évora, onde no âmbito do Serviço Regional de Arqueologia promovemos algumas intervenções no centro histórico, sempre "mendigadas" junto dos promotores, situação que só começaria a mudar após as alterações legais promovidas no contexto da criação do IPA no final da última década do século passado. 

O excelente documentário do Raul Losada, com reconstituições 3D de César Figueiredo de que tive oportunidade de visionar ontem no São Jorge (sala onde não entrava há décadas) sobre os resultados da intervenção arqueológica na Praça D.Luis, mostram-nos hoje uma realidade completamente diferente. Mas mais do que as circunstancias concretas, que já conhecia, da intervenção da ERA ARQUEOLOGIA (empresa fundada há cerca de 2 décadas por antigos jovens colegas que, pontualmente haviam trabalhado comigo nessas intervenções "mendigadas" aos promotores...), representou para mim uma agradável surpresa e a prova de que estamos de facto num paradigma novo, a multidão de gente, de todas as idades (mas sobretudo jovens) que acorreram ao São Jorge para assistir a um "simples", ainda que muito interessante, documentário histórico. 




Um aspecto da Sala Manuel d'Oliveira do Cinema São Jorge, pouco antes da projecção do documentário (Fundeadouro Romano em Olisipo)

O promotor e realizador do documentário, Raul Losada e um representante do CAL (Centro de Arqueologia de Lisboa) da Câmara Municipal, dirigindo-se aos assistentes



terça-feira, 12 de janeiro de 2016


Mário Dionísio, Denis Cintra e outras lembranças dos meus "anos 60"


As memórias são mesmo assim, como as “cerejas”. Umas arrastam outras e assim, sucessivamente, num movimento quase perpétuo...

Vêm tais lugares comuns, a propósito da leitura de recente entrevista do Jornal de Letras ao actor Luis Miguel Cintra (1949), por ocasião do seu anunciado abandono dos palcos - que não do teatro- por razões de saúde. Referindo-se às origens da sua vocação artística, evocou o importante papel do seu professor do Liceu, Mário Dionísio (1916-1993) na decisão de seguir para Letras, isto algures em meados dos anos 60. O cruzamento de “Cintra” com “Dionísio”, fez-me“regressar” aos meus anos 60, mais concretamente a Junho (?) de 1968, quando como aluno externo, fiz exames do 5º ano, no Liceu Camões. Era nessa altura aluno do Seminário de Almada e ao contrário do que seria de esperar, o Estado não reconhecia os exames feitos no âmbito eclesiástico (Salazar e Cerejeira eram unha com carne, mas "amigos, amigos... negócios à parte"), pelo que a única maneira dos ex-seminaristas poderem eventualmente continuar estudos ou arranjar emprego compatível com a respectiva escolaridade, passava pela realização de exames no Liceu, como alunos externos. Como na altura em Almada, zona proletária, Liceu era coisa que não existia (estava disponível para os remediados a Escola “Técnica” Emídio Navarro”) acabei por fazer os exames liceais, como aluno externo, sempre em Lisboa, nomeadamente os do 5º Ano ou 2º ciclo, no Liceu Camões. Recordo bem o facto, pelo que tinha de extraordinário na vida meio reclusa do seminário (pese embora a “abertura” da época e que já aqui evoquei por outros motivos  ver aqui  ) naquele caso concreto, animada então por uma coisa rara mas também sinal dos tempos…Uma greve dos revisores da CARRIS, que nos permitia viajar de eléctrico “à borla” entre a Praça do Comércio e o Largo José Fontana. Os exames escritos realizados no vetusto Ginásio do Liceu acabaram por não me correr mal, embora com resultados algo contraditórios. Apesar de não ser muito dado a “ciências”, as notas obtidas, provavelmente com a ajuda da Geografia e das Ciências Naturais, foram suficientes para me livrar das “orais”. Já o meu velho handicap com as línguas vivas, de que resultara uma negativa a “Inglês”, me obrigou a ir às provas orais, apesar das boas notas a Português e História. No dia aprazado lá estava no Liceu Camões, de gravata como mandava a praxe, para defender as notas da escrita que eram suficientes para a passagem de ano, mesmo que continuasse com a negativa de Inglês (era possível passar “cortado” a uma única disciplina numa das secções). Já não recordo patavina das provas de Português e História, mas retenho detalhes incríveis das de Francês e Inglês. No caso da prova de francês, o professor, figura austera de cachimbo na mão e óculos de massa, começou por indagar as origens do examinando “externo” e quando soube que este era “seminarista (= padreca)”, mostrou no seu olhar (pelo menos assim o retive, tal era o pânico) o “brilho” do caçador que acabara de descobrir a “presa”. “Ah sim? Então tem aí no seu compêndio (recordo até o título do livro e do texto…), “Regardons vers le pays de France”, uma lição que lhe assenta que nem uma luva, “Les processions dans le Midi ”… Como é fácil de imaginar, com tais preliminares, a prova foi um desastre, arrastando a nota da escrita para uma irremediável negativa. Valeu-me a passagem de ano, a caridade (provavelmente) cristã da professora de Inglês, que com toda a boa vontade me facilitou a recuperação da negativa que trazia da prova escrita. 
Mário Dionísio

O manual do meu exame de Francês




Menos de uma década depois de experiência pedagógica tão traumática tive ocasião de recordar estes factos enquanto professor estagiário (1975/76)  no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho (no ano em que a venerável escola feminina abriu as suas portas aos primeiros alunos e professores masculinos) à então minha orientadora Maria Emília Diniz. Esta extraordinária professora de História, uma agradável surpresa em termos científicos, pedagógicos e humanos (e de quem tive notícias há pouco tempo) que só não estava na Faculdade de Letras pela “pequenez social e política” do fascismo, pela descrição não teve qualquer dúvida em identificar o “caçador”. Eu tinha sido “presa” do Mário Dionísio, professor no Liceu Camões nos anos 60, também ele então afastado da Universidade por razões políticas e nome que, obviamente já me dizia alguma coisa em 75 (ainda que sobretudo por ser pai da Eduarda Dionísio, uma activista cultural e política muito mediática nos anos do PREC) e cujo nome viria a reencontrar mais tarde amiúde na leitura da biografia de Álvaro Cunhal, do Pacheco Pereira, a propósito da polémica entre ambos sobre o “neo-realismo” e o papel das artes na política e na sociedade. 

Como é que tudo isto se cruza com o actor Luis Miguel Cintra, figura que apenas vi ao vivo nas raras vezes que frequentei a Cornucópia nos anos 80, como simples espectador?

Voltemos de novo aos anos 60 e ao Seminário de Almada, julgo até que ao mesmo ano de 68 (ou talvez 67?), mas agora centrado numas inesquecívies férias na Arrábida, mais concretamente no Conventinho da Serra, numa altura em que este ainda estava na posse da Casa de Palmela (desde 1990 é propriedade da Fundação Oriente). Graças às boas relações entre o clero e a nobreza, o Seminário de Almada gozava do raro previlégio de poder organizar campos de férias para os alunos nas instalações do Convento, na altura relativamente em bom estado mas extremamente frugais, tipo “monumentos nacionais” (de tal modo que era preciso levar quase tudo, incluindo as camas e as louças…). Em todo o caso, por vários motivos, tratou-se de uma experiência extraordinária, ainda por cima valorizada pelas memórias  vivas do guarda António, companheiro das longas estadias no local do malogrado Poeta da “Serra Mãe”, Sebastião da Gama (1924-52) ou pelas recambolescas peripécias, em “inglês”, das velhíssimas manas Perestrelo, professoras aposentadas do Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, (o tal onde eu entraria alguns anos depois), que passavam também férias no Convento, por serem ainda parentes dos Duques de Palmela…

A obra de Sebastião da Gama inspirada pelas suas estadias no Conventinho da Arrábida

Mas a grande aventura, passava pela descida diária por veredas que rasgavam o denso maquis mediterrânico, todas as manhãs, serra abaixo em direção às límpidas águas do oceano. Por razões de maior proximidade, frequentávamos a chamada Praia dos Pilotos da Barra, uma estreita língua de areia apenas acessível nas marés baixas e a que se descia por íngreme escada de madeira. Mais por essas características do que por outras razões, era praticamente uma praia particular, muito pouco frequentada. Naquele Verão apenas uma família nos fazia companhia e, graças à presença de uma viola e à proximidade dos interesses musicais (as inconvenientes e omnipresentes baladas do Zeca e do Adriano), rapidamente se estabeleceram cumplicidades inesperadas. Soubemos então, embora na altura isso pouco nos dissesse, que o pai de família era o professor Luis Lindley Cintra (1925-91, que viria a reencontrar como aluno na Faculdade de Letras e a quem já me referi neste Blog ver aqui a propósito da sua proximidade com os estudantes) e o filho que alinhava connosco nas cantorias e violadas, o Denis Cintra de que pouco tempo depois ouviríamos falar, graças à sua passagem no programa ZIP-ZIP da RTP (que tantos talentos revelou) e à edição de alguns discos.

Ao contrário do irmão Luis Miguel, que se tornaria uma figura central no panorama artístico nacional, nunca mais tive notícias de Denis Cintra até que agoa, movido pela curiosidade, encontrei uma pequena (mas triste) nota biográfica na Internet, retirada da obra de Eduardo M. Raposo “Canto de Intervenção” ( mariu.no.sapo.pt/DenisCintraBiografia.html) e algumas suas canções no YOUTUB:  https://www.youtube.com/watch?v=rgIs3foSrnk)

Denis Cintra

Como tantos da minha geração, Denis Cintra precocemente desaparecido (1951-1990), após editar três discos quase de rajada em 1971, acabou por exilar-se em Inglaterra em 1972. Como tantos da minha geração, por razões económicas ou políticas, o espectro da guerra colonial, acabou por afastá-lo da sua terra e das suas gentes, cortando cerce uma carreira que se perspectivava brilhante.

O Professor Luis Lindley Cintra

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

JEANNETTE NOLEN
(1930-2016)

No desaparecimento de uma excelente pessoa e de uma grande arqueóloga que tive o prazer de conhecer e em jeito de simples homenagem, recordo através de imagens alguns momentos da inesquecível viagem à Síria do Grupo de Amigos do Museu Nacional de Arqueologia (GAMNA) grupo de que foi Presidente e que muito lhe deve, como o Luis Raposo emotivamente recorda na sua sentida nota, que também aqui divulgo (tal como a de José d'Encarnação) com a devida vénia.

Junto à Grande Mesquita de Damasco, no início da viagem de 2004 à Síria, com Ana e Luis Raposo, entre outros.

Ao centro da foto, nas ruínas de Apameia (Viagem à Síria do GAMNA, 2004)

Em Bosra, a grande cidade romana do Sul da Síria (Viagem GAMNA de 2004)



O testemunho de José d'Encarnação (ARCHPORT):


JEANNETTE ULRICA SMIT NOLEN

            Faleceu esta manhã, dia 6 de Janeiro, em S. Pedro do Estoril, na casa de repouso onde se encontrava, a Dra. Jeannette U. Smit-Nolen.
            Holandesa de nascimento, esteve muitos anos nos Estados Unidos, mas foi em Portugal, nomeadamente na sua casa em Janes (Cascais), que viveu a maior parte do seu tempo Era viúva de William Nolen, que foi leitor de Inglês na Faculdade de Letras de Lisboa.
            O seu nome está intrinsecamente ligado à Arqueologia portuguesa, porque integrou a equipa de escavações luso-francesas de Conímbriga; os trabalhos na necrópole romana de Santo André (Montargil) e as campanhas de escavação na villa romana de S. Cucufate. Foi membro-fundador do Grupo de Amigos do Museu Naciopnal de Arqueologia, de que chegou a ser presidente e foi membro-fundador também da Associação Cultural de Cascais, em que integrou os corpos sociais, durante vários mandatos.
            Foi de sua preferência o estudo dos vidros romanos, de que nos deixou vários artigos e recordo que tinha em estado bastante avançado o inventário dos vidros de Tongobriga (Freixo, Marco de Canaveses), cujo dossiê entregou a partir do momento em que verificou não se sentir já com forças para o levar a cabo.
            Dos estudos a que o seu nome particularmente ligado são de mencionar, entre outros: Cerâmicas e Vidros de Torre de Ares – Balsa, Lisboa, 1994; os estudos sobre o recheio do Museu de Vila Viçosa (a que mui devotadamente se dedicou durante vários anos); Cerâmica Comum de Necrópoles do Alto Alentejo, Fundação da Casa de Bragança, Lisboa, 1985; «Acerca da cronologia da cerâmica comum das necrópoles do Alto Alentejo: novos elementos», O Arqueólogo Português, Lisboa, série IV, 13/15, 1995-1997, pp. 347-392; «A necrópole de Santo André, parte II. Os materiais», Conimbriga 20, 1981, pp. 5-180 (de colab. com Maria L. Dias); «A villaromana do Alto do Cidreira (Alcabideche – Cascais) – Os materiais», Conimbriga 27 1988 61-140.
            Que descanse em paz quem foi sempre uma trabalhadora incansável, sempre pronta a colaborar, duma natural afabilidade.
                                                                                                                                                                                                        José d’Encarnação

e o de Luis Raposo:

É com profundíssima consternação que tomo conhecimennto do falecimento da Dra. Jeannette Nolen.
Na exigência para consigo própria e para com os outros, no  horror ao exibicionismo, no permamente combate às vaidades mundanas, mas também no seu afecto, amizade e solidariedade, ela foi e é certamente a pessoa que, no plano dos meus relacionamentos profssionais e em quasse meio século, mais me habituei a admirar, no íntimo de mim mesmo.
Foi grande, enorme amiga do MNA (e presidente do GAMNA), que muitíssimo lhe deve, parte do qual permanecerá porventura por revelar para sempre, por expressa vontade dela, que respeitarei.
Foi também uma imensa amiga pessoal e dos que me são mais próximos. Uma amiga daquelas que não se coibia de me criticar, mesmo asperamente, quando assim entendia. Recordo por exemplo, o dia em que me admoestou por eu ter colocado fotografia minha em texto de boas-vindas, aquando a criação do sítio de Internet do MNA.
Mas uma amiga também que sempre me incentivou nos numerosos combates que fui tendo, criticando com dureza e algum desprezo os portugueses (que tanto amava), e o nosso meio profissional em particular, por ser demasiado subserviente, sempre à espera de migalhas do poder, de todos os poderes. Recordo como em certo momento mais crítico se prontificou a suportar os custos de contenda judicial em que eu poderia ficar envolvido por demanda de determinado secretário de Estado (o que não chegou a ser necessário).
Na sua rigidez de costumes, na sua exigência ética, na sua postura cívica... mas também na sua doce e terna amizade, Jeannette Nolen constitui em mim o protótipo de pessoa livre, que dá gosto conhecermos e nos inspira. Pudéssemos dispor de muitas jeannettes nolens e teríamos certamente um País diferente. Sendo mais livres, seríamos muito mais felizes.
Luís Raposo


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

As Antas de Belas e o Quinto Império

Anta da Pedra dos Mouros com a sua característica laje tombada, onde as raparigas casadoiras, segundo tradição citada por O.Veiga Ferreira, escorregavam para propiciar a sua fertilidade. (foto pessoal dos anos 70)

No contexto do património pré-histórico da região da grande Lisboa, o conjunto de três monumentos megalíticos conhecido como “Antas de Belas” (Anta do Monte Abraão, Anta da Pedra dos Mouros e Anta da Esttria), é talvez um dos mais referidos desde que esta temática ganhou foros de ciência em Portugal, desde logo porque foram objecto de precoce investigação por Carlos Ribeiro, um dos fundadores da Comissão geológica do Reino e “pai” da Arqueologia Pré-histórica nacional. Pessoalmente e embora já tivesse notícias desde a adolescência de alguns destes monumentos (residia na Amadora e as vizinhas “Grutas de Carenque” ou do "Tojal de Vila Chã", escavadas por Heleno nos anos 30 do Século XX, eram então muito faladas pelas piores razões já que constava que eram o local habitual da prostituição de terceira categoria…) só os viria a visitar já como estudante de História, normalmente no âmbito de “excursões” organizadas pelos colegas mais interessados nos temas arqueológicos e que incluíam ainda outros sítios clássicos, como a Gruta da Ponte da Lage ou o Castro de Liceia... 


A Anta do Monte Abraão (foto pessoal dos anos 70)

Antra ou Galeria Coberta da Estria (imagem da Internet). Em 2º plano viaduto da CREL.

As três antas de Belas, cartografadas no site "Portugal Megalítico". Qualquer dos monumentos é bem visível no Google Earth, embora a foto desta zona seja de 2007, anterior à construção do Nó A16-A9.

Mais tarde, profissionalmente, o conjunto de Belas, haveria de cruzar-se comigo por diferentes motivos. Integraram de forma destacada o nº1 dos Roteiros da Arqueologia Portuguesa, (ver a este propósito) figurando a Anta do Monte Abraão na respectiva capa. Foram posteriormente objecto de um programa de valorização e sinalização promovido pelo Departamento de Arqueologia do IPPC na época em que o dirigi, programa concretizado no terreno pela Teresa Marques e pelo Fernando Lourenço. Mais tarde este conjunto megalítico acabaria por ser quase “engolido” pela construção da CREL que alterou por completo a paisagem envolvente, apesar de esta já estar muito transformada pelas pedreiras e pelas urbanizações dos anos 60. A Anta da Estria, acabou por ficar mesmo integrada na área ajardinada da área de serviço Sul da CREL (A9) construída nos anos 90 e até a Anta do Monte Abraão esteve ameaçada pela construção do nó de ligação da A9 à A16. Recordo a propósito uma complexa reunião que dirigi em finais de 2007 (estava então fugazmente na direcção do Departamento de Salvaguarda do IGESPAR), envolvendo as Estradas de Portugal e a empresa concessionária, nas instalações do antigo IPA (hoje demolidas e substituídas pelo Museu dos Coches), onde se estabeleceram as condições para que a obra pudesse avançar.

Mas o facto que melhor recordo, até pela sua excentricidade, reporta-se  a  finais de 1980 (?), quando a Presidente do IPPC, Dra Natália Guedes, licenciada em História e portanto obrigatoriamente conhecedora das “Antas de Belas”, se viu confrontada com um convite formal para uma cerimónia numa Quinta de Belas, promovida por uma figura conhecida, Rainer Daenhardt, e envolvendo algumas entidades oficiais (o Regimento de Infantaria de Queluz, por exemplo) e na qual estava prevista a “inauguração de um dolmen”. Temendo que pudesse ter passado pela cabeça de alguém o desmantelamento e a reconstituição de uma anta local, fui directamente incumbido, como arqueólogo do IPPC, de averiguar o que se passava. Não conhecia pessoalmente Rainer Daenhardt, colecionador de armas antigas, de ascendência alemã e residente numa quinta de família em Belas mas estava a par do contencioso que este mantinha com o Estado Português, a propósito de uma colecção de armas antigas depositada no Museu Militar, até porque, através do Museu Nacional de Arqueologia eu e outros colegas, tínhamos sido chamados a pronunciar-mo-nos sobre a autenticidade de diversos artefactos arqueológicos integrantes da mesma colecção. Dado o referido envolvimento do Regimento de Infantaria nº1 de Queluz (onde eu prestara serviço militar poucos anos antes) solicitei a colaboração do meu colega Fernando Lourenço (militar profissional mas destacado no serviço de inventário do Departamento de Arqueologia) e iniciámos as averiguações pelo quartel (localizado nas instalações anexas ao palácio de Queluz). Confirmámos de facto a participação logística de um pelotão e de uma viatura militar no transporte de um conjunto de grandes lajes provenientes de uma pedreira próxima. Com algum embaraço, o oficial contactado justificou o envolvimento dos meios militares numa acção privada, como “contrapartida” pela "generosa oferta" ao Regimento de um estojo que “supostamente”, continha as armas do seu próprio fundador, o célebre Conde de Lipe. Apesar de aliviados quanto aos impactos arqueológicos do acto, rumámos depois até à quinta  de Belas, onde Daenhardt nos aguardava conforme acordado telefonicamente. Esclarecida a proveniência das “lajes”, podemos observar, num terreiro fronteiro à casa, uma tosca e atarracada “anta de corredor”, atamancada como se de um pedestal se tratasse, até porque sobre a “pedra da mesa”, estava assente uma desproporcionada estátua de javali… Com o máximo de seriedade a que as circunstancias nos obrigavam ouvimos as explicações de Daenhardt.  Exotérico assumido e confesso (ramo dos “Rosa Cruzes”, segundo referiu e nome que nada me dizia), a inauguração da "anta e do javali de bronze", fariam parte de um cerimonial a ter lugar no solstício (?) que se avizinhava e que celebraria os valores e as tradições antigas da Lusitânia, as glórias e desgraças sebastianistas, a decadência de Portugal começada em Alcácer Quibir e finalmente a regeneração, qual "Quinto Império", que se anunciava no horizonte (lembro que na altura toda aquela narrativa se parecia articular directamente nas recentes vitórias eleitorais da AD do pós-PREC, mas poderia ter sido apenas impressão minha…). Acompanhando o discurso, surgia sempre misturada a veia “antiquária” do interlocutor que não hesitou em nos mostrar algumas das suas “preciosidades”, sobretudo no campo da “armaria antiga”, incluindo o “mosquete” (espólio “comprovado” da Batalha de Alcácer Quibir que ele adquirira junto de um sheiqh árabe…) que iria ser disparado na inauguração da “anta”. Quanto ao “javali”, segundo a sua versão, era a cópia de uma antiga peça celta, referenciada por Leite de Vasconcelos na vizinha Serra da Lua, que se perdera mas que Reinardt viria a redescobrir numa coleção americana(?)… Na falta do original encomendara uma cópia em bronze, feita a partir de fotografia.
Javali da Ponta de Sagres, publicado por Estácio da Veiga e que Leite de Vasconcelos também reproduz no 2º volume das Religiões da Lusitânia e que nada tem que ver com o "javali"de Belas. Este, segundo Reinardt, proveniente de Sintra ter-se-ia perdido. Não consegui, no entanto, encontrar qualquer referencia em Leite de Vasconcelos, mas isso não significa que não exista.


Ainda hoje desconheço se a Dra Natália Correia Guedes, a quem reportei oralmente as minhas indagações, esteve presente na dita cerimónia, mas recordo que a mesma apareceu pouco tempo depois relatada com destaque e direito a fotos, no “Correio da Manhã”. Nunca mais me lembrei do assunto até que recentemente deparei com algumas fotos na INTERNET que, aparentemente, registam os estranhos factos a que acabo de me referir.


Fotos obtidas na INTERNET e que remetem directamente para factos (pelo menos similares) aos referidos no texto. e onde se vê a "anta construída" pelos militares de Queluz e o "javali de bronze" encomendado por Reinardt.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

A velha escola do Bairro de Janeiro 

Vista geral da Escola Preparatória Francisco Manuel de Melo (1974/75)- Com a estrutura do pavilhão gimno-desportivo por acabar, por falência do empreiteiro. Concluído muitos anos depois e hoje ao serviço do desporto municipal, é o que resta da velha escola que entretanto se mudou para novas instalações, julgo que em meados dos anos 80.







Por princípio 2016 será o meu último ano "completo" como funcionário público. Com efeito, no próximo dia 14 de Janeiro passam 42 anos sobre o dia em que, por substituição de uma professora chamada para outras funções, iniciei a minha actividade como professor provisório de História na Escola Preparatória Francisco Manuel de Melo da Amadora. Tinha concluído o Bacharelato na Faculdade de Letras em 1973 e desde Outubro desse mesmo ano dava já aulas no curso nocturno experimental iniciado então no Liceu da Amadora. No entanto, formalmente, a minha contagem de serviço inicia-se apenas no início de 74, com a entrada para aquela Escola Preparatória no Bairro de Janeiro, inicialmente apenas uma secção da Escola Roque Gameiro (Reboleira) mas que na altura, apesar da óbvia falta de condições, se autonomizara. Aparentemente, esta minha experiência pedagógico-didática que duraria até Outubro de 1980 (altura em que o Francisco Alves me requisitou com outros colegas da minha geração, para o Museu Nacional de Arqueologia) parece pouco ter a ver com a minha posterior carreira profissional no âmbito da arqueologia e do património, mas de facto representou um período de grande riqueza na minha formação humana, marcando de forma indelével toda a minha posterior vivência. A par das aulas, que vão coincidir com um período de grande transformação política e social (o 25 de Abril aconteceria apenas 4 meses depois), concluí a Licenciatura (1975) e mantive com os colegas da GEPP (Grupo de Estudos do Paleolíticio Português) intensa actividade de campo (nos períodos de férias escolares), em particular na região do Ródão onde se dão então as grandes campanhas arqueológicas de Vilas Ruivas (escavação e moldagem de um dos mais antigos solos de habitat da Europa), do Monte do Famaco e da Foz do Enxarrique. Casei entretanto e tive a minha filha Raquel (1976). Concluí o estágio pedagógico no conservador Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho (1975/76), sob a orientação da Prof. Maria Emília Diniz (excelente historiadora e professora); fiz um ano e meio de tropa (ver aqui) entre 77 e 78, mantendo-me como professor no Liceu da Amadora (curso nocturno), acumulando trabalho mas não vencimentos (eram outros tempos...). E, naturalmente, envolvendo tudo isto, numa tradição que vinha já antes do 25 de Abril, não deixei de te,r como quase toda a gente então, uma normalíssima actividade política, quer a nível local (fui candidato à Assembleia de Freguesia da Amadora, então a maior freguesia do país que passaria pouco tempo depois a Município), quer a nível sindical, onde com o Luis Raposo, integrei a certa altura uma lista candidata á direcção do Sindicato dos Professores mas que (felizmente) foi derrotada nas urnas...

A entrada para as aulas na Francisco Manuel de Melo. Normalmente muito atribulada em tempo de chuva...

Detalhe da Escola Francisco Manuel de Melo. A "vedação" era na altura um melhoramento recente para evitar as habituais interferencias do exterior ao "normal" funcionamento das aulas.
Da curta experiência na Francisco Manuel de Melo (74 a 76), de que guardo naturalmente boas ainda que já difusas memórias, restam-me algumas fotos que encontrei no baú das velharias e que, com a passagem de tantos anos, parecerão hoje aos mais jovens, como fotos de um qualquer país do terceiro mundo, mas que eram a realidade dos subúrbios de Lisboa em plena explosão demográfica por contraponto à desertificação rural então em plena aceleração. Recordo em especial, apesar das péssimas condições de trabalho, o entusiasmo com que naqueles barracões, professores, empregados e os próprios alunos apesar da tenra idade (10 a 13 anos), vivemos as emoções da "revolução". Aqui as deixo, com alguns comentários a propósito das recordações que evocam, apesar de como é natural, me faltarem já os mais elementares dados concretos sobre as mesmas. Pode ser, no entanto, que despertem outras memórias a quem as visionar.


Uma aula de "educação física" na Francisco Manuel de Melo



A professora de educação visual, orienta uma experiencia prática de "grafiti", ao espírito da época e certamente posterior a Abril de 74




Quando surgiam as novas práticas pedagógicas,  fruto da época, como os "trabalhos de grupo"....


E havia até espaço para exposições... (A Cultura é a Liberdade do Povo)

E tempo para visitas de estudo (aqui julgo que ao "Mercado do Povo", um espaço ocupado no pós 25 de Abril por artistas e artesãos de rua junto ao velho Museu de Arte Popular, em Belém).
Adicionar legenda

Ou mesmo festas organizadas pelos alunos (sim, de 10 a 13 anos...) com peças de teatro escritas e ensaiadas por eles próprios, como esta aqui a que chamaram os "Meninos do Chile" e que evocava os trágicos acontecimentos de 73 naquele país e que, naturalmente encontraram especial eco e solidariedade na sociedade portuguesa do pós 25 Abril de 74.

Não recordo já os detalhes da peça de teatro...mas graças a esta foto, recordo que ela termina com os "meninos do Chile" a oferecerem cravos de Abril à assistência...

Outro aspecto da festa em causa (leitura de poesia?), que dada a falta de condições da escola, foi organizada no Salão Paroquial da Igreja da Amadora



A minha mudança para a Arqueologia, acontecida logo em 1980, fez-me perder quase todos os laços com os meus colegas professores. Restam memórias difusas e algumas imagens. Num almoço de convívio dos professores da Francisco Manuel de Melo (entre 74 e 75) reconheço à direita em primeiro plano o "Professor Neves", professor de educação física, dirigente da Académica da Amadora e primeiro Presidente do Conselho Directivo da Escola na sequencia do 25 de Abril.  A colega directora foi "rápida e democraticamente afastada", regressando à sua escola de origem e elegemos entre todos o primeiro Conselho Directivo, ao qual pertenci até sair para Estágio em Outubro de 75. Foi a minha primeira experiência de "gestão" a que se seguiria a partir de 82, a Direcção do Departamento de Arqueologia do IPPC.

Outra imagem do mesmo convívio de professores. Reconheço as caras mas já não consigo associar-lhes nomes.




Uma imagem que pouco já tem a ver com as anteriores, embora provenha do mesmo "baú" pessoal. O Liceu da Amadora (onde também dei aulas) no dia 25 de Abri de 1975, por ocasião das primeiras eleições democráticas, neste caso para a Assembleia Constituinte.  A vontade de participar era tal que desde cedo se formaram longas filas de eleitores.