terça-feira, 12 de janeiro de 2016


Mário Dionísio, Denis Cintra e outras lembranças dos meus "anos 60"


As memórias são mesmo assim, como as “cerejas”. Umas arrastam outras e assim, sucessivamente, num movimento quase perpétuo...

Vêm tais lugares comuns, a propósito da leitura de recente entrevista do Jornal de Letras ao actor Luis Miguel Cintra (1949), por ocasião do seu anunciado abandono dos palcos - que não do teatro- por razões de saúde. Referindo-se às origens da sua vocação artística, evocou o importante papel do seu professor do Liceu, Mário Dionísio (1916-1993) na decisão de seguir para Letras, isto algures em meados dos anos 60. O cruzamento de “Cintra” com “Dionísio”, fez-me“regressar” aos meus anos 60, mais concretamente a Junho (?) de 1968, quando como aluno externo, fiz exames do 5º ano, no Liceu Camões. Era nessa altura aluno do Seminário de Almada e ao contrário do que seria de esperar, o Estado não reconhecia os exames feitos no âmbito eclesiástico (Salazar e Cerejeira eram unha com carne, mas "amigos, amigos... negócios à parte"), pelo que a única maneira dos ex-seminaristas poderem eventualmente continuar estudos ou arranjar emprego compatível com a respectiva escolaridade, passava pela realização de exames no Liceu, como alunos externos. Como na altura em Almada, zona proletária, Liceu era coisa que não existia (estava disponível para os remediados a Escola “Técnica” Emídio Navarro”) acabei por fazer os exames liceais, como aluno externo, sempre em Lisboa, nomeadamente os do 5º Ano ou 2º ciclo, no Liceu Camões. Recordo bem o facto, pelo que tinha de extraordinário na vida meio reclusa do seminário (pese embora a “abertura” da época e que já aqui evoquei por outros motivos  ver aqui  ) naquele caso concreto, animada então por uma coisa rara mas também sinal dos tempos…Uma greve dos revisores da CARRIS, que nos permitia viajar de eléctrico “à borla” entre a Praça do Comércio e o Largo José Fontana. Os exames escritos realizados no vetusto Ginásio do Liceu acabaram por não me correr mal, embora com resultados algo contraditórios. Apesar de não ser muito dado a “ciências”, as notas obtidas, provavelmente com a ajuda da Geografia e das Ciências Naturais, foram suficientes para me livrar das “orais”. Já o meu velho handicap com as línguas vivas, de que resultara uma negativa a “Inglês”, me obrigou a ir às provas orais, apesar das boas notas a Português e História. No dia aprazado lá estava no Liceu Camões, de gravata como mandava a praxe, para defender as notas da escrita que eram suficientes para a passagem de ano, mesmo que continuasse com a negativa de Inglês (era possível passar “cortado” a uma única disciplina numa das secções). Já não recordo patavina das provas de Português e História, mas retenho detalhes incríveis das de Francês e Inglês. No caso da prova de francês, o professor, figura austera de cachimbo na mão e óculos de massa, começou por indagar as origens do examinando “externo” e quando soube que este era “seminarista (= padreca)”, mostrou no seu olhar (pelo menos assim o retive, tal era o pânico) o “brilho” do caçador que acabara de descobrir a “presa”. “Ah sim? Então tem aí no seu compêndio (recordo até o título do livro e do texto…), “Regardons vers le pays de France”, uma lição que lhe assenta que nem uma luva, “Les processions dans le Midi ”… Como é fácil de imaginar, com tais preliminares, a prova foi um desastre, arrastando a nota da escrita para uma irremediável negativa. Valeu-me a passagem de ano, a caridade (provavelmente) cristã da professora de Inglês, que com toda a boa vontade me facilitou a recuperação da negativa que trazia da prova escrita. 
Mário Dionísio

O manual do meu exame de Francês




Menos de uma década depois de experiência pedagógica tão traumática tive ocasião de recordar estes factos enquanto professor estagiário (1975/76)  no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho (no ano em que a venerável escola feminina abriu as suas portas aos primeiros alunos e professores masculinos) à então minha orientadora Maria Emília Diniz. Esta extraordinária professora de História, uma agradável surpresa em termos científicos, pedagógicos e humanos (e de quem tive notícias há pouco tempo) que só não estava na Faculdade de Letras pela “pequenez social e política” do fascismo, pela descrição não teve qualquer dúvida em identificar o “caçador”. Eu tinha sido “presa” do Mário Dionísio, professor no Liceu Camões nos anos 60, também ele então afastado da Universidade por razões políticas e nome que, obviamente já me dizia alguma coisa em 75 (ainda que sobretudo por ser pai da Eduarda Dionísio, uma activista cultural e política muito mediática nos anos do PREC) e cujo nome viria a reencontrar mais tarde amiúde na leitura da biografia de Álvaro Cunhal, do Pacheco Pereira, a propósito da polémica entre ambos sobre o “neo-realismo” e o papel das artes na política e na sociedade. 

Como é que tudo isto se cruza com o actor Luis Miguel Cintra, figura que apenas vi ao vivo nas raras vezes que frequentei a Cornucópia nos anos 80, como simples espectador?

Voltemos de novo aos anos 60 e ao Seminário de Almada, julgo até que ao mesmo ano de 68 (ou talvez 67?), mas agora centrado numas inesquecívies férias na Arrábida, mais concretamente no Conventinho da Serra, numa altura em que este ainda estava na posse da Casa de Palmela (desde 1990 é propriedade da Fundação Oriente). Graças às boas relações entre o clero e a nobreza, o Seminário de Almada gozava do raro previlégio de poder organizar campos de férias para os alunos nas instalações do Convento, na altura relativamente em bom estado mas extremamente frugais, tipo “monumentos nacionais” (de tal modo que era preciso levar quase tudo, incluindo as camas e as louças…). Em todo o caso, por vários motivos, tratou-se de uma experiência extraordinária, ainda por cima valorizada pelas memórias  vivas do guarda António, companheiro das longas estadias no local do malogrado Poeta da “Serra Mãe”, Sebastião da Gama (1924-52) ou pelas recambolescas peripécias, em “inglês”, das velhíssimas manas Perestrelo, professoras aposentadas do Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, (o tal onde eu entraria alguns anos depois), que passavam também férias no Convento, por serem ainda parentes dos Duques de Palmela…

A obra de Sebastião da Gama inspirada pelas suas estadias no Conventinho da Arrábida

Mas a grande aventura, passava pela descida diária por veredas que rasgavam o denso maquis mediterrânico, todas as manhãs, serra abaixo em direção às límpidas águas do oceano. Por razões de maior proximidade, frequentávamos a chamada Praia dos Pilotos da Barra, uma estreita língua de areia apenas acessível nas marés baixas e a que se descia por íngreme escada de madeira. Mais por essas características do que por outras razões, era praticamente uma praia particular, muito pouco frequentada. Naquele Verão apenas uma família nos fazia companhia e, graças à presença de uma viola e à proximidade dos interesses musicais (as inconvenientes e omnipresentes baladas do Zeca e do Adriano), rapidamente se estabeleceram cumplicidades inesperadas. Soubemos então, embora na altura isso pouco nos dissesse, que o pai de família era o professor Luis Lindley Cintra (1925-91, que viria a reencontrar como aluno na Faculdade de Letras e a quem já me referi neste Blog ver aqui a propósito da sua proximidade com os estudantes) e o filho que alinhava connosco nas cantorias e violadas, o Denis Cintra de que pouco tempo depois ouviríamos falar, graças à sua passagem no programa ZIP-ZIP da RTP (que tantos talentos revelou) e à edição de alguns discos.

Ao contrário do irmão Luis Miguel, que se tornaria uma figura central no panorama artístico nacional, nunca mais tive notícias de Denis Cintra até que agoa, movido pela curiosidade, encontrei uma pequena (mas triste) nota biográfica na Internet, retirada da obra de Eduardo M. Raposo “Canto de Intervenção” ( mariu.no.sapo.pt/DenisCintraBiografia.html) e algumas suas canções no YOUTUB:  https://www.youtube.com/watch?v=rgIs3foSrnk)

Denis Cintra

Como tantos da minha geração, Denis Cintra precocemente desaparecido (1951-1990), após editar três discos quase de rajada em 1971, acabou por exilar-se em Inglaterra em 1972. Como tantos da minha geração, por razões económicas ou políticas, o espectro da guerra colonial, acabou por afastá-lo da sua terra e das suas gentes, cortando cerce uma carreira que se perspectivava brilhante.

O Professor Luis Lindley Cintra

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