quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

As Antas de Belas e o Quinto Império

Anta da Pedra dos Mouros com a sua característica laje tombada, onde as raparigas casadoiras, segundo tradição citada por O.Veiga Ferreira, escorregavam para propiciar a sua fertilidade. (foto pessoal dos anos 70)

No contexto do património pré-histórico da região da grande Lisboa, o conjunto de três monumentos megalíticos conhecido como “Antas de Belas” (Anta do Monte Abraão, Anta da Pedra dos Mouros e Anta da Esttria), é talvez um dos mais referidos desde que esta temática ganhou foros de ciência em Portugal, desde logo porque foram objecto de precoce investigação por Carlos Ribeiro, um dos fundadores da Comissão geológica do Reino e “pai” da Arqueologia Pré-histórica nacional. Pessoalmente e embora já tivesse notícias desde a adolescência de alguns destes monumentos (residia na Amadora e as vizinhas “Grutas de Carenque” ou do "Tojal de Vila Chã", escavadas por Heleno nos anos 30 do Século XX, eram então muito faladas pelas piores razões já que constava que eram o local habitual da prostituição de terceira categoria…) só os viria a visitar já como estudante de História, normalmente no âmbito de “excursões” organizadas pelos colegas mais interessados nos temas arqueológicos e que incluíam ainda outros sítios clássicos, como a Gruta da Ponte da Lage ou o Castro de Liceia... 


A Anta do Monte Abraão (foto pessoal dos anos 70)

Antra ou Galeria Coberta da Estria (imagem da Internet). Em 2º plano viaduto da CREL.

As três antas de Belas, cartografadas no site "Portugal Megalítico". Qualquer dos monumentos é bem visível no Google Earth, embora a foto desta zona seja de 2007, anterior à construção do Nó A16-A9.

Mais tarde, profissionalmente, o conjunto de Belas, haveria de cruzar-se comigo por diferentes motivos. Integraram de forma destacada o nº1 dos Roteiros da Arqueologia Portuguesa, (ver a este propósito) figurando a Anta do Monte Abraão na respectiva capa. Foram posteriormente objecto de um programa de valorização e sinalização promovido pelo Departamento de Arqueologia do IPPC na época em que o dirigi, programa concretizado no terreno pela Teresa Marques e pelo Fernando Lourenço. Mais tarde este conjunto megalítico acabaria por ser quase “engolido” pela construção da CREL que alterou por completo a paisagem envolvente, apesar de esta já estar muito transformada pelas pedreiras e pelas urbanizações dos anos 60. A Anta da Estria, acabou por ficar mesmo integrada na área ajardinada da área de serviço Sul da CREL (A9) construída nos anos 90 e até a Anta do Monte Abraão esteve ameaçada pela construção do nó de ligação da A9 à A16. Recordo a propósito uma complexa reunião que dirigi em finais de 2007 (estava então fugazmente na direcção do Departamento de Salvaguarda do IGESPAR), envolvendo as Estradas de Portugal e a empresa concessionária, nas instalações do antigo IPA (hoje demolidas e substituídas pelo Museu dos Coches), onde se estabeleceram as condições para que a obra pudesse avançar.

Mas o facto que melhor recordo, até pela sua excentricidade, reporta-se  a  finais de 1980 (?), quando a Presidente do IPPC, Dra Natália Guedes, licenciada em História e portanto obrigatoriamente conhecedora das “Antas de Belas”, se viu confrontada com um convite formal para uma cerimónia numa Quinta de Belas, promovida por uma figura conhecida, Rainer Daenhardt, e envolvendo algumas entidades oficiais (o Regimento de Infantaria de Queluz, por exemplo) e na qual estava prevista a “inauguração de um dolmen”. Temendo que pudesse ter passado pela cabeça de alguém o desmantelamento e a reconstituição de uma anta local, fui directamente incumbido, como arqueólogo do IPPC, de averiguar o que se passava. Não conhecia pessoalmente Rainer Daenhardt, colecionador de armas antigas, de ascendência alemã e residente numa quinta de família em Belas mas estava a par do contencioso que este mantinha com o Estado Português, a propósito de uma colecção de armas antigas depositada no Museu Militar, até porque, através do Museu Nacional de Arqueologia eu e outros colegas, tínhamos sido chamados a pronunciar-mo-nos sobre a autenticidade de diversos artefactos arqueológicos integrantes da mesma colecção. Dado o referido envolvimento do Regimento de Infantaria nº1 de Queluz (onde eu prestara serviço militar poucos anos antes) solicitei a colaboração do meu colega Fernando Lourenço (militar profissional mas destacado no serviço de inventário do Departamento de Arqueologia) e iniciámos as averiguações pelo quartel (localizado nas instalações anexas ao palácio de Queluz). Confirmámos de facto a participação logística de um pelotão e de uma viatura militar no transporte de um conjunto de grandes lajes provenientes de uma pedreira próxima. Com algum embaraço, o oficial contactado justificou o envolvimento dos meios militares numa acção privada, como “contrapartida” pela "generosa oferta" ao Regimento de um estojo que “supostamente”, continha as armas do seu próprio fundador, o célebre Conde de Lipe. Apesar de aliviados quanto aos impactos arqueológicos do acto, rumámos depois até à quinta  de Belas, onde Daenhardt nos aguardava conforme acordado telefonicamente. Esclarecida a proveniência das “lajes”, podemos observar, num terreiro fronteiro à casa, uma tosca e atarracada “anta de corredor”, atamancada como se de um pedestal se tratasse, até porque sobre a “pedra da mesa”, estava assente uma desproporcionada estátua de javali… Com o máximo de seriedade a que as circunstancias nos obrigavam ouvimos as explicações de Daenhardt.  Exotérico assumido e confesso (ramo dos “Rosa Cruzes”, segundo referiu e nome que nada me dizia), a inauguração da "anta e do javali de bronze", fariam parte de um cerimonial a ter lugar no solstício (?) que se avizinhava e que celebraria os valores e as tradições antigas da Lusitânia, as glórias e desgraças sebastianistas, a decadência de Portugal começada em Alcácer Quibir e finalmente a regeneração, qual "Quinto Império", que se anunciava no horizonte (lembro que na altura toda aquela narrativa se parecia articular directamente nas recentes vitórias eleitorais da AD do pós-PREC, mas poderia ter sido apenas impressão minha…). Acompanhando o discurso, surgia sempre misturada a veia “antiquária” do interlocutor que não hesitou em nos mostrar algumas das suas “preciosidades”, sobretudo no campo da “armaria antiga”, incluindo o “mosquete” (espólio “comprovado” da Batalha de Alcácer Quibir que ele adquirira junto de um sheiqh árabe…) que iria ser disparado na inauguração da “anta”. Quanto ao “javali”, segundo a sua versão, era a cópia de uma antiga peça celta, referenciada por Leite de Vasconcelos na vizinha Serra da Lua, que se perdera mas que Reinardt viria a redescobrir numa coleção americana(?)… Na falta do original encomendara uma cópia em bronze, feita a partir de fotografia.
Javali da Ponta de Sagres, publicado por Estácio da Veiga e que Leite de Vasconcelos também reproduz no 2º volume das Religiões da Lusitânia e que nada tem que ver com o "javali"de Belas. Este, segundo Reinardt, proveniente de Sintra ter-se-ia perdido. Não consegui, no entanto, encontrar qualquer referencia em Leite de Vasconcelos, mas isso não significa que não exista.


Ainda hoje desconheço se a Dra Natália Correia Guedes, a quem reportei oralmente as minhas indagações, esteve presente na dita cerimónia, mas recordo que a mesma apareceu pouco tempo depois relatada com destaque e direito a fotos, no “Correio da Manhã”. Nunca mais me lembrei do assunto até que recentemente deparei com algumas fotos na INTERNET que, aparentemente, registam os estranhos factos a que acabo de me referir.


Fotos obtidas na INTERNET e que remetem directamente para factos (pelo menos similares) aos referidos no texto. e onde se vê a "anta construída" pelos militares de Queluz e o "javali de bronze" encomendado por Reinardt.

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