As Antas de Belas e o Quinto Império
No contexto do património pré-histórico da região da grande
Lisboa, o conjunto de três monumentos megalíticos conhecido como “Antas de
Belas” (Anta do Monte Abraão, Anta da Pedra dos Mouros e Anta da Esttria), é talvez um dos mais referidos desde que esta temática ganhou foros de
ciência em Portugal, desde logo porque foram objecto de precoce investigação por
Carlos Ribeiro, um dos fundadores da Comissão geológica do Reino e “pai” da Arqueologia
Pré-histórica nacional. Pessoalmente e embora já tivesse notícias desde a adolescência
de alguns destes monumentos (residia na Amadora e as vizinhas “Grutas de
Carenque” ou do "Tojal de Vila Chã", escavadas por Heleno nos anos 30 do Século
XX, eram então muito faladas pelas piores razões já que constava que eram o local habitual da prostituição de terceira
categoria…) só os viria a visitar já como estudante de História, normalmente no
âmbito de “excursões” organizadas pelos colegas mais interessados
nos temas arqueológicos e que incluíam ainda outros sítios clássicos, como a Gruta da Ponte da Lage ou o Castro de Liceia...
A Anta do Monte Abraão (foto pessoal dos anos 70) |
Antra ou Galeria Coberta da Estria (imagem da Internet). Em 2º plano viaduto da CREL. |
As três antas de Belas, cartografadas no site "Portugal Megalítico". Qualquer dos monumentos é bem visível no Google Earth, embora a foto desta zona seja de 2007, anterior à construção do Nó A16-A9. |
Mais tarde, profissionalmente, o conjunto de Belas, haveria de
cruzar-se comigo por diferentes motivos. Integraram de forma destacada o nº1
dos Roteiros da Arqueologia Portuguesa, (ver a este propósito) figurando a Anta do Monte Abraão na
respectiva capa. Foram posteriormente objecto de um programa de valorização e
sinalização promovido pelo Departamento de Arqueologia do IPPC na época em que
o dirigi, programa concretizado no terreno pela Teresa Marques e pelo Fernando
Lourenço. Mais tarde este conjunto megalítico acabaria por ser quase “engolido”
pela construção da CREL que alterou por completo a paisagem envolvente, apesar
de esta já estar muito transformada pelas pedreiras e pelas urbanizações dos
anos 60. A Anta da Estria, acabou por ficar mesmo integrada na área ajardinada
da área de serviço Sul da CREL (A9) construída nos anos 90 e até a Anta do
Monte Abraão esteve ameaçada pela construção do nó de ligação da A9 à A16.
Recordo a propósito uma complexa reunião que dirigi em finais de 2007 (estava
então fugazmente na direcção do Departamento de Salvaguarda do IGESPAR), envolvendo as
Estradas de Portugal e a empresa concessionária, nas instalações do antigo IPA
(hoje demolidas e substituídas pelo Museu dos Coches), onde se estabeleceram as
condições para que a obra pudesse avançar.
Mas o facto que melhor recordo, até pela sua excentricidade,
reporta-se a finais de 1980 (?), quando a Presidente do
IPPC, Dra Natália Guedes, licenciada em História e portanto obrigatoriamente
conhecedora das “Antas de Belas”, se viu confrontada com um convite formal para
uma cerimónia numa Quinta de Belas, promovida por uma figura conhecida,
Rainer Daenhardt, e envolvendo algumas entidades oficiais (o Regimento de
Infantaria de Queluz, por exemplo) e na qual estava prevista a “inauguração de
um dolmen”. Temendo que pudesse ter passado pela cabeça de alguém o
desmantelamento e a reconstituição de uma anta local, fui directamente incumbido, como arqueólogo do IPPC, de averiguar o que se
passava. Não conhecia pessoalmente Rainer Daenhardt, colecionador de armas antigas, de
ascendência alemã e residente numa quinta de família em Belas mas estava a par do contencioso que este mantinha com o Estado Português, a
propósito de uma colecção de armas antigas depositada no Museu Militar, até
porque, através do Museu Nacional de Arqueologia eu e outros colegas, tínhamos sido chamados a pronunciar-mo-nos sobre a
autenticidade de diversos artefactos arqueológicos integrantes da mesma
colecção. Dado o referido envolvimento do Regimento de Infantaria nº1 de
Queluz (onde eu prestara serviço militar poucos anos antes) solicitei a
colaboração do meu colega Fernando Lourenço (militar profissional mas destacado
no serviço de inventário do Departamento de Arqueologia) e iniciámos as averiguações
pelo quartel (localizado nas instalações anexas ao palácio de Queluz).
Confirmámos de facto a participação logística de um pelotão e de uma viatura
militar no transporte de um conjunto de grandes lajes provenientes de uma
pedreira próxima. Com algum embaraço, o oficial contactado justificou o envolvimento
dos meios militares numa acção privada, como “contrapartida” pela "generosa
oferta" ao Regimento de um estojo que “supostamente”, continha as armas do seu
próprio fundador, o célebre Conde de Lipe. Apesar de aliviados quanto aos
impactos arqueológicos do acto, rumámos depois até à quinta de Belas, onde Daenhardt
nos aguardava conforme acordado telefonicamente. Esclarecida a proveniência das
“lajes”, podemos observar, num terreiro fronteiro à casa, uma tosca e
atarracada “anta de corredor”, atamancada como se de um pedestal se tratasse, até
porque sobre a “pedra da mesa”, estava assente uma desproporcionada estátua de javali… Com o máximo de seriedade a que as circunstancias nos obrigavam
ouvimos as explicações de Daenhardt. Exotérico assumido e confesso (ramo dos “Rosa
Cruzes”, segundo referiu e nome que nada me dizia), a inauguração da "anta e do
javali de bronze", fariam parte de um cerimonial a ter lugar no solstício (?) que se
avizinhava e que celebraria os valores e as tradições antigas da Lusitânia, as
glórias e desgraças sebastianistas, a decadência de Portugal começada em
Alcácer Quibir e finalmente a regeneração, qual "Quinto Império", que se anunciava no horizonte (lembro que na
altura toda aquela narrativa se parecia articular directamente nas recentes
vitórias eleitorais da AD do pós-PREC, mas poderia ter sido apenas impressão minha…). Acompanhando
o discurso, surgia sempre misturada a veia “antiquária” do interlocutor
que não hesitou em nos mostrar algumas das suas “preciosidades”, sobretudo no
campo da “armaria antiga”, incluindo o “mosquete” (espólio “comprovado” da Batalha de
Alcácer Quibir que ele adquirira junto de um sheiqh árabe…) que iria ser disparado na inauguração da “anta”. Quanto ao “javali”, segundo a sua versão, era a cópia
de uma antiga peça celta, referenciada por Leite de Vasconcelos na vizinha
Serra da Lua, que se perdera mas que Reinardt viria a redescobrir numa coleção
americana(?)… Na falta do original encomendara uma cópia em bronze, feita a
partir de fotografia.
Ainda hoje desconheço se a Dra Natália Correia Guedes, a
quem reportei oralmente as minhas indagações, esteve presente na
dita cerimónia, mas recordo que a mesma apareceu pouco tempo depois relatada com destaque e direito a fotos,
no “Correio da Manhã”. Nunca mais me lembrei do assunto até que recentemente deparei com algumas fotos na INTERNET que, aparentemente, registam os estranhos factos a
que acabo de me referir.
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