quinta-feira, 25 de maio de 2017


Eduardo da Cunha Serrão e as "cerâmicas de ornatos brunidos"

Eduardo da Cunha Serrão, no Tejo  (Foto de António Martinho Baptista, finais dos anos 70)

Hoje mesmo, na Associação dos Arqueólogos Portugueses, no âmbito da apresentação pública dos três trabalhos de Arqueologia galardoados com o Prémio de Arqueologia "Eduardo da Cunha Serrão" (1ª edição), o meu amigo Vitor Oliveira Jorge proferirá uma intervenção sobre a importância e o papel daquele antigo presidente da AAP na Arqueologia portuguesa nas últimas décadas do século XX. Porque um dos trabalhos premiados e agora editados versa um tema muito caro a Cunha Serrão ("cerâmicas de decoração brunida") pareceu-me relevante aqui transcrever uma parte da introdução histórica da monografia do Castro dos Ratinhos  (Luis Berrocal Rangel e António Carlos Silva, MNA, 2010), em que se revela mais uma vez esse interesse de Cunha Serrão, pessoa com quem tive ainda o prazer de conviver, pela mão do Francisdo Sande Lemos e do Jorge Pinho Monteiro, e cuja casa de Campo de Ourique recordo, cada vez que passo junto ao Canas.



Em 1960, já depois de afastado há alguns anos da arqueologia de campo, o Castro dos Ratinhos cruza-se de novo com Fragoso de Lima. Isso acontece de novo por interposta pessoa, neste caso a estudante sua conterrânea, Wanda Rodrigues e Rodrigues, então também aluna de Manuel Heleno. Com efeito, no âmbito da preparação da respectiva tese de licenciatura, aquela estudante viria a realizar no Verão de 60 alguns trabalhos no Castro dos Ratinhos em circunstâncias que só muito recentemente nos foi possível registar, graças ao seu próprio testemunho[1]. Curiosamente, fora através de Afonso do Paço, à época Presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses, que Wanda Rodrigues, numa visita de estudo à sede daquela Associação, tomara conhecimento da existência do Castro dos Ratinhos. Afonso do Paço, ao saber que a jovem estudante era natural de Moura e procurava tema para a “tese”, chamara-lhe a atenção para o potencial interesse do Castro dos Ratinhos. Como se sabe, Paço colaborava com Pires Gonçalves na zona de Reguengos de Monsaraz e Mourão e deveria ter visitado o Castro dos Pardieiros e, eventualmente, os próprios Ratinhos. Em todo o caso, não deixa de ser surpreendente que, dadas as sua péssimas relações com Manuel Heleno, tenha feito uma tal sugestão a uma inexperiente aluna deste. A não ser que Paço, com essa atitude, estivesse a enviar ao seu adversário uma qualquer mensagem indirecta, dando-lhe a perceber que conhecia bem as “riquezas” que aquele parecia afinal ignorar no seu próprio “território”. Wanda Rodrigues, sem a mínima suspeita do eventual “segundo sentido” da proposta, acaba por acolher a sugestão e após uma primeira visita ao Castro no Inverno de 1959-60, acompanhada por Manuel Farinha dos Santos, assistente e colaborador muito próximo de Heleno, decide aí proceder a escavações, às suas próprias custas. De referir que, fazendo fé no testemunho recente de Wanda Rodrigues, quer na sua percepção, quer na do próprio Farinha dos Santos, o “Castro” se limitaria à plataforma mais elevada (a que chamamos hoje de “acrópole”) o que, não sendo estranho para uma aluna inexperiente já é mais difícil de aceitar da parte do arqueólogo. De qualquer modo, as escavações, tuteladas por Farinha dos Santos que entretanto, na expressão da própria Wanda Rodrigues, “registara” o sítio arqueológico[2], viriam a ter lugar no Verão de 1960 e constaram, segundo a sua própria descrição, de um conjunto de pequenas “valas” abertas por trabalhadores rurais, na plataforma mais elevada, onde ainda hoje são observáveis pequenas depressões de 1x1m, próximas do respectivo talude, que poderão corresponder a estas mesmas sondagens.[3] Como metodologia e procurando seguir as instruções de Farinha dos Santos que não participaria directamente nos trabalhos, Wanda Rodrigues limitar-se-ia a acompanhar o trabalho dos cavadores, recolhendo as cerâmicas e anotando a profundidade a que as mesmas eram descobertas. A partir dos materiais recolhidos, que incluíram também duas “pontas de lança” em bronze, Wanda Rodrigues viria a apresentar e a defender tese de licenciatura na Faculdade de Letras[4]. Alguns desses materiais seriam entretanto depositados no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, onde ainda hoje se encontram, instituição onde chegou a ser convidada para colaborar mas cujo “ambiente”, segundo nos confessou, lhe não terá agradado[5]. Em todo o caso, facilitaria os dados obtidos a José Fragoso de Lima, em particular os que diziam respeito às “cerâmicas de ornatos brunidos” cuja importância contextual destacara já na sua tese como veio a reconhecer aquele arqueólogo. (“Estamos de acuerdo en principio con las sugerencias y paralelismos observados por la señorita Wanda Rodrigues, y ciertos aspectos de estas cerámicas parecen recordar, dentro de determinados limites, cerámicas del Castro de Medeiros, Monterrey (Orense) y con estaciones portuguesas tales como la Gruta de Vimieiro; el Castro de Mangancha (cerca de Aljustrel): Mesa dos Castelinhos (Messejana). En la Cueva llamada Lapa do Fumo (Sesimbra) existen ejemplares que hasta cierto punto pueden relacionarse con la cerámica de Ratinhos” Lima, 1960,). O mérito de Fragoso de Lima residiria assim e em particular, na rápida divulgação da descoberta, quer por contacto pessoal junto de arqueólogos espanhóis, como Maluquer de Motes e Juan Carriazo, das Universidades de Barcelona e Sevilha, quer através da publicação, ainda esse mesmo ano de uma pequena mas oportuna Nota na conceituada revista Zephyrus (Lima,1960) de Salamanca, proporcionando deste modo o reconhecimento internacional do Castro dos Ratinhos.


Wanda Rodrigues, revisitando os Ratinhos em 2005

Com o auto-afastamento de Wanda Rodrigues e apesar da importância científica dos achados, o Castro dos Ratinhos cai de novo no esquecimento. Manuel Heleno que “controlava” a Arqueologia na região de Moura, dispersava a sua atenção por muitos outros projectos. Farinha dos Santos inclinava-se mais para a Pré-história Antiga, facto que se confirmaria com o com o seu envolvimento no estudo da Gruta do Escoural, descoberta pouco tempo depois (1963). Assim, só em 1970, por coincidência no ano da morte de Manuel Heleno, surgiria nova intenção de escavações no Castro dos Ratinhos, agora protagonizada por Eduardo da Cunha Serrão, um outro membro proeminente da Associação dos Arqueólogos Portugueses. Com efeito, nas escavações da Lapa do Fumo de 1956, Cunha Serrão identificara pela primeira vez em território português, cerâmicas com “ornatos brunidos” tendo dado notícia da descoberta logo em 1958 na revista Zephyrus (Serrão, 1958). Atendendo às suas relações com Afonso do Paço e Pires Gonçalves na Associação dos Arqueólogos Portugueses,  Eduardo Serrão deverá ter tido notícia indirecta dos trabalhos de Wanda Rodrigues mas foi, certamente, através do artigo de Fragoso de Lima de 1960, que se terá apercebido da importância dos Ratinhos para o esclarecimento da origem e da cronologia daquelas cerâmicas. Por outro lado, conforme testemunho de Teresa Gamito, Manuel Heleno sabendo do interesse de Cunha Serrão por este tipo de cerâmicas, chegara a mostrar-lhe as cerâmicas dos Ratinhos depositadas no MNAE, mas sem identificar a sua origem, numa atitude que podemos interpretar de clara “demarcação territorial”[6]. Dados os antecedentes e circunstâncias, vale a pena transcrever integralmente, o requerimento enviado por Cunha Serrão ao Ministro da Educação Nacional, em 5 de Janeiro de 1970, solicitando autorização para escavar no Castro dos Ratinhos e referir, porque algum significado deverá ter, o facto do requerimento ter ficado sem resposta durante seis meses. Cunha Serrão que recebera quase de imediato um cartão manuscrito pelo próprio Ministro, José Hermano Saraiva, em que este agradecia as publicações anexas ao “requerimento” e informava ter remetido o assunto “à atenção do serviço competente”, vê-se na contingência de, na ausência de resposta, a enviar segunda via do pedido em 17 de Julho de 1970, acompanhada da cópia do cartão do próprio Ministro que ainda hoje consta do processo. Finalmente em 22 de Agosto de 1970, em parecer da 1ª sub-secção da 2ª Secção da Junta Nacional da Educação, assinado por Fernando de Almeida, sucessor de Manuel Heleno no Museu de Arqueologia e na Cadeira da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Cunha Serrão seria autorizado a escavar no Castro dos Ratinhos.

(Requerimento de Eduardo da Cunha Serrão, de 5 de Janeiro de 1970)
“Senhor Ministro da Educação Nacional
Excelência
Eduardo José de Miranda da Cunha Serrão. Licenciado em Ciências Económicas e Financeiras, tem realizado entre outros, vários estudos relativos a uma espécie cerâmica decorada com “ornatos brunidos” que pela primeira vez se evidenciou em Portugal em 1956 durante a exploração da Lapa do Fumo (Sesimbra) – estação que detectou e tem explorado- e, pouco depois, no Castro dos Ratinhos (Moura).
Uma possível variante desta cerâmica era conhecida em Espanha e havida sido recolhida em Carmona e Mesas de Asta. Quase na mesma altura em que foram exumados os exemplares da Lapa do Fumo, apareceu em grande quantidade na estação de El Carambolo (Sevilha), acompanhando o célebre tesouro considerado tartéssico, constituído por placas, braceletes e um colar, de oiro, peças de grande valor arqueológico e intrínseco, e de grande beleza.
A datação pelo método estratigráfico desta cerâmica andalaluza tem ocupado alguns arqueólogos espanhóis (Prof. J. de Mata Carriazo, Maluquer de Motes, J. Pedro Garrido, J.M. Blásquez, etc.), para o que realizaram várias e metódicas escavações, sendo possível colocá-la entre os séculos IX e IV a. C.
À variante portuguesa tem-se dedicado, com particular atenção, o signatário que, pelos dados estratigráficos da Lapa do Fumo, a considera pós-campaniforme, contemporânea dos recipientes da fase final do Bronze e imediatamente anterior às primeiras cerâmicas fabricadas com torno rápido.
Em Setembro p.p., o signatário deslocou-se a Sevilha, Carmona e Jerez de la Frontera, para avaliar o grau de paralelismo entre as duas variantes (se já podemos  considerá-las como variantes, pois podem não passar de sub-tipos de um tipo ainda mal identificado), tendo colhido elementos que lhe permitiram apresentar uma comunicação sobre o assunto nas Jornadas Arqueológicas promovidas em Novembro p.p., pela Associação dos Arqueólogos Portugueses.
Mas, o problema que mais interessa agora é, à semelhança do que se tem feito em Espanha, obter dados sobre cronologia noutras estações do nosso território para os comparar com os da Lapa do Fumo e integrar no admissível quadro cultural respectivo, cuja área geográfica parece ser Portugal ao Sul do Tejo e a Andaluzia.
Ora o signatário está convencido de que o Castro dos Ratinhos (Moura), poderá ser a estação portuguesa que, depois da Lapa do Fumo, melhores esclarecimentos prestará a tal respeito, não só fundamentado nas sumárias descrições feitas pelo Dr. Fragoso de Lima (Zephyrus, 1960), mas também nas informações que amavelmente lhe prestou o Senhor Dr. Manuel Farinha dos Santos. Este último informou-o, ainda, de que em tempos, a exploração do Castro dos Ratinhos lhe foi entregue e que concedeu facilidades à licenciada Exmª Senhora D. Vanda Rodrigues para, sobre as respectivas cerâmicas com “ornatos brunidos”, elaborar a sua dissertação de licenciatura. Porém, tal dissertação não chegou a ser apresentada e a Senhora Vanda Rodrigues (que não se encontra presentemente na Metrópole) limitou-se a fornecer ao Sr. Dr. Fragoso de Lima os elementos que lhe permitiram o referido estudo sumário que publicou na Zephyrus.
Conhecedor destes factos, o signatário ofereceu ao Sr. Dr. M. Farinha dos Santos a sua colaboração para trabalhar no Castro dos Ratinhos, tendo obtido como resposta que o poderia fazer individualmente, dados os muitos trabalhos arqueológicos em que o Dr. M. Farinha dos Santos se encontra comprometido presentemente.
Uma vez que os problemas com das cerâmicas com “ornatos brunidos” do nosso território assumem apreciável importância e se os quisermos solucionar ao nível peninsular do qual não se pode desintegrar, conviria não protelar o estudo das estações conhecidas que, para tal efeito, melhor se prestam.
Portanto, o signatário solicita de V.Exª. se digne autorizá-lo a efectuar sondagens e escavações no Castro dos Ratinhos com o objectivo de confrontar os resultados que obtiver com os da Lapa do Fumo e com os elementos que, na Andaluzia, lhe foram prestados pelo Prof. Mata Carriazo Manuel Esteves Guerrero e Dr. H. Schubart.
Como plano de trabalhos, de momento, apenas pode declarar que pretende:
     1º- Examinar, com a devida atenção, o Castro dos Ratinhos (que ainda não conhece), para poder avaliar a sua estrutura geral e quais os locais onde poderá realizar prospecções e explorações;
     2º- Concretizado o que acaba de expor, proceder a uma exploração na zona que lhe parecer mais prometedora de bons resultados;
     3º - Na exploração que efectuar, colocará em primeiro plano a obtenção de dados estratigráficos que lhe permitam obter uma cronologia relativa para a cerâmica “com ornatos brunidos” do Castro dos Ratinhos, estação esta que, pela sua posição geográfica (próximo da fronteira), deve fornecer elementos que estabelecem a relação entre as variantes portuguesa e andaluza.
     4º - De todos os resultados obtidos, dará conhecimento a V.Exaª em relatórios circunstanciados a elaborar oportunamente.
     5º- Todo o material que vier a ser recolhido será entregue, devidamente inventariado, ao Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, ou à instituição que Vossa Excelência, no seu alto critério, se dignar determinar.
     Quanto ao seu curriculum, o signatário permite-se remeter V.Exª para os elementos que, a tal respeito, acompanharam outros pedidos de exploração que apresentou (da Lapa do Fumo, por exemplo) e a acrescentar que, presentemente, desempenha as seguintes funções todas relativas à investigação arqueológica: Director do Museu Arqueológico Municipal de Sesimbra; Delegado da Junta de Educação Nacional da Educação no Concelho de Sesimbra; Presidente da Secção de Pré-história da Associação dos Arqueólogos Portugueses. Mas, se Vossa Excelência, assim o desejar apresentará uma relação de todos os estudos que, até hoje, publicou individualmente ou de colaboração com outros arqueólogos. Apenas junta, agora, os dois que mais interessam ao caso.
Submeto o assunto à apreciação de Vossa Excelência, aguardo o favor de uma resposta e apresento cumprimentos de elevada consideração.
Lisboa, 5 de Janeiro de 1970
Eduardo da Cunha Serrão”

Cunha Serrão, no entanto, nunca chegaria a tirar partido da autorização para escavar no Castro dos Ratinhos. Antes de mais por falta dos meios e condições adequadas a uma intervenção num sítio então, praticamente, sem acessos[7]. Por outro lado, porque um ano depois, seria arrastado por um grupo de jovens aspirantes a arqueólogos que apadrinhava, para a aventura de estudo e salvamento da “Arte Rupestre do Vale do Tejo”, cujos primeiros núcleos foram descobertos em Fratel, Vila Velha de Ródão, em Outubro de 1971[8]. O Castro dos Ratinhos, apesar de algumas citações ocasionais, especialmente de autores estrangeiros (Schubart, 1971,1975; Frankenstein, 1997; Coffyn, 1985) e de uma ou outra visita de arqueólogos ou mesmo de “pesquisadores de tesouros”[9], entraria em novo período de olvido. Em todo o caso o seu prévio reconhecimento e os ecos das diversas referências entretanto feitas, permitiu que passasse quase incólume às grandes transformações verificadas na sua envolvente quando em 1976, se iniciaram os trabalhos preparatórios para a construção da Barragem do Alqueva, com o desvio do curso do Guadiana e a construção da respectiva ensecadeira.
Entretanto em 1981, durante os trabalhos de inventariação e reorganização das colecções do Museu Nacional de Arqueologia, promovidos pela direcção de Francisco Alves, um dos colaboradores nessa tarefa, João Ludgero, reencontrou as cerâmicas do Castro dos Ratinhos que Manuel Heleno tão ciosamente guardava na sua secretária, fazendo chegar essa informação a Teresa Gamito e José Morais Arnaud. No âmbito de preparação da respectiva tese de Doutoramento, Teresa Gamito interessava-se então pelos castros da Idade do Ferro na envolvente do Guadiana, enquanto José Morais Arnaud, encontrara cerâmicas semelhantes em sondagens realizadas em meados dos anos setenta na Corôa do Frade, um outro grande povoado do Final da Idade do Bronze, situado nos arredores de Évora (Arnaud, 1979). Justificando o especial interesse por este tipo de cerâmicas bem como sobre o sítio da sua origem, Teresa Gamito viria a estudar aquela pequena colecção dos Ratinhos, em artigo que publicaria mais tarde na revista do Museu, O Arqueólogo Português (Gamito, 1990-92). Nesse trabalho, depois de destacar o papel de Cunha Serrão na identificação das cerâmicas de ornatos brunidos e de traçar o estado da questão no que respeita ao Sudoeste Peninsular, Teresa Gamito propõe uma original e pertinente relação entre os padrões geométricos dos respectivos motivos decorativos e a decoração dos “torques” de ouro maciço, peças de ourivesaria características do Bronze Final do Sudoeste Peninsular. Ainda que o objectivo daquele trabalho estivesse especialmente centrado nesta cerâmica, a Teresa Gamito que procedera com José Arnaud a um reconhecimento prévio de contextualização do próprio Castro, se deve também o mérito de nova e decisiva chamada de atenção para este importante sítio, nas vésperas de arranque dos Projectos Arqueológicos do Alqueva. Pelas razões já antes referidas, o Castro dos Ratinhos não mereceria no âmbito dos numerosos trabalhos arqueológicos associados à obra da Barragem, qualquer atenção especial. Mas a partir do momento em que as comportas se fecharam (Fevereiro de 2002) iniciando a formação do gigantesco Lago do Alqueva junto à sua vertente Norte, a forte presença do Castro e da sua “acrópole” ganhou especial relevância na paisagem transfigurada. A decifração dos enigmas que escondia sobre o fim da Pré-História e o início da História, impôs-se-nos então como um desafio a que não podíamos deixar de corresponder.





[1] Em visita ao Castro dos Ratinhos efectuada em 10 de Novembro de 2005 e acompanhada por um dos autores (ACS).
[2] Ainda que nos arquivos da JNE, não apareçam quaisquer registos, o que não é de estranhar, já que sendo a respectiva “subsecção de arqueologia” presidida por Manuel Heleno, este deveria dispensar-se a si e aos seus colaboradores dos procedimentos legais já então previstos na lei. Farinha dos Santos não terá participado directamente nas “escavações” que foram conduzidas no terreno apenas por Wanda Rodrigues.
[3] Na chamada “terceira linha”, duas dezenas de metros a Oeste das Sondagens 2004-05 (localizadas no sector I16 , segundo a nova nomenclatura) há vestígios de outras sondagens antigas que inicialmente atribuímos a Wanda Rodrigues, hipótese entretanto descartada pelo seu testemunho.
[4] Segundo informação de Santiago Macias que fez pesquisas nesse sentido ,ao contrário do que seria habitual não se conserva qualquer exemplar na respecyiva Biblioteca. Wanda Rodrigues, tão pouco, conserva cópia da mesma, tendo perdido entretanto a maior parte da documentação, nomeadamente as fotografias.
[5] Wanda Rodrigues, viria a iniciar a sua carreira como professora no Liceu de Moura entre 1961 e 65, afastando-se definitivamente da Arqueologia, meio onde ainda privou com colegas da sua geração como Maria Amélia Horta Pereira, Irisalva Moita ou Maria Luisa Estácio da Veiga. Em 1965 parte para Moçambique onde continua a carreira de professora liceal de onde só regressa em 1976 para se fixar em Setúbal e ensinar no respectivo Liceu, onde se viria a reformar. Conserva ainda na sua posse alguns registos e alguns materiais das “escavações” de 1960 que projecta vir a oferecer ao Museu Municipal de Moura.
[6] Teresa Gamito refere que Eduardo Cunha Serrão lhe contara que por volta de 1970, no decorrer de uma visita efectuada anos antes ao Museu Nacional de Arqueologia,  “Manuel Heleno lhe havia mostrado uma série de fragmentos de cerâmica de ornatos brunidos provenientes de um “castro” da região de Moura que guardava ciosamente numa gaveta da sua secretária” (Gamito, 1990)
[7] Como a generalidade dos arqueólogos da altura, ECS tinha outra profissão (economista) e a Arqueologia, apesar da sua exemplar competência e seriedade, era realizada nos tempos roubados ao descanso e por isso, preferencialmente focalizada na envolvente dos locais de residência ou de trabalho. Por outro lado, não existia ainda a infra-estrutura rodoviária relacionada com a Barragem do Alqueva.
[8] Um dos autores (ACS) enquanto colaborador naquele projecto, foi testemunha directa do desinteressado e generoso envolvimento de Eduardo Cunha Serrão nos trabalhos de salvamento da Arte Rupestre do Vale do Tejo.
[9] Para além de ténues vestígios na “acrópole” relacionados com os trabalhos de Wanda Rodrigues, os Ratinhos apresentam ainda alguns sinais de sondagens (?) de autoria “incógnita”, para além de diversas marcas de actividade prospectiva ilegal (“detectores de metais”). Não é por isso de excluir que os metais publicados por João Cardoso, uma ponta de lança e dois contos do Bronze Final, adquiridos por terceiros num antiquário e Setúbal e atribuídos a um “achado ocasional” na zona da Barragem do Alqueva, sejam de facto produto de actividade de pesquisa ilegal efectuada no próprio Castro dos Ratinhos (Cardoso et allii, 1992).

Regresso ao Vale do Guadiana 


O "sarcófago" que protege o Castelo da Lousa, bem visível no sonar...

A percepção da profunda transformação paisagística do vale do Guadiana, entre a Juromenha (Alandroal) e o Pedrógão (Vidigueira) numa extensão de quase cem quilómetros, é algo que é difícil ou mesmo impossível traduzir por palavras. É preciso ter vivido aquele território para se ter a noção da mudança radical ali havida em tão poucos anos. Afinal, o enchimento começou há 15 anos (2002) se bem que já antes, com a desmatação sistemática, as mudanças tivessem começado a manifestar-se. É pois sempre com um misto de nostalgia mas também de algum indisfarçável orgulho, por ter participado no processo (esperando ter contribuído para que ele não fosse tão traumático...) que observo aquela nova paisagem "lacustre" sempre que por ali passo, normalmente em serviço.



Mas nesta década e meia, havia algo que ainda não experimentara. Não porque não tivesse tido muitas oportunidades para o fazer mas porque havia uma espécie de réstia de pudor que o parecia impedir. Navegar por cima daquela paisagem que, pelo menos desde os anos 70 (escavações no Xerez de Baixo, com o Luis Raposo), me habituara a percorrer com os pés bem assentes na terra, aprendendo o que era a dura realidade da canícula alentejana, ainda sem suspeitar que um dia por aqui haveria de assentar arraiais.


Pois finalmente, esse "tabu" caíu, ontem mesmo, por força de um desafio do Martin Hock, o arqueólogo alemão, há muito radicado entre nós e professor há algumas décadas na UBI (Universidade da Beira Interior) onde, através da topografia especializada, tem ajudado a incutir em várias gerações de engenheiros ali formados, uma perspectiva mais humana do território. O Martin, (com quem na distante década de oitenta, em conjunto com o Jorge Raposo do Centro de Arqueologia de Almada, aprendi os princípios básicos da topografia, através do manejo em campo da "alidade prancheta", em trabalhos no chamado "Castelo de Alpiarça", ou nas ruínas romanas da Boca do Rio, Lagos) veio-me sugerir a concretização de uma experiencia de aplicação do "sonar", ao controlo da situação de estruturas afundadas pela Barragem do Alqueva. Ambos pensámos de imediato no Castelo da Lousa, por razões compreensíveis. Em 1997, quando na EDIA promovi os primeiros trabalhos de campo, aquele sítio estava no centro das minhas preocupações, e apesar de uma planta efectuada anos antes por Jurgen Wahl, havia necessidade de produzir um novo levantamento, completo e rigorosamente georeferenciado, perante a inevitabilidade da inundação. O trabalho viria a ser adjudicado à UBI e, naturalmente coordenado no terreno pelo Martin Hock, embora tivesse envolvido vários técnicos e alunos daquela Universidade.
O Martin Hock e o José Perdigão, sobre o Castelo da Lousa

O Castelo da Lousa, já protegido pelo sarcófago de sacos de areia (2002). À esquerda um dos marcos de apoio topográfico do projecto de georeferenciação e levantamento topográfico da UBI, coordenado pelo Martin Hock

Foi pois com alguma emoção (e vinte anos mais velhos) que, com a colaboração da EDIA e o apoio directo de uma equipa daquela empresa, coordenada pelo José Perdigão, (o meu antigo e indispensável assistente "todo-o-terreno") que também participou em todo o processo da Lousa e não só), que navegámos durante largos minutos sobre as ruínas do velho "Castelo da Lousa", cujo topo se encontra 15 metros a baixo da actual cota (147). Foi particularmente emotivo o momento em que a forma do gigantesco sarcófago de sacos de areia, surgiu nitidamente no sonar, confirmando o rigor das coordenadas obtidas duas décadas antes pela equipa do Martin. Embora falte tratar os dados obtidos de modo a se construir uma imagem 3D da área sondada, os resultados parecem apontar para a manutenção das condições de estabilidade de toda a estrutura, já observadas há uns cinco anos numa delicada operação de mergulho então promovida pelo Museu da Luz.




O topo da colina, onde se situava o "Povoado Calcolítico do Moinho de Valadares". Esta zona é sazonalmente coberta pelas águas, intensificando a erosão.
As escavações no Povoado do Moinho de Valadares (1999)

















Não nos ficámos pela Lousa, cuja localização, observável do Museu da Luz e da nova aldeia, seria interessante assinalar fisicamente de alguma maneira, no que seria uma evocação de enorme simbolismo. Passámos depois junto a Valadares, onde se localizava um pequeno povoado calcolítico escavado a meia encosta pela equipa do António Valera, e cuja cota muito superficial, o transforma na vítima perfeita da forte erosão marginal que era expectável e cujos resultados observámos. Em frente, após passagem junto à pequena ilha que assinala o demolido "Convento do Alcance", parámos no abrigo da "Rocha da Moura", uma pequena falha no xisto dominante, a que se acedia subindo com dificuldade...
A "Rocha da Moura", estudada arqueologicamente pela equipa da Susana Correia. Hoje, ao nível das águas (cota 147) mas frequentemente submersa.

 A localização da antiga Fábrica da Celulose junto à antiga ponte metálica do Guadiana (ambas demolidas), adivinha-se pela presença da velha estrada que hoje emerge das águas na direção de Mourão. Nas proximidades, julgamos ter detectado no sonar a pequena mamoa artificial que construímos sobre o que restava da Anta (da Fábrica) aí escavada pela equipa do Jorge Oliveira, da Universidade de Évora.

A velha estrada de Mourão, após a ponte metálica do Guadiana. À esquerda situava-se a Fábrica da Celulose e à direita a "Anta da Fábrica", hoje protegida por uma "mamôa".

A nova mamoa da "Anta da Fábrica de Celulose" (2001) que pensamos ter localizado com o "sonar"
Seguindo mais para Norte, frente a Monsaraz, observámos do lado de Mourão a larga baía que corresponde à "Vila Velha", a povoação que a História esquecera mas que a tradição oral ainda guardava e que o Alqueva e a Arqueologia (neste caso graças à equipa coordenada pela Heloísa Santos) redescobriu e escavou até que ao dia em que as águas chegaram. Do outro lado do lago, numa zona que pela topografia é das mais largas do regolfo, apenas a nova ponte nos ajuda a localizar os muitos sítios, de todas as épocas, testemunhos de um intenso povoamento do vale que dava pelo nome de Xerez: os paleolíticos nos Sapateiros (logo na base de um dos grandes pilares da actual ponte...); os vestígios dos últimos caçadores-recolectores mesolíticos da Barca do Xerez, hoje a grande profundidade; os restos dos assentamentos dos primeiros agricultores no Xerez 12, sem esquecer finalmente o local em que o Dr. Pires Gonçalves, descobriu vários menires que mais tarde reinstalara em "quadrado", como Cromeleque do Xerez (hoje deslocalizado para junto da Orada).
O Vale do Xerez, cenário de intensa ocupação humana desde o Paleolítico até ao final do Século XX, é hoje um extenso lago.
A proteção das Antas no Vale do Xerez. Em cima a Anta do Piornal (com a actual ponte em 2ºplano), anta da margem direita, que fazia dupla com a Anta da Fábrica, na margem esquerda, à mesma cota. Em baixo Anta do Xerez, escavadas pelo Prof. Victor Gonçalves.


















A nossa navegação, passaria ainda por uma das grandes escavações do Alqueva, o "Povoado do Porto das Carretas", conduzida pelo Carlos Tavares da Silva e a Joaquina Soares, os arqueólogos que haviam identificado o sítio calcolítico no início dos anos oitenta. As estruturas arqueológicas, de pouca potência e actualmente protegidas por espessa camada de areia, não são relevantes para o sonar. Mas a localização, do povoado, em esporão sobre uma antiga passagem do rio, o Porto das Carretas, protegida na época da Restauração por uma atalaia, não deixou de ser assinalada pela nossa instrumentação.
Navegando sobre o "Porto das Carretas"

As escavações no Porto das Carretas (1989)

A nova ponte de Mourão, em construção (2000?) e na actualidade. A sua construção permitiu a descoberta e escavação do sítio paleolítico dos Sapateiros, sob a direção do Prof. João Pedro Ribeiro

Detalhe do excelente poster (Anyforms) produzido para a National Geographic (Abril 2014) em colaboração com a EDIA, sobre o património cultural e ambiental do Alqueva, assinalando a posição relativa de estruturas como o Castelo da Lousa no actual lago do Alqueva.

A "romagem" estava a terminar e havia que regressar,à Luz. Enquanto navegávamos em velocidade de cruzeiro, invadiu-me uma estranha sensação de ter acabado de percorrer de novo mas numa outra dimensão espaço/temporal, caminhos tantas e tantas vezes trilhados durante os seis anos em que coordenei os trabalhos no Vale (1996-2002). Nesse período, a partir do meu escritório de Mourão, ia quase diariamente ao campo para acompanhar o progresso dos muitos trabalhos em curso, recolhendo directamente junto dos colegas responsáveis, a informação necessária à tomada das decisões mais adequadas em face dos resultados, tantas e tantas vezes completamente inesperados, como é afinal, próprio e por definição, da natureza da arqueologia...


quinta-feira, 18 de maio de 2017

O vigésimo aniversário do IPA


Em mensagem hoje mesmo colocada no ARCHPORT, a Jacinta Bugalhão veio recordar (com algum atraso conforme ela própria reconheceu) o vigésimo aniversário da publicação da lei orgânica que institucionalizaria o IPA, o Decreto-lei 117/97 de 14 de Maio. Já agora, em maré de efemérides, poderiamos também recordar que em 29 Março passado, passou o 10º aniversário da extinção do mesmo IPA, por força do PRACE socrático (DL 96/2007, fusão do IPPAR com o que restava do IPA e da DGEMN), pondo termo a uma experiência que, apesar de aspectos menos positivos, marcou decisivamente a arqueologia portuguesa contemporânea.


 Antes de aqui transcrever, com todo o gosto, as palavras escritas pela Jacinta, aproveito para recordar que o IPA, de algum modo seria o corolário de todo um processo de transformação da Arqueologia portuguesa, verificado no último quartel do Século XX, processo que várias vezes tenho evocado neste blog, carreando para a história do mesmo, alguns documentos menos conhecidos ou pouco acessíveis. Processo que teve os primeiros episódios logo a seguir ao 25 de Abril (como se evocou há dois anos em sessão organizada pelo MNA), que se continuou com a criação dos Serviços Regionais de Arqueologia do IPPC  no início dos anos 80 e que culminaria com toda a crise desencadeada pelas descobertas de arte rupestre no Côa, divulgadas em 1994. A vitória de António Guterres nas eleições de 1995 viria finalmente a criar as condições para o cumprimento de algumas promessas avançadas na campanha eleitoral, nomeadamente a paragem das obras na barragem e a criação de estruturas de arqueologia autónomas. Este último processo, porém, não seria linear nem pacífico. Em Novembro de 1995, o Ministro Manuel Maria Carrilho nomearia o Vitor Oliveira Jorge para dirigir uma Comissão Instaladora de um futuro Instituto de Arqueologia, para a qual seriam também convidados o Luiz Osterbeck e eu próprio.



Recortes do Público e do Expresso de 18 de Novembro de 1995, anunciado a criação da Comissão Instaladora do IPA sob a direcção do Prof. Vitor Oliveira Jorge


 Divergências quanto ao modelo do novo Instituto, em parte condicionadas também por restrições de ordem financeira e não apenas por diferentes visões técnicas, acabariam por levar ao afastamento da Comissão Instaladora original (já reduzida a dois elementos, pois eu a partir de Maio de 1996 estava já no Alqueva a dirigir os trabalhos de arqueologia). João Zilhão, designado por Carrilho para coordenar os trabalhos no Côa que levariam ao reconhecimento da Arte Rupestre como Património da Humanidade, acabaria por liderar o processo na sua fase final e ser o primeiro Director do IPA, coadjuvado pelo António Monge Soares, quando este foi finalmente criado em Maio de 1997.

A mensagem da Jacinta Bugalhão:

Colegas

Com alguns dias de atraso (distraí-me), serve a presente para relembrar os 20 anos que passaram sobre a criação do IPA, cuja curta existência e intervenção foram um dos factores principais de mudança e evolução da arqueologia portuguesa das últimas décadas.

Para além da lei-orgânica que envio em anexo, permito-me transcrever, aqui, em directo, o preâmbulo, cujo texto bem ilustra a densidade de conteúdos envolvidos em toda a história do IPA que trespassaram para a arqueologia nacional no passado recente.

Que nos sirva de inspiração, nestes tempos mais sombrios, em que parece tudo correr bem à nossa volta, mas no património cultural, não se nota mesmo nada...

Saudações arqueológica,

Jacinta Bugalhão

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Preâmbulo do Decreto-lei que criou o IPA

O estado incipiente de desenvolvimento e de estruturação em que se encontra a actividade arqueológica em Portugal tem sido causador de prejuízos acentuados para o País, tanto pela perda de património e informação de interesse relevante, nacional ou mesmo internacional, como pela perda de investimentos vultosos decorrente da identificação tardia de bens  patrimoniais a cuja preservação o Estado Português está obrigado pela Constituição, pelas leis da República e pelos acordos internacionais de que é signatário.

Existindo já na Administração Pública organismos em cujas atribuições se encontra incluída a salvaguarda de determinados bens de natureza arqueológica, nomeadamente o Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR) e o Instituto Português de Museus (IPM), comprovadamente a sua natureza e vocação não lhes permite, porém, tratar adequadamente da detecção, preservação e gestão da categoria de vestígios arqueológicos mais abundante e potencialmente mais prenhe de informação sobre o passado: a dos contextos sem valor monumental que documentam a actividade das populações pré-históricas e a vida quotidiana das populações rurais e da gente comum dos centros urbanos de época histórica.

As necessidades da vida moderna tornam inevitável a realização de intervenções profundas na paisagem, que afectam a integridade do «arquivo de terra» em que está contida essa informação. Nos últimos decénios, generalizou-se assim, em todos os países desenvolvidos,

a prática de fazer preceder essas intervenções dos estudos arqueológicos necessários à recuperação do máximo de informação que, pelos padrões científicos do momento, é possível extrair dos «arquivos», cuja destruição é, após a sua detecção e reconhecimento, considerada permissível em caso de necessidade.

Por analogia com o princípio do «poluidor pagador», e em conformidade com a Lei n.o 13/85, de 6 de Julho, e com a Convenção Europeia para a Protecção do Património Arqueológico (La Valetta, Malta, 1992), de que o Estado Português é signatário, os custos decorrentes da adopção de uma política de gestão deste património arqueológico não monumental devem ser afectados aos promotores das intervenções que venham eventualmente a causar a respectiva destruição física, e não ao Estado. A este último deve caber a definição da legislação e das regras por que se deverá pautar a actividade, fiscalizá-la e recolher e pôr à disposição dos intervenientes a informação relevante disponível a cada momento nas bases de dados constituídas por sua iniciativa.

Não há política adequada de gestão, tanto no que se refere ao património monumental como ao não monumental, que não decorra de uma avaliação, a qual, por sua vez, depende de um estado de conhecimentos. Neste último se baseará, por sua vez, a definição de prioridades de investimento ou de conservação.

Deste modo, a gestão do património arqueológico em todas as suas vertentes é indissociável do apoio à investigação científica, apoio tanto mais necessário quanto, hoje em dia, a exploração adequada da informação arqueológica exige crescentemente o recurso a métodos derivados da física e das ciências naturais, competindo à administração central, na situação presente, desempenhar um papel de forte impulsionador do respectivo desenvolvimento.

Do mesmo modo, a importância crescente que tem vindo a ser revelada por duas categorias de vestígios arqueológicos com características próprias, que têm sido tradicionalmente objecto de menos atenção — a arte rupestre e o património cultural náutico e subaquático —, justifica a criação de serviços próprios dedicados especificamente às tarefas ligadas ao seu registo, estudo, divulgação e exploração científica.

O enquadramento de uma política de prevenção, de salvamento, de investigação e de apoio à gestão do património arqueológico imóvel e móvel (incluindo o que se encontra à guarda do IPPAR e do IPM) exigiu a criação de um organismo a isso especialmente dedicado.

Esse organismo deve ser dotado de meios humanos e financeiros e de uma estrutura orgânica à altura da tarefa.

Para esse efeito se criou na Lei Orgânica do Ministério da Cultura o Instituto Português de Arqueologia, cujas atribuições, competências e estrutura agora se definem.


Alguns documentos sobre a "Pré-história" do IPA:

Uma nota pessoal, dando conta de documentos a serem presentes ao Ministro Manuel Maria Carrilho em reunião agendada para 15 de Fevereiro de 1996

Memorando preparatório da Lei Orgânica do IPA, produzido pela Comissão Inistaladora (Fevereiro de 1996)

- de destacar que nesta proposta consta já a criação de estruturas dependentes para a Arqueologia Subaquática e para a Gestão do Parque Arqueológico do Côa, para além de 5 serviços regionais de arqueologia. Na lei finalmente aprovada em 1997, seria contemplada a criação de um serviço de arte rupestre, a par do Parque Arqueológico do Côa, mas não seriam criados serviços regionais. Esta grave lacuna na capacidade de intervenção do IPA seria resolvida "provisoriamente" com as chamadas "extensões". Nesta proposta surge também, como mera hipótese de trabalho sem qualquer sequencia posterior, a possibilidade de integração no IPA dos Museus de Arqueologia dependentes do Estado (Museu Nacional, Museu de Conimbriga e D.Diogo de Sousa).















quarta-feira, 17 de maio de 2017

Os barcos de pedra do Guadiana

recordando o Leonel Borrela


Por feitio mas também por razões de meu percurso profissional, apesar de ter começado por me dedicar, enquanto estudante de arqueologia, aos vestígios mais remotos da presença humana no nosso território (Paleolítico), acabei por tropeçar com os mais variados temas e materiais que, afinal, camada a camada, sedimentam as paisagens que nos rodeiam. Um dos temas que no Alqueva despertou a minha curiosidade, foi um conjunto de pequenas estruturas construídas que acompanhavam o Vale do Guadiana e que genericamente eram conhecidas por "atalaias". No âmbito dos inventários patrimoniais que realizámos na preparação do projecto arqueológico do Alqueva percebemos que essas estruturas obedeciam a modelos construtivos diversificados e a sua localização parecia não seguir um  padrão único. Por razões de proximidade com o rio, uma meia dúzia daquelas estruturas viria a ser afectada pelo enchimento da Barragem, motivo pelo qual a sua escavação e estudo viria a ser contratada com uma equipa de arqueologia, tal como aconteceu com muitas outras temáticas. Neste caso porém, e ao contrário da maioria dos projectos então contratados, apesar de cumpridos todos os compromissos de campo, incluindo a produção dos respectivos relatórios, a equipa não chegaria a publicar a esperada síntese monográfica (http://pedrastalhas.blogspot.pt/2014/12/apresentacao-dos-14-volumes-da-2-serie.html).

Vem, esta referencia a um assunto tão específico do registo patrimonial do Guadiana, a propósito de uma recente e triste notícia. O desaparecimento do amigo e companheiro Leonel Borrela, com quem me cruzei tantas vezes no Museu Regional de Beja, a casa a que dedicou tanto do seu engenho e arte como desenhador, ilustrador e investigador. É que, quando andava intrigado com as "atalaias" do Guadiana, dei conta, através de artigos publicados pelo Borrela no Diário do Alentejo (Março e Maio de 1996), que mais para jusante existiam também estruturas de carácter defensivo muito peculiares directamente relacionadas com a defesa da linha do Guadiana. Naturalmente, haveríamos de várias vezes trocar informações sobre o assunto ao qual o Leonel Borrela viria a dedicar especial atenção, ainda que segundo creio, sem grande impacto junto de quem se deveria interessar pela sua valorização e salvaguarda.A última notícia que tive da sua persistente campanha em prol deste património tão desconhecido, resultou de um artigo de divulgação surgido há cerca de um ano atrás no público.

Um dos fortins do Guadiana, na zona de Quintos

Recorte do Diário do Alentejo (19-3-2012)


A distribuição das atalaias na zona da Barragem do Alqueva, um terço das quais foram submersas pela Barragem do Alqueva. Na sua maioria, estavam relacionadas com a defesa da fronteira, nomeadamente durante as Guerras da Restauração. São estruturas diferentes das estudadas por Borrela na zona de Quintos, se bem que entre Juromenha e a Ponte da Ajuda exista uma estrutura (São Rafael) muito próximo do leito de cheia e, preparada para suportar o impacto das correntes.

Uma das atalaias do Guadiana, submersa pelo Alqueva, "Xarez", nas proximidades de Monsaraz. Controlava a passagem do "Porto das Carretas", na antiga estrada Monsaraz-Mourão.
Nota em que me refiro ao trabalho de Leonel Borrela, em artigo de inventariação (Atalaias do Termo de Monsaraz), de colaboração com o José Perdigão.





segunda-feira, 15 de maio de 2017



Caminhando em terras de Menires e Antas


Em poucas regiões de Portugal, estarão reunidas condições tão propícias a um desenvolvimento sustentado de um turismo que concilie a Natureza e o Património arqueológico, como se verifica nas terras da Tourega e de Guadalupe. A beleza do montado, transforma-se neste território num cenário deslumbrante para os vestígios megalíticos, testemunhos que subsistem da presença dos primeiros agricultores e pastores que dominaram esta região há mais de 5 000 anos, convidando à sua descoberta através dos velhos caminhos rurais. Algumas dificuldades, porém, dificultam um melhor aproveitamento deste recurso que, naturalmente, precisa de um mínimo de enquadramento e de infra-estruturas, para poder funcionar como um produto atrativo para quem por aqui passa a caminho de Évora. Desde logo, as condições climatéricas que no pino de Verão, com temperaturas a rondar os 40º, não aconselham muito a actividade pedestre. Mas a grande dificuldade reside na estrutura da grande propriedade fundiária e dos seus actuais modelos de exploração. Tradicionalmente espaços abertos, virados sobretudo para a silvicultura, onde se circulava livremente através de caminhos centenários, nas últimas décadas conheceram mudanças radicais. Finda a Reforma Agrária muitas destas propriedades trocaram de mãos, e os novos proprietários, com pouca ou nenhuma relação com os meios e as tradições locais, acabariam por fazer tábua rasa de direitos adquiridos de serventia ou de passagem. Até porque, na verdade, muitos daqueles caminhos, com o despovoamento e o fim da actividade agrícola tradicional, deixaram efectivamente de ter "serventia"... Não é fácil nestas condições, definir, sinalizar ou estabelecer percursos de circulação pedestre que permitam a visita a sítios ou monumentos, muitos deles até classificados como "nacionais" ou de "interesse público", quando estes se localizamk em propriedades actualmente completamente vedadas.

Ainda assim, e face ao interesse crescente que alguns daqueles monumentos despertam junto de um público alargado, a União de Freguesias da Tourega e de Guadalupe, tenta actualmente encontrar um percurso que, apesar daquelas condições pouco favoráveis, possa ser vaibilizado futuramente. Nesse sentido, em colaboração com uma empresa que é pioneira nestas actividades (e que há quase duas décadas organiza com alguma regularidade caminhadas nesta região), realizou-se no passado sábado, 13 de Maio, um passeio cujo percurso unia três locais paradigmáticos da Pré-história alentejana: Anta Grande do Zambujeiro, Castelo do Giraldo e Cromeleque dos Almendres. 


Trata-se de um percurso bastante longo, cerca de 20 quilómetros, com algum grau de dificuldade na subida ao Giraldo, mas com possibilidades de um enquadramento logístico interessante. A partida é feita de Guadalupe, onde é possível deixar as viaturas em segurança e onde há algum apoio comercial. Perto do meio do caminho, atravessa-se Valverde, que oferece uma área de merenda e descanso, antes da subida ao Giraldo. O percurso tem a grande vantagem de ser circular, pois após a visita ao Cromeleque e ao Menir dos Almendres, termina de novo em Guadalupe. Uma experiência a repetir, em fim de semana menos mediático de preferencia e, se possível, a institucionalizar em futuro próximo através da Federação de Campismo e Montanhismo de Portugal,  uma vez conseguida a colaboração de alguns proprietários. É que, apesar de "aberto", parte deste percurso é feito através de serventias e caminhos no interior de propriedades privadas.
O "briefing" antes da partida de Guadalupe

Saindo para o campo

Passando junto ao moinho de vento, estrutura de moagem que serviria de alternativa em caso de falta de água, ao "Moinho da Carreira", uma antiga "azenha", onde hoje se localiza um das "tascas" de Guadalupe
A "Horta do Moinho da Ponte", ainda hoje cultivada por um idoso de Guadalupe, próximo do que resta de mais uma azenha e da casa do moleiro. Entre Guadalupe e Valverde, num percurso de poucos quilómetros, existiam pelo menos 5 moinhos, testemunhos de um regime hidrológico certamente mais intenso. Hoje a Ribeira fica praticamente seca no Verão e os moinhos estão abandonados há quase um século. Já ninguém se lembra de os ver a funcionar.


A "Ponte Antiga", na antiga estrada entre Évora (Perananca) e a Boa Fé. Classificada e recuperada há década e meia, necessita de urgente controle da vegetação que a cobre. Estrutura do Século XVI, dá o nome ao moinho vizinho...
Passagem no Monte das Figueiras, a caminho da Anta Grande do Zambujeiro

A gigantesca "mamôa" da Anta Grande do Zambujeiro, vista de Norte
Um dos mais extraordinários monumentos pré-históricos nacionais (a Anta Grande do Zambujeiro) em eminente colapso estrutural. Sem menosprezar o acta de vandalismo o recentemente verificado no Côa  e que tantas notícias provocou, não se compreende que, a situação deste monumento (apesar de repetidamente denunciada localmente) não provoque uma "comoção" semelhante.

Já a caminho de Valverde através da Herdade da Mitra (Universidade de Évora)

Como é difícil não tropeçar nos "romanos", um marco miliário recordando que, algures por aqui perto passaria a estrada romana que unia Ebora ao porto de Salatia (Alcácer do Sal) e que serviria também a grande "villa romana da Tourega"
Cruzando a Ribeira à entrada de Valverde. Infelizmente a velha "venda" que ali nos recebia já fechou há algum tempo...

Área de descanso antes da subida ao Giraldo

Área de descanso antes da subida ao Giraldo

Na subida para o Giraldo, o novo cemitério de Valverde, projectado pelo Arquitecto José Luis Quitério e construído nos anos 80 do século passado para evitar o alargamento do antigo cemitério da Tourega com inevitáveis impactos sobre as ruínas romanas vizinhas

O impropriamente designado Castelo do Giraldo. De facto existem vestígios de uma muralha medieval, criando um recinto com os grandes blocos graníticos que existem no cume da colina. Escavações de Afondo do Paço e Fernandes Ventura no final dos anos 50, mostraram que este sítio, pela sua localização, teve ocupação desde a Idade do Cobre até à Idade do Ferro. Deverá estar relacionado com o vizinho Povoado da Corôa do Frade, com ocupação importante cerca de 1000 anos antes de Cristo.

Mais do que se pode ver no local, a subida ao Giraldo vale pelo magnífico panorama que se desfruta a Nascente. Na imagem, a Barragem da Tourega e o antigo cemitério da Tourega marcado por dois enormes ciprestes, e em último plano a colina de São Vicente sobre Viana do Alentejo

No cruzamento das Herdades, já na linha de cumeeira onde se localizam os Almendres. Mas ainda faltavam uns quilómetros para chegar ao Cromeleque
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A "Cruz do Preto", já muito próximo do Cromeleque. Um marco geodésico antigo (Século XIX, campanhas de levantamento cartográfico do General Filipe Folque?). Deve o nome a uma curiosa lenda que refere a fuga de um escravo negro da Mitra do qual só terão aqui aparecido as "botas". Há duas versões do final da lenda. Segundo uma teria sido devorado pelos loboas, segundo outra, teria deixado as botas para despistar eventuais perseguidores...


Já nos Almendres
E no Menir

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De regresso a Guadalupe, cerca de 20 quilómetros depois...

Uma ajuda para quem estiver interessado