terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Monte da Fainha (Evoramonte)

 Um sítio “fantasma” do Paleolítico Superior no Alentejo




 
Há sítios arqueológicos assim. Um nome muito citado na bibliografia especializada mas que, quando confrontado com a realidade do território, parece escapar a toda e qualquer materialidade. O Monte da Fainha, um sítio clássico do Paleolítico Superior Português (pelo menos durante algumas décadas do século passado), representa bem essa categoria de sítio quase fantasma, não fora a meia dúzia de peças conservadas, quase por milagre, em dois museus portugueses. Ainda por cima, este estatuto já de si fugidio, seria agravado por uma confusão toponímica involuntariamente engendrada por Jean Roche, o arqueólogo francês responsável pela sua divulgação científica (chegou a ser objecto de uma comunicação específica à Sociedade Pré-histórica Francesa em 1972), que a certa altura lhe trocou o nome por “Monte da Rainha”.
O poço do Monte da Fainha, no vale a Oeste de Evoramonte, hoje atravessado pela A6 (foto de 1988)

A descoberta

Em 1950, o proprietário do Monte da Fainha, (uma pequena herdade alentejana hoje atravessada pela A6, situada no vale a nascente da colina onde se ergue o Castelo de Evoramonte) mandou construir um poço em zona baixa, próxima de uma linha de água. Quis o acaso que, a presença na propriedade de Luciano Ribeiro, sócio da Associação dos Arqueólogos Portugueses (secção de Heráldica e Genealogia) e amigo do Professor Mendes Correia, tenha permitido a identificação de um conjunto de estranhos artefactos de pedra talhada aparecidos nas terras retiradas para a abertura do poço. Apesar da peculiaridade do talhe, a sua natureza intencional não escapou à observação de Luciano Ribeiro que os guardou (desconhecemos o número exacto recolhido na altura) e os mostrou mais tarde a Mendes Correia e ao Padre Jean Roche. Este pré-historiador francês, então a trabalhar em Portugal nos Concheiros de Muge pela mão do próprio Mendes Correia que ali fizera também investigações, não teve qualquer dúvida pela natureza do talhe, em atribuir os materiais ao Solutrense, um período do Paleolítico Superior então praticamente inédito em Portugal (à excepção de alguns raros materiais identificados em 1942 por Henri Breuil e Georg Zbyzewski, nos espólios das antigas escavações nas Grutas da Furninha (Peniche) e da Ponte da Lage (Caxias). No entanto, o Monte da Fainha, só dois anos após a descoberta seria visitado por Jean Roche e Mendes Correia. Nessa altura, segundo o relato de Roche publicado no Arqueólogo Português muitos anos depois (1968), já não conseguiram recolher mais artefactos e o que era mais “curioso”, nas palavras do próprio Roche, nas terras retiradas na abertura do poço, não conseguiram observar quaisquer vestígios de restos de talhe que poderiam ter passado despercebidos a Luciano Ribeiro, dada a sua pouca familiaridade com este tipo de materiais. Em 1954, já depois de H.Vaultier ali ter recolhido mais alguns artefactos “solutrenses”, certamente numa das suas habituais excursões arqueológicas com Camarate França, este último com Mendes Correia, realiza junto ao poço, algumas “pequenas sondagens”. Recolhem então novo lote de peças solutrenses, mas também não registam quaisquer outros vestígios, nomeadamente restos de talhe ou de habitat. Confirmando o estatuto especial do sítio e a atribuição cronológica ao Solutrense dos artefactos observados, o Monte da Fainha seria visitado em 1957 pelo chamado “Papa da Pré-história”, o Abbé Henri Breuil (1887-1961), acompanhado por Georg Zbyzewski e Octávio da Veiga Ferreira, dos Serviços Geológicos de Portugal e o omnipresente H.Vaultier. (Sobre o papel na arqueologia deste industrial de sucesso, já tivemos oportunidade de falar noutra ocasião: ver aqui sobre H.Vaultier). Provavelmente esta seria a última visita arqueológica ao sítio antes da sua divulgação científica por Roche (1968,Portugal, 1972, França, 1974, Espanha) e a sua própria implantação topográfica rapidamente cairia no esquecimento, até porque os arqueólogos mais ligados ao sítio, foram entretanto desaparecendo (Mendes Correia em 1960, Camarate França em 1963, H.Vaultier em 1969).

Os artefactos do Monte da Fainha, o seu significado e o seu destino

Como já referimos, o que tornava este sítio especial era, por um lado, a inequívoca atribuição cronológico-cultural do seu conjunto artefactual ao período Solutrense (entre 20 000 e 15 000 a C), a ausência de quaisquer outros vestígios arqueológicos e por fim a raridade de vestígios do Paleolítico Superior então conhecidos em Portugal, em especial no Alentejo. Jean Roche no seu artigo de 1968, publicado n’O Arqueólogo Português, sintetiza assim esta problemática:
Um número muito restrito de artefactos, vinte peças que atribui aos conjuntos recolhidos por Leonel Ribeiro e Vaultier ainda que referindo  a existência de mais uma dezena que teriam sido recolhidas nas sondagens de Camarate França e Mendes Corrêa, que não chegou a observar. No entanto, o número exacto de objectos descobertos e o seu destino, é uma questão em aberto e que dificilmente poderá vir a ser esclarecida…
Um conjunto tipologicamente homogéneo, uma vez que todos os artefactos analisados cabem na categoria das “folhas de loureiro”, nome que advém da forma foliácea e da espessura fina destes artefactos, normalmente em sílex, obtidos por talhe em ambas as faces e que seriam usados como pontas de lanças. Face à ausência de outros artefactos ou mesmo de qualquer contexto arqueológico, Roche concluía que a homogeneidade do conjunto só poderia ser explicada por uma escolha intencional cuja finalidade seria impossível determinar. A propósito recorda um achado semelhante verificado na abertura de um canal em 1873 em Volgu (França), também atribuído ao Solutrense. As circunstâncias deposicionais, melhor descritas naquele caso, haviam levado à sua interpretação como um “esconderijo”.  Roche não avança explicações para o Monte da Fainha, mas refere que Breuil a quando da sua visita à Fainha em 1957, havia colocado duas hipóteses: vestígios de uma sepultura isolada ou de um acampamento muito fugaz de um grupo de caçadores nómadas.


A entrada sobre o Monte da Fainha, na tese de doutoramento de João Zilhão (1994) onde aparecem desenhadas por Thierry Aubry, as três peças recuperadas num leilão por Gustavo Marques (entretanto oferecidas ao MNA pelos herdeiros) que faziam parte do conjunto de 20, publicadas por Jean Roche (1968)



Naturalmente, nenhuma das várias hipóteses ajudava a compreender o isolamento geográfico do achado, em pleno “deserto paleolítico” Alentejano... Mas essa circunstancia era facilmente justificável pelo atraso da investigação paleolítica em Portugal, concentrada normalmente nos terraços marinhos ou, quanto muito, nas margens dos grandes rios. O reconhecimento de outras provas da presença dos caçadores-recolectores do Paleolítico Superior no Alentejo, seria apenas uma questão de tempo e oportunidade, conforme a descoberta em 1963 da Gruta do Escoural e o reconhecimento da sua arte paleolítica viriam a confirmar pouco depois destes eventos, para não falarmos de outras descobertas mais recentes, nomeadamente nas margens do Guadiana. 

Fragmento de lâmina solutrense encontrada, a posteriori, nos espólios das antigas escavações da Gruta do Escoural. (depositada no Museu de Arqueologia de Montemor-o-Novo)

O problema é que, mesmo para regiões, como o maciço calcário estremenho, onde hoje está reconhecida uma intensa ocupação durante o Paleolítico Superior, os novos dados arqueológicos viriam a ser, quase sempre, confirmados após a reanálise dos materiais recolhidos em antigas escavações e guardados nos Museus. Desta tarefa ocupar-se-ia João Zilhão nos anos oitenta e noventa do século passado, congregando os resultados na sua monumental tese de Doutoramento (O paleolítico Superior da Estremadura portuguesa, Colibri, 1994). Entre os sítios que Zilhão obrigatoriamente “revisitou”, contava-se o Monte da Fainha, a que dedica uma dezena de páginas. O problema é que o paradeiro da coleção entretanto publicada por Roche se perdera com o desaparecimento dos “proprietários”. Pelo menos parcialmente, porque às mãos de Zilhão ainda chegariam três dos vinte artefactos originais. Resgatados num leilão por Gustavo Marques que entretanto os disponibilizara para estudo , actualmente fazem parte das coleções do Museu Nacional de Arqueologia, uma vez que os herdeiros daquele conhecido arquitecto-arqueólogo , ofereceram a sua colecção particular à quele Museu.

As conclusões publicadas por Zilhão (e que de algum modo poderão ser consideradas definitivas face aos dados disponíveis) não viriam a divergir das de Jean Roche, pese embora o facto de dispor de novas observações no local (como veremos mais adiante). Apesar de algumas características tipológicas diferenciadas dos padrões habituais, nomeadamente a sua maior espessura, que Zilhão explica pelo facto de se tratar de peças inacabadas, confirma a sua atribuição inequívoca ao Solutrense. (Havia a possibilidade de se tratar de material postpaleolítico, pois a técnica de talhe bifacial, uma vez adquirida, não se perdeu e seria usada até à Idade do Bronze, para a produção de pontas de seta e de alabardas em sílex, por exemplo).  A ausência de outros materiais arqueológicos, pese embora a probabilidade do conjunto poder estar em posição secundária, acaba por trazer plausibilidade à hipótese de estarmos perante um esconderijo de artefactos inacabados, mantidos em reserva e prontos para serem concluídos e usados pelo caçador ou caçadores que regularmente fariam este percurso. É neste aspecto, aliás, que a tese de Zilhão ganha maior colorido histórico-cultural…”O local podia corresponder, com efeito, a um marco importante nos itinerários praticados pelos caçadores solutrenses (viajando em grupo ou individualmente), e que tenha sido essa a razão que os levou a aí acumular utensílios de pedra em antecipação de necessidades futuras…”

O Sr. Filipe Franja, o homem que ao abrir o poço da Fainha, descobriu o conjunto de artefactos "solutrenses". Aqui visitando as sondagens do Outono de 1988.

A minha aventura pessoal no Monte da Fainha

O Professor Marcel Ote, à esquerda, e Jean-Marc Léotard, comigo e com a guarda do Castelo de Évoramonte, em meados de Agosto de 1988. Seria no próprio Castelo que a equipa luso-belga que escavou na Fainha, ficaria instalada durante as cerca de duas semanas de campanha realizada ainda esse mesmo ano.

Não sei se o João Zilhão chegou a visitar alguma vez o sítio do Monte da Fainha mas a pouca informação nova que usa na sua interpretação, e que naturalmente cita, foi-lhe disponibilizada por mim. É que o Monte da Fainha acabou por se cruzar na minha carreira arqueológica…
No dia 10 de Agosto de 1988, nas vésperas da chegada a Portugal de Marcel Ote, professor na Universidade de Liége que me contactara por indicação do próprio Zilhão na perspectiva de desenvolvimento de um projecto de investigação Luso-belga sobre o Paleolítico Superior no Alentejo, resolvi procurar o “Monte da Fainha”. O sítio havia sido descoberto então há 38 anos e era natural que em Évoramonte, houvesse ainda testemunhas do acontecimento. E, com efeito, não encontrei a testemunha mas descobri com facilidade o próprio responsável pela abertura do poço, o sr. Filipe Franja, então com 78 anos ainda bem rijos e que me acompanhou de bom grado. Tomei nesse dia as seguintes notas que transcrevo: “Relocalizei o sítio exacto da estação solutrense do Monte da Fainha, graças ao sr. Filipe Franja, o homem que havia feito o tal poço. Pela descrição das condições da descoberta tudo leva a crer que poderá tratar-se de um acampamento de superfície bem conservado. A área afectada pelo poço é mínima e os materiais referidos nas publicações  devem representar apenas uma parte do que se descobriu e dispersou. Por outro lado há ainda no local vestígios, como prova a descoberta hoje mesmo de mais uma peça solutrense.”



As duas únicas peças solutrenses (jaspe e sílex) recolhidas nos trabalhos de 1988 e hoje depositadas no MNA

Tratava-se obviamente de uma “conclusão precipitada”, mas compreensível. É que ao chegar ao poço, acompanhado pelo sr. Franja, a primeira coisa que vi ao olhar para o chão foi uma pequena ponta de jaspe, de talhe bifacial tipicamente solutrense, o que parecia ser um indício inequívoco não apenas da exactidão da informação topográfica, mas também da esperada preservação do sítio.  E assim, três dias depois, já com Marcel Ote e o seu assistente Jean-Marc Léotard no Alentejo, estava de novo em Evoramonte, tendo ficado decidido nesse mesmo dia que, no âmbito dos trabalhos que planeávamos e que, prioritariamente se centrariam na Gruta do Escoural, faríamos também algumas sondagens na Fainha para identificação e caracterização do que julgávamos então ser um solo de habitat paleolítico, preservado a uma certa profundidade no fundo do vale, próximo de antiga linha de água e coberto por depósitos coluvionares.  A “fé” era tão grande que os trabalhos se iniciaram nesse mesmo Outono, aproveitando o regresso da equipa Belga a Portugal, por ocasião do Colóquio de Arqueologia organizado em Montemor-o-Novo para comemorar os 25 anos da descoberta da Gruta do Escoural, tendo decorrido entre 25 de Outubro e 6 de Novembro de 1988.
Os resultados, no entanto seriam dececionantes, apesar da abertura de quatro grandes sondagens que, cobriram praticamente todas as possibilidades de extensão de um eventual nível arqueológico que nunca apareceu... E mesmo crivando sistematicamente os sedimentos escavados, apenas nos foi possível encontrar uma única pequena peça em sílex, apresentando talhe solutrense que assim se vinha juntar à que recolhera em superfície. Em nova visita ao local, já durante as escavações, o sr. Franja reafirmaria que haveria muito mais material do que aquele que fora publicado por Jean Roche mas insistiu na concentração do mesmo na vala do poço, falando mesmo em “amontoado” de peças. Recordou também que algum tempo depois terá feito uma escavação no exterior junto à parede do poço mas que terá aparecido pouco material. Tratou-se, provavelmente, das referidas escavações de Camarate França e Mendes Correia em 1954, nas quais terão aparecido apenas algumas peças. E de facto, nas nossas sondagens mais próximas do poço, havia evidentes indícios de remeximentos mais ou menos recentes.


Aspectos dos trabalhos de topografia no Monte da Fainha, realizados por Armando Guerreiro, o excelente colaborador da extinta delegação de Lisboa do Instituto Arqueológico Alemão. Em cima, alunos de um curso de assistentes de arqueologia que participaram nos trabalhos, em baixo Jean Marc, à esquerda, e Armando Guerreiro. (1988)
Assim, ainda que cumpridos os requisitos técnicos normais, nomeadamente no que respeita aos registos e relatórios, a equipa luso belga concentrar-se-ia posteriormente nos trabalhos do Escoural, entretanto publicados em Portugal e na Bélgica (“Trabalhos de Arqueologia”, nº8, IPPAR, 1995 e “ERAUL”, 65, Liége, 1996) acabando por deixar inéditos os resultados negativos, ainda que significativos, das escavações no Monte da Fainha. De algum modo Zilhão, acedendo e integrando esta informação na sua interpretação do sítio, acabaria por felizmente colmatar essa lacuna.

Facsímile da resposta de Huet Bacelar, confirmando a existencia de dois artefactos do Monte da Fainha, no Instituto de ANtropologia "Prof. Mendes Corrêa".


Mas não ficou por aqui o meu pequeno mas esforçado contributo para esta malograda história arqueológica. Roche no seu artigo de 68, uma vez que haviam já falecido Mendes Correia e Camarate França, dá como desaparecidos os poucos artefactos (fala numa dezena) que estes terão encontrado nas sondagens de 1954. Valendo-me da minha antiga amizade com Huet Bacelar, então responsável pelas colecções de Arqueologia do Instituto de Antropologia “Pro.Mendes Corrêa”, da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, escrevi-lhe pedindo que procurasse eventuais materiais de Evoramonte ali talvez depositados pelo fundador e patrono da instituição.  Na volta do correio recebi a resposta do Huet, informando que de facto havia duas “pontas de seta” (de facto uma “folha de loureiro” inteira e outra partida) provenientes da “Herdade da Fainha, Évora”, oferecidas ao Museu do Instituto em 5 de Outubro de 1957, por Luciano Ribeiro, Camarate França e Pires Soares. Como em 2011, resolvi formalizar a entrega no Museu Nacional de Arqueologia, das duas peças encontradas por mim no Monte da Fainha, o balanço do destino da totalidade do espólio conservado (7 artefactos!) desta importante estação arqueológica alentejana, será o seguinte:

                - dos materiais recolhidos por Luciano Ribeiro, Camarate França, H.Vaultier e Mendes Correia, cujo número total desconhecemos, subsistem no Museu Nacional de Arqueologia, 3 artefactos (adquiridos num leilão por Gustavo Marques e doados ao MNA pelos seus herdeiros); a este pequeno conjunto juntaram-se em 2011, as duas únicas peças obtidas nas sondagens luso-belgas de 2008. No antigo Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (hoje ao que julgo integrado no Departamento de Biologia), conservar-se-ão, segundo informação de 1988, os 2 artefactos oferecidos por Luciano Ribeiro (o descobridor da Fainha) Camarate França e Pires Soares.


Jean Marc Léotard desenhando os cortes de uma das sondagens de 1988 no Monte da Fainha













quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Mário Ruivo e Frederico Mayor 

duas grandes personalidades nos Almendres (Julho de 1993)

O Centro Histórico de Évora havia já sido reconhecido pela UNESCO como Património da Humanidade há alguns anos (1986), mas a visita à cidade do Director Geral daquele organismo internacional, só viria a acontecer em 1993. O cargo era então ocupado pelo espanhol Frederico Mayor Zaragoza, Director Geral entre 1987 e 1999 e, naturalmente, a sua passagem por Évora, foi um acontecimento.

A acompanhá-lo vinha Mário Ruivo, então membro do Conselho Coordenador da Comissão Nacional da UNESCO. Do programa organizado pela Câmara Municipal, fez parte uma visita ao Cromeleque dos Almendres, monumento que começava então a ser conhecido na sequencia do programa de valorização ali promovido pela autarquia. Esta era então presidida por Abílio Fernandes, também presente naquela visita, acompanhado por António Valente, vereador da cultura, prematuramente desaparecido em 2002. 

Como arqueólogo, já então e por motivos vários, particularmente preocupado com a salvaguarda futura deste monumento, coube-me guiar a visita. Tive assim oportunidade de conhecer pessoalmente duas extraordinárias personalidades da cultura universal, Frederico Mayor e Mário Ruivo. Ficou-me particularmente na memória a afabilidade, o humanismo, o interesse e até a "cumplicidade" de Mário Ruivo (1927-2017), talvez fruto da sua ligação ao Alentejo e a Évora (era natural de Campo Maior mas frequentou o Liceu de Évora), talvez fruto da sua especial relação com os autarcas presentes...

No desaparecimento, ontem mesmo noticiado, de Mário Ruivo, esta é uma pequena memória evocativa, tendo como cenário as "Pedras Talhas" dos Almendres.

Mário Ruivo, em primeiro plano à direita. Ao centro Frederico Mayor e à esquerda Abílio Fernandes
António Carlos Silva, conversando com Frederico Mayor e Mário Ruivo



Ao centro, António Pestana de Vasconcelos, Director Regional do IPPAR e à direita António Valente, vereador da Cultura da Câmara Municipal de Évora (falecido em 2002)

Uma última troca de impressões com Mário Ruivo





segunda-feira, 23 de janeiro de 2017


Do Carmo à Austrália, memórias "fotogramétricas"...



 



Há bastante tempo que não tinha oportunidade de participar nas actividades da Associação dos Arqueólogos Portugueses (passou recentemente o seu 153º aniversário) a veneranda agremiação de que sou membro há várias décadas, pelo que foi com muita satisfação que na passada 5ª feira (19 de Janeiro) assisti a uma conferência na sua belíssima sede nas ruínas do Carmo. Mais do que o tema, neste caso pesou a oportunidade de reencontro com o orador, Francisco Almeida, um amigo e colega arqueólogo com quem tive o prazer de trabalhar no projecto Alqueva ver aqui e que "imigrou" há seis anos para a Austrália, onde actualmente exerce a sua "profissão" no estado de Vitória.


Ainda que o assunto da sua intervenção seja bastante actual (vantagens para o registo arqueológico do uso das novas ferramentas informáticas que permitem transformar uma simples máquina fotográfica ou até um telemóvel, num "digitalizador 3D") julgo que o que terá cativado o razoável número de colegas que acorreu ao auditório do Carmo, terá sido o seu interessantíssimo testemunho sobre a singularidade da sua presente actividade arqueológica, sobretudo quando observada a partir da nossa muito limitada experiência ocidental e europocentrista. Como Francisco Almeida reconheceu, no trabalho de campo que executa no âmbito do registo e inventário dos vestígios materiais culturais das várias "nações aborígenes", sempre em articulação e com a indispensável colaboração dos representantes locais das próprias comunidades, as principais interessadas no seu trabalho, aprendeu mais sobre Arqueologia (ou seja sobre as relações e transformações das comunidades humanas no respectivo contexto territorial) do que em anos e anos de Faculdade e de prática arqueológica tradicional (e que no seu caso incluem até um Doutoramento nos EUA). Afinal, como está a nossa Arqueologia longe da comunidade a quem deveria servir antes de mais, seja ela feita em contexto empresarial (para "libertar" projectos e obras de entraves meramente formais....) ou académico (para justificar carreiras pessoais). Depois não compreendemos quão difícil é passar a mensagem "patrimonial" ao povo...

O Francisco Almeida, proferindo a sua conferencia no auditório da AAP, nas ruínas do Carmo.


Regressando ao tema propriamente dito da conferencia, "a nova fotogrametria digital", de destacar neste caso, o seu uso no inventário e registo expedito de estruturas localizadas em áreas remotas ou pouco acessíveis, permitindo de forma simples, prática e extremamente económica (basta uma câmara digital normal e o software adequado) obter, actualizar e comparar dados gráficos numa perspectiva de reconhecimento científico e de salvaguarda futura. Nada que não esteja, felizmente, já ao alcance da nossa arqueologia, sendo notória nos últimos tempos a sua aplicação entre nós aos mais variados domínios, sobretudo no campo da divulgação. Cito aqui em particular o caso que acompanho mais de perto, o projecto MORBASE (http://montemorbase.com ), dinamizado por jovens arqueólogos de Montemor-o-Novo, e com quem já tive a oportunidade de colaborar.

Levantamento 3D da Anta Grande da Comenda da Igreja (Montemor-o-Novo)


Naturalmente, a chamada de atenção para estas novas ferramentas tecnológicas, em plenas ruínas do Carmo e na semana em que desaparecera o Arquitecto Carlos Antero Ferreira (1932-2017), antigo presidente do IPPC (1990-1992) e um dos primeiros divulgadores da "fotogrametria"  (analógica, diriamos hoje) em Portugal, não deixou de ser motivo para algumas memórias pessoais neste domínio.
Artigo de Carlos Antero Ferreira de 1985, separata do nº4 da Revista do Instituto Geográfico e Cadastral

A primeira vez que tive oportunidade de ter uma noção do interesse e vantagens da aplicação da fotogrametria, uma metodologia quase tão antiga como a própria fotografia (na Alemanha foi fundado em 1885 um instituto estatal para a obtenção de registos fotogramétricos dos principais edifícios históricos), teve a ver com uma visita às escavações pré-históricas então em curso em Etiolles (Île-de-France), no verão de 1973. Dirigia as escavações daquele importante sítio Magdalenense, o arqueólogo Michel Brézillon, assistente de Leroi-Gourhan que conduzia na mesma altura as escavações de Pincevent, em que eu participava como estudante com outros colegas portugueses aqui. Dada a complexidade e quantidade de materiais de silex encontrados no solo de habitat paleolítico, o desenho dos sucessivos planos tornava-se particularmente moroso e complexo, pelo que se recorreu então à estéreo-fotogrametria, para o respectivo "registo gráfico". De referir que, apesar da complexidade dos equipamentos (as máquinas fotográficas eram especiais para o efeito) e das exigências metodológicas (os fotogramas eram obtidos a partir de pontos previamente cotados, de modo a articular entre si os múltiplos pares estereoscópicos), o trabalho de campo por comparação com os métodos tradicionais (desenho à escala, puro e simples, ou desenho sobre fotografia de cada plano, como era prática em Pincevent) era bastante mais rápido e eficaz. O problema residia, a posteriori, na chamada "restituição", ou seja, na passagem a desenho dos planos fotografados. Para além da grande complexidade dos equipamentos necessários ("ploters" especiais), o trabalho de restituição era uma actividade muito especializada e morosa, tornando a fotogrametria muito cara. No caso de Etiolles, embora mais tarde tenha tido oportunidade de ver publicados alguns planos assim obtidos, julgo que se ensaiava o método na perspectiva da sua futura aplicação a situações de "salvamento", em que a prioridade fosse a urgência da recolha dos fotogramas, ficando para um momento posterior, a sua "restituição". Aliás, foi aquela vantagem que levaria à aplicação sistemática da fotogrametria aos trabalhos da UNESCO de desmonte e reconstrução dos grandes templos egípcios ameaçados pela Barragem de Assuão, nomeadamente Abou-Simbel, nos anos 60 do século passado.


Mais tarde, já em contexto profissional, cruzar-me-ia outra vez com a "fotogrametria". No início dos anos 80, colocado no Departamento de Arqueologia do IPPC, tive conhecimento de um "mítico caixote" do Dr. Nunes de Oliveira que continha um equipamento fotográfico por ele adquirido para os "inventários" (ainda no âmbito da extinta Direcção Geral do Património Cultural, actualmente "reactivada", depois de ter sido IPPC, IPPAR, IPA, IGESPAR....) e que nunca fora utilizado. Investigado o assunto, verificámos que se tratava de um conjunto WILD C 120, um par de câmaras fotogramétricas 6x6, que se montavam sobre um braço horizontal apoiado num tripé... Apesar de algumas dificuldades e reticências (a desculpa para o seu não uso residia no facto de não se ter adquirido ainda o equipamento de restituição que custaria 10 vezes mais...) consegui requisitar o "caixote" e pô-lo à disposição do António Ventura, então responsável pela fotografia no Departamento (hoje professor de fotografia no Instituto Superior de Tomar). Com a meticulosidade que lhe é própria, o António Ventura estudou o equipamento e conseguiu mesmo algumas chapas fotográficas (em vidro, por razões técnicas, nomeadamente para evitarem as distorções provocadas pelo filme normal...) com que realizou alguns fotogramas experimentais que, no entanto, nunca terão sido "restituídos" pois seria necessário recorrer a trabalho externo, fora das capacidades orçamentais do Departamento. Percebemos então que a "fotogrametria" em Portugal, era então apenas usada por um par de empresas especializadas  (ESTEREOFOTO, ARTOP,...) e direcionada quase em exclusivo para os levantamentos topográficos e cartográficos. As imagens aéreas eram encomendadas e adquiridas à força aérea e a restituição era feita nas caríssimas "ploters" que apenas aquelas empresas possuíam. Ainda recordo ter visto uma a funcionar (ocupando toda uma sala) na sede da ESTEREOFOTO, ali para os lados da Estrada de Benfica. Quanto ao WILD C 120 do IPPC, percebemos, graças aos prospectos da empresa alemã, que se tratava de um equipamento "portátil", especialmente concebido para a polícia das auto-estradas alemãs. Montado sobre uma carrinha Volkswagen, permitiria a rápida recolha dos fotogramas de um qualquer acidente, facilitando a pronta remoção das viaturas... A restituição seria feita posteriormente em caso de necessidade.


Em cima, esquema do funcionamento do "Wild c-120". Em baixo, um modelo de "restituidor" dos anos 70.


Apesar da pouca tradição do uso destas tecnologias analógicas em Portugal no que respeita ao património, nos anos 80 fruto de alguma colaboração com a ESTEREOFOTO (a cuja fundação esteve ligado o Arquitecto Antero Ferreira), foram realizadas vários levantamentos, a título experimental, na perspectiva da salvaguarda do património cultural. Concretamente e no que respeita à Arqueologia, esta técnica seria experimentada na Anta Grande do Zambujeiro (Évora) por iniciativa dos serviços do IPPC (fornecendo-nos hoje elementos de referência importantes para aferir o grau de degradação das últimas três décadas) e no templo romano de Évora, neste caso no âmbito do projecto de investigação do DAI (Instituto Arqueológico Alemão) liderado por Thjeodor Hauschild ver aqui e cuja publicação, finalmente, se anuncia para breve.

Alçado longitudinal da Anta Grande do Zambujeiro (Èvora). Levantamento ESTEREOFOTO para o SRAZS.




















sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

HÁ 3500 ANOS EM SÃO PEDRO DO ESTORIL

Graças a uma colaboração informal que já começa a institucionalizar-se fruto da generosidade desinteressada do dinâmico editor da National Geographic portuguesa, Gonçalo Pereira fez-me chegar mais um conjunto de recortes "vintage" de interesse arqueológico, recolhidos no âmbito das suas infatigáveis pesquisas nos arquivos da imprensa portuguesa. Despertou logo a minha curiosidade a notícia sobre as escavações nas Grutas artificiais de São Pedro do Estoril, um sítio arqueológico sobranceiro à praia mas hoje apenas recordado pelos arqueólogos, uma vez que, o que restava daquelas estruturas há muito desapareceu face ao natural recuo da falésia. O recorte da revista "Mundo Gráfico" não traz data, mas depreendendo-se do teor da reportagem que as escavações estavam a decorrer há algum tempo, a publicação datará de Julho ou Agosto de 1944. Com efeito a descoberta feita por Leonel Ribeiro data do final de Abril de 44 e, de acordo com a monografia publicada vinte anos depois, as escavações envolvendo também o nome omnipresente de Afonso do Paço (na altura ainda apenas "capitão") terão decorrido entre Maio e Agosto desse mesmo ano.




Gonçalo Pereira destaca na missiva que acompanhava a oferta, o carácter anglófilo da revista, suportado por verbas inglesas, e cuja edição  fazia parte do "esforço de guerra" britânico de "informação e contra-informação" que tinha no Estoril, como é sobejamente conhecido, um dos epicentros em Portugal. Por curiosidade, refira-se que a publicação dos materiais recolhidos nos dois túmulos escavados na rocha, e que apontam de facto para a cronologia  de 3500 anos que dá título à reportagem do Mundo Gráfico ("campaniforme", o período de transição entre a Idade do Cobre e a Idade do Bronze), acabaria por ser assegurada essencialmente por Vera Leisner, a conhecida arqueóloga alemã a quem a arqueologia nacional tanto deve.

Não sabemos se Vera Leisner terá visitado as escavações de São Pedro do Estoril, embora tal seja possível, pois após a destruição do seu apartamento de Munique (consequência de um bombardeamento aliado) regressara em 1943 com seu marido à Península e concretamente a Portugal (donde estavam ausentes desde a Guerra Civil espanhola). No entanto, no âmbito da preparação daquela publicação, sabemos que revisitou a arriba de São Pedro do Estoril, graças a um conjunto de fotografias recentemente destacadas no âmbito de uma exposição fotográfica comemorativa (Blick, Mira, Olha!) organizada pela delegação de Madrid do DAI (Instituto Arqueológico Alemão). Essa exposição esteve posteriormente em Cascais e é no pequeno catálogo então preparado propositadamente, que recolhemos algumas das imagens das escavações de São Pedro do Estoril, com que ilustramos esta pequena nota de enquadramento ao artigo do Mundo Gráfico.

Capa do catálogo da exposição de Cascais, com Vera Leisner fotografando a falésia de São Pedro do Estoril



Conjunto de fotos do Arquivo da Junta de Turismo de Cascais, ilustrando as escavações de 1944 nas Grutas Artificiais de São Pedro do Estoril. (Reprodução a partir do catálogo referido)

Um apontamento final. A presença de um casal alemão durante a II Guerra Mundial (a partir de 1943) frequentemente isolado em trabalhos de campo, despertou certamente a desconfiança ou pelo menos intrigou muita gente. Até há bem pouco tempo, nomeadamente no Alentejo onde aprofundaram o reconhecimento da respectiva riqueza megalítica (como em Évora e Reguengos), era ainda possível recolher alguns testemunhos populares directos que recordavam as dúvidas e reticências levantadas, sobre o verdadeiro propósito das suas actividades... Nos próprios meios arqueológicos ter-se-ão mesmo forjado alguns "mitos urbanos", ocasionalmente ainda citados, como uma "história" que recordo dos meus tempos de estudante e que davam conta que Georg Leisner, de facto um ex militar que participara em várias campanhas alemãs, particularmente na I Guerra Mundial, seria um agente da "Abwehr", os serviços de inteligência militar alemães e que, por esse motivo, teria sido "eliminado" pelo MI5 em Lisboa, através de atropelamento no final da guerra. Ora Georg faleceu em Estugarda em 1957 com 87 anos, tendo a sua obra arqueológica, nomeadamente a publicação dos monumentais inventários megalíticos da Península Ibérica, sido continuados pela viúva (entretanto ao serviço do DAI, instalado em Madrid a partir de 1954), por sua vez falecida em 1972, por coincidência também aos 87 anos.

ADENDA_ afinal o Gonçalo Pereira teve o cuidado de me enviar a data precisa do recorte do Mundo Gráfico. Trata-se do nº91 de 15 de Julho de 1944.

2ª ADENDA (27 de Abril de 2017)
Já depois de publicado este post em Janeiro, o José d'Encarnação contactou-me, dando-me conta de como ele próprio conseguira as fotos de arquivo da Junta de Turismo de Cascais. Informou-me então que no local das antigas grutas existia um pequeno memorial aos achados dos anos 40 do século passado. Na segunda-feira passada tive oportunidade de confirmar esse facto que desconhecia. Aqui ficam as provas fotográficas:



quarta-feira, 11 de janeiro de 2017


O MEGALITISMO DE ÉVORA E O TURISMO
Dados para uma história já antiga



Não apenas o Cromeleque dos Almendres, mas o megalitismo em geral do Alentejo e em particular da região de Évora, são hoje uma realidade patrimonial adquirida pelo turismo, e não só..., apesar da continuada ausência de qualquer estratégia concertada para a sua promoção ou salvaguarda, por parte das várias tutelas teoricamente interessadas (Cultura, Turismo, Autarquias, etc...).

Graças à mais valia telúrica de toda a sua envolvente, há poucas semanas, os Almendres serviram uma vez mais de cenário para filmagens de uma grande metragem ("Aparição"), na sequencia de contactos com as entidades da tutela do património classificado e os proprietários das terrenos onde se situam. Mas, a "disponibilidade" do monumento é infelizmente  (e perigosamente) de tal ordem, que é raro o dia em que não chega ao nosso conhecimento, o uso ou mesmo abuso indiscriminado do seu espaço e da sua imagem, para os fins mais diversos. Como se pode neste momento confirmar diariamente na RTP1, com a passagem de uma série ("O Sábio") em que, não sabemos em que contexto pois ignoramos o enredo, aparecem com grande destaque os menires dos Almendres! Desconhecemos se alguma entidade pública (tutela do património) ou privada (proprietários) foi ouvida previamente para o efeito, mas temo que não, como infelizmente é recorrente.

Naturalmente este interesse particular pelo MEGALITISMO desta região não surgiu por mero acaso, de um momento para o outro. Há de facto uma história que remonta nos seus primórdios à transição do século XIX para o século XX e que tem nas suas origens o envolvimento da vetusta  Real Associação dos Arqueólogos e Architectos Portugueses, na elaboração da primeira lista de Monumentos Nacionais que acabaria por ser publicada nas vésperas da implantação da República em 1910. Colaborou nessa acção o arqueólogo e historiador eborense Gabriel Pereira, a quem se deve o levantamento "à pena", de várias antas nos arredores de Évora. A acção posterior do Grupo Pro-Évora, a mais antiga Associação de Defesa do Património do país fundada em 1919, também viria a ter um papel importante no reconhecimento e na salvaguarda de numerosas antas dos arredores de Évora, sendo ainda hoje o seu arquivo um repositório fotográfico fundamental para alguns destes monumentos. Mas quem viria perla primeira vez a chamar a atenção de forma objectiva para o potencial turístico do MEGALITISMO, seria talvez Afonso do Paço, presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses, num pequeno artigo publicado em 1963 na revista "A Cidade de Évora". De referir que nesta época o alemão Georg Leisner tinha já publicado, em português e também naquela revista eborense, um extenso inventário das cento e cinquenta antas então conhecidas ("Antas dos arredores de Évora, 1949) instrumento que desde então, tem servido de base à divulgação deste património.


Embora Afonso do Paço, generalize ao património arqueológico em geral, aquele potencial e ultrapasse até os limites do Concelho de Évora (dá nesse artigo algum destaque ao Castelo da Lousa, sítio romano de Mourão, hoje sob as águas do Alqueva), começa por abordar a excepcional mais valia turístico-cultural do megalitismo de Évora, dando como exemplo de conservação e acessibilidade a Anta do Barrocal. 

A foto da Anta do Barrocal no artigo de Afonso do Paço


No entanto, o primeiro trabalho de fundo neste campo, já numa perspectiva de "Roteiro" de apoio ao turista mais interessado, ficaria a dever-se a um médico de Reguengos de Monsaraz (José Pires Gonçalves), mais conhecido como grande estudioso e defensor da vila fortificada de Monsaraz, mas que teve também assinalável actividade como arqueólogo particularmente interessado no rico megalitismo de Reguengos (ver a propósito: http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/05/para-historia-do-cromeleque-do-xerez-o.html). O seu trabalho, um opúsculo separata de "A Cidade de Évora", foi editado em 1975, embora dando realce aos núcleos megalíticos de Évora e de Reguengos, abrangia também importantes monumentos de Montemor e de Avis. Mas a grande novidade desse "roteiro" era a chamada de atenção para a nova realidade megalítica da região que passava pela recente descoberta do megalitismo não funerário (menires e cromeleques), uma realidade que passara despercebida ou não interessara a Georg e Vera Leisner. Assim, das três dezenas e meia de monumentos identificados e localizados, mais de metade são já menires ou recintos megalíticos. Para além dos que o próprio Pires Gonçalves identificara na zona de Monsaraz (como o Xerez, Outeiro, Perdigões ou Bulhôa) aparecem também já devidamente referenciados os menires e cromeleques de Évora, reconhecidos por Leonor de Pina, nomeadamente os Cromeleques dos Almendres e da Portela de Mogos.


Mais uma vez a fotogénica Anta do Barrocal, agora no "Roteiro" de Pires Gonçalves

O "Roteiro" de Pires Gonçalves, seria a base de divulgação turística do megalitismo alentejano até praticamente ao início dos anos 90 do século passado, graças a um "desdobrável" com arranjo gráfico e desenhos originais de António Covinha, publicado pouco tempo depois pela Câmara Municipal de Évora com base no referido "roteiro" e que foi distribuído durante largos anos no posto de turismo da cidade.






No final dos anos 80, já no contexto da estreita colaboração entre a Câmara Municipal e o Serviço Regional de Arqueologia do Sul, sedeado na cidade desde 1980, inicia-se uma nova e decisiva fase de divulgação do megalitismo eborense. Uma das grandes dificuldades na valorização deste património, reside na sua dispersão no território, quase sempre em propriedade privada e por vezes com acessos difíceis. O facto da Herdade dos Almendres ter estado ocupada pelos trabalhadores durante a "Reforma Agrária", viria a facilitar não apenas as escavações e restauro dos anos 80 (promovidas pela autarquia e dirigidas por Mário Varela Gomes) mas permitiria a melhoria do acesso ao mesmo através da reconstrução de um estradão de que ainda hoje (apesar dos problemas de conservação) garante a visita ao Cromeleque. Na sequencia dessa obra que envolveu custos significativos para a Câmara, a autarquia ensaiaria então a concretização de um primeiro "circuito turístico-megalítico".Este apoiava-se num novo desdobrável (português, inglês e francês), apostando num percurso circular com início e fim em Évora. Propunha-se a visita aos Almendres, seguindo depois para a Gruta do Escoural e Anta-Capela de São Brissos (monumentos do vizinho concelho de Montemor), terminando na Anta Grande do Zambujeiro já no regresso a Évora.


Alguns detalhes do novo folheto concebido por António Covinha (1989)


A divulgação deste novo "produto" (como hoje gostam de falar os agentes turísticos) viria a ser acompanhada por alguns órgãos de comunicação. Guardo, como exemplo desse esforço, o recorte do suplemento do DN de 2 de Junho de 1991, com uma extensa reportagem sobre o megalitismo de Évora e Reguengos, provando com outros recortes similares já divulgados neste "blog", que o reconhecimento generalizado da importância deste património, não é afinal um "mero acaso", mas o fruto de um esforço longo e continuado, ainda que raramente obedecendo a uma planificação objectiva...


Parte da reportragem do DN Magazine de 2 de Junho de 1991
O salto qualitativo neste domínio, porém, sucederia em 1992 quando foi possível conjugar os meios da Câmara e da então Direcção Regional do IPPC (por extinção do SRAZS) num projecto que juntava pela primeira vez a necessária divulgação informativa com a não menos importante intervenção no terreno. Partindo da muita informação disponível, foi realizado trabalho no terreno identificando os monumentos que pelo seu estado de conservação e acessibilidade poderiam de facto ser integrados num verdadeiro roteiro megalítico. Selecionados os monumentos (duas dezenas e meia), negociados com os proprietários a criação de meios de acesso quando necessários (estabelecimento de corredores de ligação às estradas nacionais ou municipais e instalação de algumas "porteiras"), passou-se de seguida ao "plano de sinalização". O projecto partia do princípio que o turista poderia procurar descobrir os monumentos sem o apoio de terceiros e para além da informação escrita que seria disponibilizada num novo e completo roteiro (editado em português, inglês, francês e espanhol), foi implementado no terreno um plano de sinalização. Este incluia sinais de identificação ou mesmo de simples direção, através de um logotipo criado para o efeito.
O logotipo do "Roteiro megalítico de Évora", concebido por Rui Belo


Capa e contracapa da edição em português do Roteiro do Megalitismo de Évora, 1992 (também editado em inglês, francês e
espanhol) há muito esgotado. Fotos de Manuel Ribeiro. O Roteiro contou ainda com a colaboração do autor deste blog, de Rui Parreira, Miguel Lago da Silva,  Panagiotis Sarantopoulos e António Couvinha (design gráfico).
Do ponto de vista da lógica do "roteiro", eram propostos três circuitos diferenciados, todos com início e fim na cidade de Évora. O primeiro, e que de algum modo já então perceiamos ser o de maior potencial, orientava-se para Oeste e incluia sítios que viriam a tornar-se paradigmáticos como o Cromeleque dos Almendres, a Anta Grande do Zambujeiro, as Antas de Vale Rodrigo (então em estudo por Philine Kalb e Martin Hock), não esquecendo as sempre citadas Antas do Barrocal. O roteiro ignorava então o Cromeleque da Portela de Mogos, já conhecido mas sem condições de visita, e o Cromeleque de Vale Maria do Meio, ainda não identificado à época. O Roteiro propunha ainda dois percursos complementares. Um na direção da Azaruja, facilitando a visita  a vários monumentos mas com especial destaque para dois exemplares excepcionais, as Antas do Paço das Vinhas e da Herdade das Cabeças. O outro, orientado para a Torre dos Coelheiros, recuperando a memória de alguns monumentos, como as Antas do Freixo de Cima que, tal como o Paço das Vinhas, tinham sido objecto da atenção do grande arqueólogo francês Émile Cartaillac ainda no século XIX. 

Da estrutura informativa destes circuitos hoje, praticamente, já nada resta, com excepção de uma ou outra placa sinalizadora já muito enferrujada.


O que resta (ou restava, pois desconheço a data da foto) do painel sinalizador da Anta do Paço das Vinhas (foto de Miguel Palmeiro, importada do Portugal Megalítico (Facebook)


A Anta 2 de Pinheiro do Campo (S.Sebastião da Giesteira) que integrava o Circuito 1. Ainda apresenta (Março de 2017) a antiga placa informativa, muito danificada, bem como restos da "porteira" de acesso então instalada com a autorização dos proprietários. No âmbito deste projecto de circuito, a TELECOM da altura, retirou um poste telefónico que estava cravado o que resta da mamoa original.






Ecos do novo roteiro na imprensa local e nacional
Não terminou neste projecto a valorização do património megalítico eborense. Aliás, nos anos imediatos (década de 90) e já com o apoio dos fundos comunitários (Projectos LIFE) a Câmara Municipal viria a promover ou a apoiar diversas intervenções, ainda que concentradas na zona de Guadalupe-Valverde, que consolidariam este recurso patrimonial, como uma mais valia com futuro.

 Tiveram nesse início dos anos 90 particular importância e repercussão, as grandes intervenções de investigação e restauro então realizadas nos três Cromeleques de Guadalupe (Almendres, Portela de Mogos e Vale Maria do Meio) três monumentos classificados que poderiam ser a espinha dorsal de um verdadeiro "Stonehende" ou um "Carnac" nacional. Infelizmente, por razões financeiras, legais e eventualmente políticas, há muito que a autarquia de Évora deixou de ter capacidade de intervir neste património, como o fez no passado. Se os Almendres ainda conseguem transmitir alguma sensação de ordenamento, apesar da ausência de qualquer gestão do sítio, a visita à Anta Grande do Zambujeiro, verdadeira catedral do megalitismo alentejano, é cada vez mais penosa, face ao grau de degradação que a sua estrutura atingiu.