quinta-feira, 29 de janeiro de 2015



O “Alegre” do Ródão





Ao ler no último nº do Jornal de Letras (21 de Janeiro) os depoimentos evocativos do cinquentenário da publicação da “Praça da Canção” de Manuel Alegre, não pude deixar de recordar, a propósito, a minha própria experiência pessoal. Ao contrário da maioria dos entrevistados do JL, ainda não estava na Faculdade em 1965, mas nem por isso estava imune aos efeitos inflamatórios que o aparecimento daqueles poemas, sobretudo nas suas versões musicadas, teve em muitos sectores da sociedade portuguesa. Curiosamente, estando em meados dos anos sessenta a estudar no seminário em Almada (na velha quinta de São Paulo, cenário do "Frei Luís de Sousa, de Garrett), foi através do jovem Padre Francisco Fanhais, (um dos declarantes ao JL) que eu e os meus colegas tomámos contacto com a Trova e demais poemas musicados por Adriano Correia de Oliveira, quer por actuações do próprio Fanhais, já então conhecido pelo lançamento do seu primeiro disco como “Padre cantor” e pela sua actuação no Zip-Zip, quer através da escuta do próprio disco do Adriano, usado frequentemente como tema (pasme-se!) da meditação matinal.

A "Praça da Canção" na contracapa do nº de Março de 1968 do jornal policopiado dos alunos do seminário de Almada ("Dimensão 7") no qual eu assumia o "pomposo" cargo de Editor...

Quando poucos anos depois cheguei à Faculdade de Letras de Lisboa, podia ainda não perceber o conteúdo político dos jornais de parede ou dos comunicados das organizações de todos os matizes políticos imagináveis, mas conhecia de cor as canções do Adriano que aliás tive oportunidade de ver e ouvir numa memorável e atribulada actuação (1971?) nas escadas da Cantina Velha da Cidade Universitária. Era por isso inevitável que, “transferido” para Vila Velha de Ródão, em 1971/72 com os meus colegas do GEPP no contexto das campanhas de levantamento de arte rupestre do Vale do Tejo, ameaçado de submersão pela construção da Barragem do Fratel, levasse comigo a viola adquirida na escola musical Duarte Costa (ali à Av.João XXI) ainda nos tempos de Almada. Preciso será recordar aos mais novos que nesses tempos fazer arqueologia em Portugal, mesmo num contexto de obra pública, como era o caso, era uma aventura mista de generosidade e loucura, só possível pela juventude física dos intervenientes ou pela juventude mental do eventual patrocinador científico, no caso o Dr. Eduardo da Cunha Serrão, já então perto dos 70 anos! Aboletados, graças aos subsídios da Gulbenkian, na “pensão da velha”, vulgo “Pensão Castelo” ao Porto do Tejo, ignorando os odores indescritíveis da vizinha Celulose do Tejo sem filtros ou outras mariquices ecológicas, depois de dias inteiros de trabalho de campo a que acedíamos por longas caminhadas pela linha da Beira-Baixa, evitando os comboios nos túneis e nas pontes, ocupávamos os tempos livres nocturnos com dois passatempos concorrentes. Tão inconclusivas como acaloradas discussões sobre epistemologia arqueológica lideradas pelo Jorge Pinho Monteiro, pelo Francisco Sande Lemos ou pelo Luis Raposo (imperavam então as perspectivas estruturalistas, bebidas directamente nos originais franceses) e as inevitáveis canções de protesto, que eu animava à viola, basicamente poesia musicada do Manuel Alegre nas múltiplas versões já disponíveis no início dos anos 70: Adriano, Luis Cília, Zeca, Manuel Freire, Fanhais, etc… Excepcionalmente, quando a Helena Afonso, estudante do Conservatório, se nos juntava no Ródão, havia ainda lugar a algumas variações líricas, ou até a canções revolucionárias espanholas do tempo da Guerra Civil - que o Rui Parreira dominava com o seu castelhano impecável- quando se tinha audiência apropriada, como foi o caso das estudantes madrilenas que, por várias ocasiões, com a já então assistente universitária Maria Querol, vieram reforçar a mão de obra "científica" rodense. Não estranhem pois os amigos comuns que por acaso ouçam o Vítor Serrão, sempre que nos cruzamos, chamar-me por “Alegre”, a alcunha com que me brindou no Ródão e que até hoje não esqueceu. 
 Sessão evocativa do quadragésimo aniversário da descoberta da Arte Rupestre do Vale do Tejo, promovida pela Câmara Municipal de Vila Velha de Ródão, em Outubro de 2011

O "Alegre" em plena actuação na Pensão Castelo
O Vitor Serrão, pai da alcunha, afinal também dava uns "toques"...



António Carlos Silva e Maribel, no Ródão, em Dezembro de 1973. Maria Isabel Navarrete era na altura estudante na Univ.Complutense de Madrid, aluna de Maria Querol. Hoje é investigadora titular do CSIC (informações e foto do Francisco Sande Lemos, que aqui acrescento a este post, em 2.12.2015)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015




VIAGEM AO BERÇO DA PRÉ-HISTÓRIA FRANCESA

Julian Bécares, Luis Raposo, Emilio Tortosa, Hans Siefener,  Javier Sastre, Jesus Jordá, Henri Laville, Jordá Cerdá e António Carlos Silva, frente ao Instituto do Quaternário da Universidade de Bordéus (9 de Abril de 1983)


Há dias, ao procurar por um qualquer documento, reencontrei um velho recorte do diário de Salamanca "El Adelanto" (jornal recentemente desaparecido, segundo percebi de uma pesquisa na NET), em que se dá conta de uma viagem de estudo luso-espanhola ao Sudoeste da França, em Abril de 1983. A guarda de um tal registo entre os meus papéis, como se entenderá da leitura do texto da notícia, resulta do facto de, como representante do IPPC (onde chefiava já o Departamento de Arqueologia) ter tido a oportunidade de fazer parte da "delegação portuguesa" conjuntamente com o Luis Raposo, a título de pré-historiador do Museu Nacional de Arqueologia. Tratou-se de facto de uma jornada memorável, não apenas pela oportunidade rara de visitar um importante conjunto de sítios fundamentais na construção do conhecimento pré-histórico mundial, mas também pelo estreito convívio mantido com investigadores de renome internacional e que apenas conhecíamos da bibliografia. De referir que os contactos na origem desta viagem foram proporcionados pelo geólogo castelhano Jesus Jordá Prado que assina o artigo do "El Adelanto" datado de 28 de Abril de 1983, (filho do conhecido catedrático de Pré-história de Salamanca,  Jordá Cerdá) que já conhecíamos por ter colaborado nas escavações do GEPP do final dos anos 70, em Vilas Ruivas e Monte do Famaco. Não vale a pena entrar em detalhes sobre a viagem, uma vez que o relato de Jesus Pardo, que deixo em anexo, é bastante exaustivo. Recordo apenas  que a "delegação" portuguesa se deslocava num duríssimo UMM de primeira geração (então em voga por causa do DACAR), o que despertava alguma curiosidade por onde passávamos, especialmente em França. De entre as personalidades que conhecemos, para além do próprio Jordá Cerdá (1914-2004) que já quase septuagenário acompanhou toda a viagem, recordo em especial a visita guiada ao Instituto do Quaternário pela ainda activíssima Professora Denise de Soneville-Bordes (1919-2008), grande especialista do Paleolítico Superior e viúva de François Bordes (1919-1981), o fundador da moderna tipologia paleolítica, e as visitas ao extraordinário complexo de sítios pré-históricos do Vale do Rio Vezere, dirigidas pelo quaternarista Henri Laville, infelizmente também já desaparecido. Escusado será dizer, que o ponto alto da viagem acabaria por ser mesmo a visita a Lascaux, gruta que se encontrava já então encerrada (desde 1963) por razões de salvaguarda das suas pinturas, à visita turística.

Abrigo La Ferrasie
Abrigo La Ferrassie
Abrigo Le Moustier
La Madeleine (Luis Raposo e Henri Laville)
Visita guiada por Henri Laville ao abrigo pré-histórico de La Ferrassie, conhecido pelas descobertas de várias sepulturas de Neanderthais







Hans Siefner no Museu Pré-histórico de Les Ézies

António Carlos Silva, Luis Raposo e Hans Siefner, Les Ézies

Isabel Silva, Luis Raposo e Hans Siefner

A viatura UMM que nos levou a França nesta missão. Esteve ao serviço do Departamento de Arqueologia do IPPC durante os anos 80.


António Carlos Silva e Isabel Silva, junto á entrada da Gruta de Lascaux (Montignac), Abril de 1983







quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Do projecto da Carta Arqueológica de Portugal ao “ENDOVÉLICO”, passando pela “messe” dos cadetes de Mafra



Há momentos que, por uma qualquer razão especial, perduram indelevelmente na nossa memória. O exemplo clássico, para a geração dos cinquenta ou mais, está definitivamente retratado na célebre pergunta do jornalista Baptista – Bastos, “onde é que você estava no 25 de Abril?” Ontem, ao consultar um velho processo da “primeira” Direcção Geral do Património Cultural (primeira, porque após um longo périplo de 3 décadas, temos hoje de novo uma DGPC!), deparei com um Relatório de 1976, assinado pelo saudoso Dr. Nunes de Oliveira, que dava conta das conclusões de uma reunião da Comissão para a CAP (Carta Arqueológica de Portugal) de que faziam parte, entre outros os Drs. Bairrão Oleiro e Jorge de Alarcão, com a Fundação Calouste Gulbenkian, representada pelo Dr. Artur Nobre de Gusmão, então director do respectivo serviço de Belas-Artes. Ainda que aquele ambicioso projecto contasse essencialmente com o apoio financeiro da Fundação, resulta da leitura deste documento que aquela entidade, esperava que o Estado, através da DGPC, reforçasse a respectiva participação com meios humanos e técnicos. Previa-se então, segundo consta do referido relatório,  a formação de quatro equipas de campo que seriam dirigidas pelos arqueólogos Vitor Oliveira Jorge, já então na Universidade do Porto, Victor Gonçalves e  José Morais Arnaud, da Universidade de Lisboa e ainda de António Cavaleiro Paixão. A participação deste último, acabado de chegar de Moçambique onde lecionara na Universidade de Lourenço Marques, estava, no entanto, dependente da respectiva contratação pela DGPC, o que viria a acontecer ainda em Julho desse mesmo ano de 1976. Naturalmente, seria necessário congregar novos elementos para constituir as quatro equipas de campo e, nessa reunião, falava-se já da organização de um curso para jovens prospectores com esse objectivo o qual, no entanto apenas viria a concretizar-se no ano seguinte. É aí que a memória selectiva funcionou no meu caso: recordo exactamente o sítio onde estava há quase quarenta anos, quando por mero acaso, deparei com o anúncio de jornal que publicitava as inscrições para participação no curso. Terá sido num fim de tarde de Setembro ou Outubro de 77, no Convento de Mafra, frente a uma "mini" ao balcão da “messe” dos cadetes do curso de oficiais milicianos de infantaria, um tugúrio localizado no nível térreo do gigantesco e labiríntico convento, ao lado de um corredor tão largo que nele ainda circulavam os velhos Jeeps retornados da guerra colonial, a caminho da armaria para montar ou desmontar os canhões sem recuo de 120mm (?). Em termos objectivos, aquela que parecia ser a primeira oportunidade que se me deparava de poder afinal seguir uma carreira profissional ligada à arqueologia, coisa que até então parecia impossível em Portugal, surgia no momento mais inoportuno que poderia imaginar: em pleno serviço militar obrigatório, que pese embora os recentes 25 de Abril e de Novembro, continuava a ser um “intervalo” muito concreto na vida dos jovens portugueses. É portanto, fácil imaginar a frustração sentida.
O anunciado curso de “prospectores” acabou por realizar-se ainda que com muitas peripécias pelo meio que outros meus contemporâneos que nele participaram poderão um dia relatar, o que não impediu que o projecto da CAP apoiado pela Fundação Gulbenkian viesse a revelar-se um tremendo fiasco. De facto, pese embora o voluntarismo e a competência dos envolvidos, bem como algum dinheiro da Gulbenkian ainda investido, a inexistência de um adequado enquadramento institucional, revelava-se fatal para responder às complexas questões técnicas e logísticas que um empreendimento nacional daquela natureza, implicava. Em termos práticos, o projecto CAP apoiado pela Gulbenkian não foi além de algumas semanas de trabalho, de um reduzido número de arqueólogos, concretizado entre Oriola e Alvito (local escolhido porque estava em construção a respectiva Barragem) e o próprio conceito de uma Carta Arqueológica, assumida como um projecto de âmbito nacional, ainda que inscrito no programa inicial do Departamento de Arqueologia do IPPC criado no Outono de 1980 (e com o qual deparei com a segunda e definitiva oportunidade de me profissionalizar) viria a ser abandonado e substituído pelo conceito de um inventário nacional dinâmico, hoje materializado na base de dados informática do ENDOVÉLICO.


terça-feira, 20 de janeiro de 2015


O Castro da Cola e a Necrópole da Atalaia_ nas memórias do "Diário Popular"

Abel Viana acompanhando a visita ao castro da Cola do arqueólogo Helmut Schlunk fundador e director até 1971 da delegação de Madrid do Instituto Arqueológico Alemão (Foto arquivo DAI).

Graças à amabilidade de Gonçalo Pereira, director da edição portuguesa da National Geographic, tomei conhecimento de mais um “recorte” do saudoso Diário Popular que agora aqui disponibilizo. Trata-se de um pequeno artigo datado de 22 de Setembro de 1966, assinado por José Moedas, conhecido jornalista do Diário do Alentejo falecido em 1994, e que tinha como título “Duas estações arqueológicas que estão à espera de novas investigações”. As estações em causa, ambas localizadas em Ourique e ilustradas com fotos, eram o Castro da Cola e a Necrópole da Atalaia, os últimos sítios arqueológicos a concentrarem a atenção do arqueólogo minhoto Abel Viana que, sem nunca esquecer as suas origens, adoptara o Alentejo e a cidade de Beja como a sua terra de eleição.
(vide o meu anterior post- http://pedrastalhas.blogspot.pt/2014/09/ser-ou-nao-ser-alentejano-participei.html

José Moedas destaca no seu texto, a circunstância de, desde a morte de Abel Viana, aqueles importantes sítios estarem praticamente ao abandono e a aguardar que alguém lhes desse a atenção que justificavam. De facto, após um longo périplo pela arqueologia do Algarve e Alentejo, conciliando com dificuldade a actividade de professor primário com a investigação de campo, Abel Viana, graças ao apoio da Fundação Gulbenkian, assentara arraiais na Senhora da Cola. Já com mais de sessenta anos, lança-se num difícil projecto de investigação, escavando o remoto Castro da Cola, antes referenciado por André de Resende e Frei Manuel Cenáculo, um local fortificado que mostrava indícios de uma longa ocupação, desde a Idade do Ferro aos tempos da Reconquista. Foi a partir da Cola que depois descobriria a Necrópole da Atalaia, um dos mais importantes e complexos monumentos funerários da Idade do Bronze do Sudoeste peninsular, entretanto escavada em colaboração com arqueólogos do Instituto Arqueológico Alemão. Abel Viana viria a morrer subitamente no dia 17 de Fevereiro de 1964, no dia imediato a uma importante visita às escavações do Castro da Cola por uma comitiva presidida pelo Ministro das Obras Públicas (um alentejano, pai do conhecido político pós 25 Abril, Adelino Amaro da Costa) e pelo Governador Civil de Beja. Aquele que parecera a Abel Viana como o tão ansiado momento de reconhecimento e apoio a um projecto que ele entendia também de desenvolvimento de uma zona especialmente deprimida, com o seu infeliz desaparecimento, tornava-se afinal o dia do esquecimento.
A visita do Ministro das Obras Públicas às escavações do Castro da Cola em 16 de Fevereiro de 1964

É disso que, dois anos depois, José Moedas dava conta no seu artigo do Popular. E na verdade ambas as estações aguardariam ainda muitos anos até que a sua sorte começasse de novo a mudar. No início deste século, a aquisição  dos terrenos do Castro da Cola pelo Estado e a instalação de um Centro Interpretativo numa das casas de romeiros do Santuário, que vai subsistindo dificilmente com os apoios locais, criaram condições não só para a visita ao Castro mas também para se descobrirem diversos monumentos megalíticos da região, dando vida a um projecto sonhado por Caetano Melo Beirão nos anos 80 http://www.patrimoniocultural.pt/pt/patrimonio/itinerarios/alentejo-algarve/02/ .
Já a Necrópole da Atalaia, não teve a mesma sorte. Um arrastadíssimo processo de classificação, só recentemente concluído (Decreto 24/2013, de 25-7-2013), não impediu que há alguns anos tivesse sido profundamente afectada por um desastrado projecto de florestação.  


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015


Património, morrer pela doença ou pela cura? 
O exemplo da Fortaleza de Juromenha 



Raramente as opiniões técnicas que emitimos, enquanto “especialistas do património”, são lineares ou óbvias. Por vezes confrontamo-nos mesmo com opções complexas do género, “será que ao inviabilizar uma proposta de intervenção em património, ainda que a mesma contrarie alguns princípios metodológicos que consideramos essenciais, não estaremos a contribuir, por omissão ou inacção, para antecipar a inevitável perda do bem em causa, ou pelo contrário, concordando com a proposta supostamente destinada à salvaguarda do bem, mas excessivamente interventiva, não estaremos a ser coniventes com a sua irremediável adulteração pela perda da autenticidade que fundamenta a sua identificação como "património"? 

Todos os que trabalhamos na área  já lidámos com estas situações, mas recordo em particular um projecto de há uma década atrás que previa a “reconstrução integral” da Vila de Juromenha (intra-muros) e a sua reutilização para fins turísticos. Por um lado tinha alguma estima pelos proponentes e estava ciente das suas "boas intenções". Por outro conhecia bem o estado de abandono a que chegara a Fortaleza. Tal projecto, do ponto de vista urbanístico, parecia juridicamente viável, uma vez que o Estado, através das Finanças, desafectava o “miolo” da Fortaleza (não considerado por aquela entidade como classificado e portanto não pertencente ao "domínio público") e entregava-o à autarquia do Alandroal que por sua vez se associava com os privados interessados na promoção do projecto. Em última instância, uma vez “restaurado todo o sistema amuralhado e reconstruídas as antigas “casas” da vila de Juromenha (a partir de documentação gráfica existente no Arquivo Histórico Militar), essas mesmas casas poderiam ser alugadas ou mesmo vendidas para fins turísticos. Tudo dependia, no entanto de um Plano de Pormenor de Reabilitação urbana, sobre o qual enquanto arqueólogo, tive oportunidade de emitir um parecer desfavorável, dadas as suas graves implicações arqueológicas. Não terá sido apenas por razões patrimoniais que o projecto acabou por ser abandonado mas também não poderemos escamotear o facto de, uma década depois o conjunto da Fortaleza de Juromenha, continuar a aguardar uma qualquer solução de salvaguarda, que a resgate da situação de abandono e desmazelo em que vegeta, nem que seja a simples consolidação como ruína romântica, recordando o seu papel estratégico na formação e defesa da fronteira da nossa nacionalidade.
A Fortaleza de Juromenha, no Google

Maquete do "Plano de Pormenor de Reabilitação" de meados da década passada

O "miolo" da Fortaleza de Juromenha que se pretendia "reconstruir"

A título de registo, transcrevo parte do extenso “parecer” que redigi há exactamente sete anos, sobre este projecto, e que terminava com uma proposta de Não Aprovação:




 (citação)
“Deve evitar-se a reconstrução no “estilo do edifício” de partes inteiras do mesmo. A reconstrução de partes muito limitadas com significado arquitectónico pode ser excepcionalmente aceite, na condição de que se fundamente em documentação precisa e irrefutável. Se for necessário para o adequado uso do edifício, incorporar partes espaciais e funcionais mais extensas, deve reflectir-se nelas a linguagem da arquitectura actual. A reconstrução de um edifício na sua totalidade, destruído por um conflito armado ou por desastres naturais, só é aceitável se existirem motivos sociais ou culturais excepcionais, que estejam relacionados com a identidade própria de toda a comunidade”- Artigo 4º da Carta de Cracóvia –2000 (Princípios para a Conservação e Restauro do Património Construído) que retoma os princípios do Artigo 9º da célebre Carta de Veneza de 1964 que acrescenta ainda que “La restauration sera toujours  précedée  d’une étude archéologique et historique du monument.”

- Ainda que fosse possível congregar outras citações elucidativas, estas só por si são suficientes para mostrar que a proposta de intervenção para a Fortaleza da Juromenha vai contra todas as regras e princípios defendidos internacionalmente, a partir da 2ª metade do Século XX. Com efeito, pretendem os promotores privados, em associação com a autarquia (para quem o Estado acaba de transferir a posse do Artigo 88, ou seja de todo o “miolo” da Fortificação, cf. em Anexo a Portaria de 17/11/2007, para efeitos da sua “recuperação e conversão”) promover uma intervenção urbanística com fins turísticos envolvendo as seguintes componentes:

- restauro das muralhas e outras estruturas fortificadas, que continuarão a pertencer ao Estado;
- reabilitação de alguns edifícios ainda conservados no interior da Fortaleza e sua adequação a novos usos;
- construção/reconstrução, praticamente de raiz, de vários edifícios, ao “estilo da época”, com base nas plantas do Século XVIII.

Citemos de novo o próprio Plano: “ o empreendimento em questão consiste na recuperação/reabilitação” da Fortaleza da Juromenha (...) para que essa recuperação/reabilitação seja o mais real possível e crie o ambiente de uma urbe fortificada, conciliando a arquitectura tradicional com a arquitectura militar da segunda metade do Século XVIII.” 

-  Apesar de “tão contra a corrente” é evidente que a presente proposta não resulta, de um lapso ou de uma abordagem precipitada por parte dos promotores ou do arquitecto. Admitimos mesmo que estes estão plenamente conscientes de (quase) todas as questões e reservas que uma tal estratégia de recuperação hoje obrigatoriamente coloca. Sendo certo que, cada vez mais, se aceita e impõe como solução para a salvaguarda e valorização sustentável do património cultural, a sua reutilização para fins sócio-económicos, nomeadamente turísticos, também é verdade que é habitual contrabalançar essa reutilização com um conjunto de princípios que salvaguardem a essência do bem que se pretende proteger, sob pena da “cura poder matar o doente”. No caso em apreço, parte-se do princípio que a garantia da preservação do essencial, o conjunto das Fortificações monumentais, passa pela rentabilização económica do seu espaço livre interior, tirando partido da sua excepcional situação e adaptando-o a usos turísticos. Não sendo situação inédita em Portugal, a novidade parece estar essencialmente no “conceito de reconstrução cenográfica” que é proposto e que, de algum modo se aproxima do conceito do “parque temático”, cada vez mais em voga numa sociedade dominada pela realidade virtual. Com uma diferença substancial, é certo. É que neste caso, compensando a assumida falta de autenticidade (“pastiche”?)da intervenção com a evidente mais valia do imponente significado histórico e paisagístico do próprio lugar.

- Compreendida a motivação da proposta, cabe à tutela do património cultural avaliar se a pretensão é legítima, isto é, se o fim que em última análise se persegue com a classificação do conjunto (a salvaguarda do património cultural para as gerações futuras) não é posto em causa pelo projecto. Por outro lado, convém ainda ter presente nessa avaliação a situação institucional do próprio bem. Propriedade do Estado até há pouco tempo, que pouco ou nada foi fazendo pela respectiva conservação, parte do conjunto classificado acabou por de ser transferido recentemente para a posse do município do Alandroal, com a condição de este, através de uma empresa municipal de capitais mistos assegurar “a recuperação e reconversão do interior da Fortaleza de Juromenha, pela restauração das muralhas, hornaveque, fortim e fortaleza que continuarão a pertencer ao Estado”. (Portaria 1172/2007 de 17 de Novembro)

Uma abordagem conservacionista, tratando o conjunto monumental de Juromenha como uma “ruína romântica” a consolidadar, de enquadramento à reabilitação e reutilização do reedificado existente, eventualmente complementado por algumas intervenções em linguagem contemporânea, seria de certo patrimonialmente mais “correcto”. No entanto cabe aos investidores avaliarem da viabilidade (sustentabilidade) dos seus investimentos. Em contrapartida é responsabilidade da tutela do património, impôr as condicionantes e exigir as garantias de que a solução que venha a ser adoptada, independentemente de uma avaliação necessariamente subjectiva da respectiva imagem conceptual, não ponha em causa o essencial do bem. E, a nosso ver, isso passa pelos seguintes aspectos:

- garantia de que são minimizados, através de um estreito e permanente acompanhamento arqueológico, desde a fase de projecto até à da execução, os inevitáveis impactos no subsolo do interior da Fortaleza, dada a sua óbvia importância histórico-documental, se não mesmo patrimonial;

- garantia de que a metodologia de recuperação e reabilitação do edificado existente (muralhas e edifícios) obedece aos princípios e técnicas adequados aos valores patrimoniais em presença e se fundamenta num diagnóstico e num projecto de intervenção a ser submetido à apreciação das entidades de tutela;

- por fim, e seja qual for a opção que venha a ser proposta para o “desenho” da construção/reconstrução, que sejam claramente identificados e fundamentados os respectivos critérios e opções, a serem submetidos em fase de licenciamento às entidades da tutela.

(Janeiro de 2007)


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015


As pontes históricas, as "enteadas" do património
Ponte antiga da estrada de Pavia, sobre a Ribeira do Divor
Algumas estruturas patrimoniais, por razões várias que não dá para aprofundar aqui, parecem ser “mal amadas”, ou pelo menos, acabam olimpicamente ignoradas nos trabalhos de investigação ou mesmo de divulgação patrimonial no campo das artes, da arqueologia ou mesmo da etnografia. É, por exemplo, o caso das “pontes antigas ou históricas”. Raramente parecem interessar aos historiadores de arte em geral ou mesmo aos estudiosos da arquitectura, talvez pelo seu carácter mais especificamente técnico-funcional. Os arqueólogos pouco se debruçam também sobre este tipo de construções, a não ser que, condicionados pelo síndroma do “mais antigo”, julguem que a sua origem possa remontar ao Império Romano… Também não parecem interessar muito à etnografia, talvez porque tal tipo de construção esteja quase sempre num limbo patrimonial, entre o popular e o erudito. Apesar disso, as “pontes antigas”, parecem conseguir suscitar o interesse e curiosidade das comunidades locais que normalmente as conhecem e ainda usam, mesmo que quase sempre mal qualificadas de “pontes romanas”. Talvez por fazerem parte de itinerários que até há poucas décadas eram essenciais à sobrevivência económica e social dessas comunidades, constituindo-se como últimos testemunhos de uma rede viária hoje desaparecida ou engolida pela privatização ou desertificação da própria paisagem. 
Ponte antiga da estrada de Pavia, recuperada no âmbito do projecto do IPPAR "Pontes Históricas do Alentejo"

Em contra mão relativamente a este esquecimento, a antiga Direcção Regional de Évora do IPPAR (hoje Direcção Regional de Cultura do Alentejo) promoveu na década passada, com fundos comunitários, intervenções de conservação em duas dezenas de “Pontes Históricas” do Alentejo. Tão vasta operação, abrangendo estruturas de diversos tipos, desde Nisa , no Norte Alentejano a Santa Clara-a-Velha, já próximo do Algarve,  teve o mérito de chamar a atenção para este património tão esquecido e de, na generalidade dos casos, adiar uma ruína que era então eminente. Infelizmente, em minha opinião, apesar do voluntarismo dos técnicos responsáveis, falhou neste projecto um maior envolvimento com as comunidades locais garantindo, após as intervenções do IPPAR, planos de manutenção que fizessem perdurar no tempo os efeitos positivos do projecto. De facto, e com raras excepções, as pontes intervencionadas, até porque existe muita indefinição quanto ao seu estatuto, independentemente de estarem ou não classificadas, estão de novo ao abandono e a precisar de novas intervenções. Resta como útil testemunho desse importante trabalho, uma brochura sobre as “Pontes Históricas do Alentejo”, da autoria do arqueólogo João Marques, um dos impulsionadores do projecto, e informação específica na partilha dos “itinerários” do actual SITE da DGPC cuja consulta se recomenda.






Vem tudo isto a propósito, porque por amável oferta da Câmara Municipal de Arraiolos, tive acesso ao livro “Património(s) de Arraiolos”, uma edição de 2013 da autoria de Leonor Rocha, Ivo Santos e Gertrudes Branco.  A obra resulta do desenvolvimento de um projecto de “Levantamento Arqueológico e Patrimonial de Arraiolos”,(LAPA-2010-13)  que para além de outros objectivos permitiu aos alunos de Arqueologia da Universidade de Évora, realizarem as suas aulas práticas de campo. Não pretendo aqui fazer qualquer recensão ou análise crítica à obra, não é isso que está em causa, mas tão simplesmente através de um exemplo concreto com que deparei por acaso, demonstrar a tal falta de atenção, no caso por parte dos arqueólogos, às “pontes antigas” a que antes aludi. No capítulo dedicado á freguesia de Arraiolos, é descrita sumariamente a “Ponte sobre a Ribeira do Divor”, terminando a respectiva ficha com a seguinte indicação “Inédita?” (sic). Ora, em 2010, para além da há muito disponível descrição de Túlio Espanca (1975), a ponte tinha tido já sofrido as obras de conservação promovidas pelo IPPAR e constava da brochura das “Pontes Históricas” (2005). Na DRCALEN/IGESPAR decorria entretanto o processo de classificação como Imóvel de Interesse Público, hoje já concluído e no qual consta que a Ponte foi salva in extremis, no final dos anos 80, quando decorriam já obras de construção de uma nova ponte ao lado da antiga, obras que previam o desmantelamento desta. A feliz conjugação de esforços entre a Câmara Municipal e o ainda IPPC, levariam a que a JAE alterasse o projecto, construindo mais tarde uma nova ponte, a jusante, e conservando a antiga.


Ponte Velha da Fragusta, Vimieiro, Arraiolos
Já agora, porque falamos de Pontes Antigas e de Arraiolos, não posso deixar de referir-me a uma outra que, infelizmente também passou despercebida à equipa do LAPA e que, só por si, merecerá oportuna  entrada neste Blog. Trata-se da Ponte Velha da Fragusta, localizada a Norte da vila do Vimieiro sobre a Ribeira de Tera e que é uma das mais interessantes pontes medievais que conheço na região.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

 O APAGÃO DO “SITE DOS MONUMENTOS”




No passado dia 6 de Janeiro, alertado por post da minha colega da DGPC, arquitecta Maria Fernandes (ex técnica da DGEMN), confirmei que não estava acessível o site www.monumentos.pt, utilíssima ferramenta para quem trabalha ou investiga na área do património. Coloquei então um alerta na INTERNET, via “facebook” em que dizia:

“A ser permanente, trata-se de mais um atentado contra o conhecimento e a cultura em geral mas que é o corolário lógico do criminoso processo de extinção da DGEMN. Não do fim em si (que até poderia ser defensável numa lógica de racionalização de meios) mas do modo absolutamente desastroso como foi concretizado. Recordo ainda a reação de um colega arquitecto da DGEMN, entretanto colocado no IGESPAR, ao regressar aos serviços do Terreiro do Paço poucos dias após a extinção, para recolher alguns objectos pessoais, descrevendo como verdadeiro "cenário de guerra" aquilo que observou: computadores sem discos rígidos, mobília esventrada, papéis por todo o lado... E o mesmo se terá passado com as Direções Regionais, nomeadamente aqui em Évora, donde foi levado todo o arquivo histórico-documental (à má fila e sabe-se lá em que condições) com gravíssimo prejuízo para a gestão e salvaguarda do vasto património arquitectónico da região.”


Ainda com esperança de que se tratasse de um mero problema técnico, já que não vi entretanto qualquer notícia sobre o assunto, salvo outros comentários nas redes sociais constatando o óbvio, fiz hoje novas tentativas de aceder ao referido SITE, infelizmente sem qualquer sucesso, quer directamente, através de www.momumentos.pt, quer através do SITE do próprio IHRU, onde todos os serviços ON LINE estão operacionais, excepto os MONUMENTOS.

Nos meus 41 anos de serviço público, quase sempre na área do Património, nunca estive ao serviço da extinta DGEMN, por isso serei insuspeito de ter uma visão demasiado corporativa desta questão. Por outro lado, não serei a pessoa mais indicada para falar do elevadíssimo investimento em meios financeiros, humanos e técnicos que foi feito ao longo de décadas, para alimentar e pôr ao serviço público esta gigantesca “base de dados”, agora silenciada, que tornava acessível à investigação e à gestão do património cultural português, em qualquer parte do mundo, quase todo o importantíssimo acervo de uma instituição quase secular (sobre a importância destes novos recursos digitais, ainda há dias houve um qualquer colóquio na Assembleia da República, com a presença de especialistas europeus, pasme-se!). Recorde-se que a DGEMN, criada em 1929 mas herdeira de anteriores instituições congéneres que remontavam à transição da monarquia para a república, foi durante décadas um dos pilares fundamentais da actuação do todo poderoso Ministério das Obras Públicas no que respeitava ao restauro e conservação do património histórico português. Podemos e devemos hoje ter uma visão crítica sobre os princípios e as metodologias que nortearam durante muito tempo as suas intervenções mas não podemos deixar de reconhecer o seu papel fundamental na preservação do essencial do património arquitectónico português ao longo do Século XX.

Este desfecho trágico, a confirmar-se, será mais um gravíssimo atentado contra a cultura, mas infelizmente, haverá que reconhecer, será também o corolário inevitável da política desastrosa da reforma da administração pública, nomeadamente na área da Cultura. Era previsível e necessário (desde a criação do IPPC nos anos 80 que se falava nisso) que se procedesse mais tarde ou mais cedo à fusão entre os serviços patrimoniais da Cultura e os das Obras Públicas. Por razões irrelevantes (essas sim corporativas e por vezes até pessoais, relevando por vezes dos interesses ou das vaidades das respectivas chefias) essa via nunca foi encarada de forma séria e estruturada, preparando uma integração natural de serviços que em muitos casos se complementavam, apesar de algumas inevitáveis sobreposições. Não admira pois que, quando a crise tocou a rebate, ainda no âmbito do PRACE de José Socrates, as coisas se tenham precipitado de forma desastrosa, como se viu. Num primeiro momento esvaziamento forçado da DGEMN no que respeita a quadros técnicos e meios, logo seguido da brutal extinção (2007) sem cuidar ao menos da salvaguarda do enorme histórico acumulado. De então até hoje, ainda que essa fosse uma solução algo obtusa, tendo em conta as atribuições e competências respectivas, o IHRU foi assegurando, de forma cada vez mais débil, o funcionamento do SITE e a manutenção das instalações do Forte de Sacavém, adaptado com enormes custos financeiros a Arquivo Histórico no tempo da DGEMN e para onde foram transferidos todos os arquivos regionais, incluindo o de Évora. Sabíamos, todos os que trabalham nesta área, que da parte do IHRU, face às restrições financeiras e humanas transversais a toda a Administração, havia cada vez maior relutância ou dificuldade em manter estas estruturas a funcionar. Nos últimos tempos era até difícil aceder à documentação arquivística essencial ao desenvolvimento de projectos de intervenção patrimonial em curso, sobretudo a nível regional, ou porque a documentação “confiscada” às regiões não estava acessível por falta de meios, ou porque para a sua cedência, mesmo para uso de outros serviços públicos, começavam a ser exigidos preços incomportáveis. O último boato (?) que correu, falava de negociações entre a nova Direcção Geral do Património Cultural (resultante do PRACE de Passos Coelho) e o IHRU, para transferência da gestão do SITE e do Arquivo para a dependência da DGPC, mas que para isso a Direcção Geral precisaria de um reforço orçamental de 1 milhão de Euros o que, nos tempos que correm, é uma miragem.

Mas sobre tudo isto e apesar da importância crucial do tema, reina afinal um silêncio ensurdecedor.






quinta-feira, 8 de janeiro de 2015



“A mais bela máquina de viajar no tempo”



O Carlos Fabião, interessado e grande divulgador de tudo o que diga respeito à história recente e menos recente da arqueologia portuguesa, reencaminhou-me o PDF de um interessante artigo sobre a Anta Grande do Zambujeiro e o Cromeleque dos Almendres, da autoria de “Mário Henriques”, publicado em 13 de Outubro de 1967 no Diário Popular, ou seja durante as escavações de Henrique Leonor de Pina no Zambujeiro e pouco tempo depois do reconhecimento arqueológico do Cromeleque, graças a informação do sr. António Rebocho, então guarda da Herdade da Mitra, (hoje polo da Universidade de Évora). Já conhecia o artigo em questão, graças a um pacote de recortes de jornais que no final dos anos 80, ainda como Director do Serviço Regional de Arqueologia do Sul, recebi da parte do Dr. Quintino Lopes, antigo administrador do Hospital de Évora e dinamizador de um grupo amador de arqueologia, conhecido como “Admiradores do Alentejo”. Mas foi com imenso prazer que reli o interessantíssimo texto de Mário Ventura Henriques, à época jornalista do Diário Popular. Julgo aliás que este texto e outros dentro da mesma linha de redescoberta de um Alentejo profundo e esquecido, constarão da colectânea “Alentejo Desencantado”, publicada em 1969 e mais tarde reeditada pelo Círculo de Leitores. Não resisto a transcrever o final do artigo em questão:


Henrique Pina diz: “O impacto é a nossa acção individual” Mas a verdade é que o esforço individual quase sempre destrói o indivíduo. A anta ou o cromelech constituem o resultado de um esforço altamente colectivizado, de uma consciência profundamente enraizada na massa. À obra de gigantes que o homem pré-histórico ergueu no Alentejo, o homem da nossa época responde com um trabalho de pigmeu. Ao grande exemplo de unidade que representa o monumento megalítico opõe-se hoje o esforço idealista do amador. Eis a contradição- resta encontrar a síntese.

Para os interessados aqui fica o texto de Mário ventura Henriques (quase...) completo.



terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Ainda a Gruta do Escoural, 
a propósito de recente artigo da National Geographic



A edição de Janeiro de 2015 da prestigiada NATIONAL GEOGRAPHIC, disponibiliza um interessante artigo de divulgação sobre a Arte Rupestre Paleolítica, altamente valorizado pela sua componente fotográfica como é tradicional nesta centenária revista. A edição portuguesa (ao contrário da americana) trás mesmo este tema para a sua capa, ilustrada com uma magnífica foto dos célebres bisontes de Altamira, a gruta cantábrica que no final do Século XIX, após violentas polémicas, acabou por ser determinante para a aceitação da existência da própria “Arte Paleolítica”. O artigo vem documentado com um mapa da Europa, onde se localizam alguns dos exemplos mais conhecidos de sítios rupestres paleolíticos. Não tive acesso ao artigo original mas é possível e aceitável que na sua tradução e adaptação à edição nacional, se tenham acrescentado algumas referências ao território português, tanto no texto como no referido mapa, onde de facto aparecem localizados o Vale do Côa e a Gruta do Escoural.

National Geographic, Janeiro 2015 (ed. portuguesa)

 Este mapa trouxe-me à memória o meu primeiro manual de arte rupestre, adquirido no ano em que ingressei na Faculdade de Letras (1970), na então nova Livraria Ler (Campo d’Ourique, das poucas que ainda vão resistindo em Lisboa). Tratava-se do livro “L’Art Paleolithique”, de Peter J.Ucko e Andrée Rosenfeld, na edição francesa da Hachete, publicado simultaneamente  em Inglaterra e França, no final do ano de 1966. 



O que ainda hoje me parece extraordinário é que, nesta obra se fazia já referência à Gruta do Escoural que havia sido descoberta em 1963, mas cuja componente rupestre só se confirmara em 1965. Para compreender esta circunstância, que colocava então esta Gruta portuguesa em destaque, é preciso recordar que após a resolução da questão da autenticidade e do estabelecimento dos primeiros quadros cronológicos, os arqueólogos se começavam a interessar-se pelo reconhecimento da distribuição geográfica da Arte Paleolítica. No início dos anos 60, ainda dominava uma visão confinada à Europa Ocidental  (França e Espanha) e centrada em 3 núcleos principais: Périgord, Pirinéus e Montes Cantábricos. É certo que já então se conheciam excepções, mas eram assumidas como tal ou, nalguns casos, era mesmo posta em dúvida a sua cronologia paleolítica. É neste contexto que a descoberta do Escoural terá ganho especial importância. 



O mapa publicado em 1966 na obra de P.Ucko e A. Rosenfeld. A Gruta do Escoural, a mais Ocidental da Europa com arte rupestre paleolítica, aparece referenciada com o nº1.


Como se sabe, Farinha dos Santos, apesar de ter observado as primeiras pinturas no Outono de 1963, alguns meses após a descoberta da Gruta, hesitou algum tempo quanto à sua natureza e cronologia. No entanto, com o apoio de Manuel Heleno,o todo poderoso director do Museu Etnológico de Belém (hoje Museu Nacional de Arqueologia), publicou na respectiva revista um primeiro artigo sobre a arte rupestre do Escoural em meados de 1964, defendendo a sua origem paleolítica. Por várias razões, as conclusões não foram bem acolhidas entre os arqueólogos portugueses e, na dúvida, foi decidido solicitar apoio estrangeiro. Graças à intermediação do industrial de origem francesa, Maxime Vaultier, verdadeiro mecenas da arqueologia da época, e ao apoio da Gulbenkian, foi possível trazer a Portugal em Janeiro de 1965, o padre André Glory, um discípulo do Padre Breuil, que se encontrava então a estudar a Gruta de Lascaux e um dos maiores especialistas de arte rupestre na sua época. Glory esteve dois dias em trabalho no Escoural e, na mesma viagem, viria a realizar várias conferências em Lisboa, sobre arte rupestre e pré-história, nomeadamente na Associação dos Arqueólogos Portugueses, na Sociedade de Geografia, no Liceu Charles Lepierre, na Faculdade de Letras e até na Fundação Gulbenkian, onde após o reconhecimento que fizera no Escoural, dissertou mesmo sobre “Lascaux e o Escoural”.  

Glory na Gruta do Escoural, em Janeiro de 1965

Com base nos dados que recolheu, poucos meses depois, Glory apresentaria uma comunicação sobre a Gruta do Escoural na prestigiada Société Préhistorique Française, que seria publicada no respectivo Boletim em Janeiro de 1966. A tempo, certamente, de Peter Ucko e A. Rosenfeld, incluírem na sua obra editada no final desse mesmo ano, este novo achado, que pela sua localização geográfica, vinha pôr em causa essa visão demasiado regionalista da Arte Paleolítica e que hoje está de facto completamente ultrapassada. Uma última nota. Andrée Glory comprometera-se a colaborar com Farinha dos Santos no estudo da Gruta do Escoural, a que deveria regressar no Outono de 1966, mas desgraçadamente tal nunca viria a acontecer porque viria a falecer num trágico acidente de automóvel em Julho desse mesmo ano.
Gruta do Escoural- Foto de motivo animalista pintado, publicada em 1966 na obra de P.Ucko e A. Rosenfeld

O mesmo motivo publicado no artigo de 1966 do Boletim da SPF, em que Glory regista também traços gravados e que interpreta como caprídeo.
O mesmo motivo em foto recente.