quarta-feira, 24 de junho de 2015


João Inês Vaz
(1951-2015)


Mesmo em férias, a fatídica e inesperada notícia chegou-me mais uma vez via Archport, graças à atenção e ao cuidado do José d'Encarnação, e conhecendo ambos, posso de facto imaginar o especial pesar com que este deu a dolorosa notícia. Apesar de sermos da mesma idade e de termos frequentado a Faculdade quase ao mesmo tempo, apenas conheci o João no início dos anos 80, quando ambos nos iniciávamos profissionalmente na Arqueologia, (com um percurso prévio semelhante no ensino secundário) numa época em que a "comunidade dos arqueólogos" era ainda pouco mais do que uma grande família (com todas as alegrias mas também as inevitáveis desavenças ...). Provínhamos, é certo, de escolas bem diferentes, ele da clássica Coimbra e eu da pré-histórica Lisboa, mas isso nunca impediu o convívio e a camaradagem entre colegas (e amigos, julgo que o poso afirmar) que partilhavam a paixão pelo conhecimento e divulgação do património da nossa terra. Desde que vim para Évora, porém, os nossos encontros tornaram-se mais raros, limitados à ocasional frequência de colóquios, congressos ou outros eventos relacionados com arqueologia e património. Recordo em particular, uma intervenção que fiz em Viseu, há bastante tempo e a seu convite, no pólo local da Faculdade Católica, sobre o projecto arqueológico do Alqueva. Ultimamente, graças ao Facebook (as redes sociais também têm aspectos positivos) ia seguindo com interesse as notícias, ainda que não muito frequentes, que ia dando das suas actividades. Interessou-me em particular a sua ligação a um círculo (fundação, associação?) ligado à divulgação da obra de Aquilino Ribeiro, um autor que me marcou muito desde a adolescência, graças à leitura de livros como o "Romance da Raposa" ou o "Malhadinhas", para não falar dos romances que li mais tarde. Aliás, recordo bem a visita que fiz em meados dos anos oitenta com João da Palma-Ferreira (então presidente do IPPC) à casa de Aquilino, na Soutosa (Moimenta da Beira), no decurso de uma viagem de trabalho à zona de Viseu, na qual a temática arqueológica da região (colecções do Cónego Celso, Cava do Viriato, Castro da Sra da Guia, arqueologia urbana em Viseu, etc..) esteve bem presente com a ajuda do José Beleza Moreira, director do Serviço Regional de Arqueologia do Centro e ex-colega em Coimbra do João Inês Vaz.

Em memória do João Inês Vaz, aqui transcrevo com a devida vénia o emocionado texto que o Zé d'Encarnação ontem divulgou no ARCHPORT.


In memoriam de João Luís da Inês Vaz

            Os que me conhecem e conheceram o Doutor João Vaz imaginam quanto me custa elaborar esta nota necrológica sobre um amigo do peito e companheiro de tantas andanças pelas lides da Arqueologia, da História Antiga e da Epigrafia, que hoje inesperadamente, vítima de colapso cardíaco fulminante, faleceu na quinta de Dalvares (Tarouca), quando, mui tranquilamente, se entregava a trabalhos agrícolas.
            Está em fase de conclusão a edição da actas da VIII Mesa-redonda Internacional sobre a «Lusitânia Romana - Entre Romanos e Bárbaros», que mui gostosamente e com enorme brio, organizara em Maio de 2013, em Mangualde, na sequência da participação noutras mesas-redondas dessa série. E, claro, muito havia a esperar dele, porque, tendo nascido no Soito (Sabugal), a 13 de Novembro de 1951, contava, pois, apenas… 63 anos!
            Tive ocasião de acompanhar muito de perto toda a sua carreira, pois foi meu aluno na Pré-Especializaçãoem Arqueologia, no ano lectivo de 1975-1976, e logo nessa altura nos apercebemos da sua inteligência, dinamismo, vontade de aprender e de… trabalhar, inclusive em Arqueologia, pois participou, ainda como estudante, quer nas campanhas que, nessa altura, o Doutor Jorge Alarcão fez em Collipo e em Conimbriga, quer em Braga, cujo projecto de salvaguarda dos vestígios romanos de Bracara Augusta dava, nessa altura, os primeiros passos!
            E logo no ano lectivo de 1977-1978, fez estágio pedagógico para o Ensino Secundário na Escola Secundária de Alves Martins, em Viseu, estágio que concluiu com a classificação final de 16 valores. Foi docente do Ensino Secundário e leccionou, nomeadamente em regime requisição, no Centro de Viseu da Universidade Católica Portuguesa.
            Foi Governador Civil do Distrito de Viseu desde 18 de Novembro de 1995 a 30 de Abril de 2002, cargo para que foi nomeado atendendo também ao enorme trabalho, mormente de índole cultural que cedo começou a desenvolver na cidade de Viseu, de cuja Câmara Municipal fora, de resto, vereador de Dezembro de 1993 aNovembro de 1995. Organizou, por exemplo, os dois colóquios arqueológicos de Viseu, em 1988 e 1990.
            Membro da Comissão Científica do (actual) Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património, unidade de investigação a que sempre pertenceu, desde que foi criada na Universidade de Coimbra, depois de se ter interessado pela Arqueologia, pela História Local e Regional, foi a História Antiga e a Epigrafia que mais concitaram os seus interesses científicos. A sua tese de doutoramento sobre a civitas de Viseu (defendeu-a, em Pré-História e Arqueologia pela Universidade de Coimbra, a 20.10.1993) constitui, ainda hoje, uma obra de referência incontornável. Integrava a equipa de revista Hispania Epigraphica (da Universidade Complutense de Madrid), sendo, por isso, encarregado de rever todos os textos publicados sobre Epigrafia Romana, sobretudo na zona centro do País.
            Incansável defensor do património cultural; lutador; homem de causas que mui corajosamente abraçava; pai extremoso (como se poderá ver pelas informações acerca dos filhos que amiúde colocava no facebook - sua filha Gisela doutorara-se não há muito tempo, em Dublin, com um trabalho deveras inovador) - João Luís da Inês Vaz deixa-nos uma saudade imensa!
            E só nos resta elevar por ele uma prece: que descanse em paz!
            À sua mulher, Amélia Albuquerque, ao seu filho Edgar e à Gisela – apresento os mais sentidos pêsames, em meu nome pessoal e, creio poder afirmá-lo, em nome da comunidade arqueológica peninsular e, de modo especial, dos membros do centro de investigação a que pertencia e do Instituto de Arqueologia de Coimbra, que muito se honra em o ter como um dos seus primeiros alunos formados na Pré-Especialização.

                                                                                                José d’Encarnação

terça-feira, 16 de junho de 2015

Glandes plumbeae


Para os não especialistas em arqueologia romana (incluo-me obviamente na categoria) este título significa simplesmente, "projécteis de funda em chumbo" e aprendi (com algum embaraço) que podem ser elementos muito interessantes da cultura material romana ligados à vida militar, dada a sua mais valia como indicadores histórico-cronológicos. Dois factos recentes e praticamente coincidentes, fizeram-me recordar como aprendi a reconhecer estes artefactos. No dia em que o Rui Mataloto me enviou um dos seus últimos trabalhos (A propósito de um conjunto de glandes plumbeae: o Castelo dasJuntas (Moura) no contexto do episódio Sertoriano das Guerras Civis na margem esquerda do Guadiana - http://www.museumunicipalvfxira.pt/files/3/documentos/20150506172145722916.pdf) tinha acabado de estar no Museu de Évora frente à vitrine com materiais do Castelo da Lousa, uma parte do conjunto resultante das escavações que Afonso do Paço aí realizou nos anos 60. A razão de tal visita feita com o Arquitecto Pedro Pacheco e a responsável pelo Museu da Luz, Maria João Lança, relaciona-se com um projecto ainda em embrião de realização de uma exposição sobre o afundado Castelo da Lousa e, lá tive de explicar ao Pedro Pacheco, que artefactos eram aqueles pequenos "chumbos".

A vitrine do Castelo da Lousa no Museu de Évora e as três glandes plumbeae do Castelo da Lousa (escavações de Afonso do Paço)



Julgo que terá sido numa das primeiras campanhas na Foz do Enxarrique, dirigidas pelo Luis Raposo e por mim nas margens do Tejo em Ródão, um sítio do Paleolítico Médio identificado no final dos anos 70 pelo nosso amigo Francisco Henriques, que após meticulosa escavação do que parecia uma lareira paleolítica, semelhante à que escaváramos em Vilas Ruivas anos antes, se descobriram em directa associação com a dita lareira, três objectos de chumbo que deitaram por terra a hipótese de estarmos perante estruturas da idade da pedra. De facto ao contrário de Vilas Ruivas, sítio paleolítico "contemporâneo" do Enxarrique, em que encontrámos estruturas de habitat e combustão, estando ausentes os vestígios de fauna, neste caso a fauna era abundantíssima (incluindo um raro fragmento de antepassado do elefante) mas não havia sinais de estruturas. E perante o achado de "chumbadas de pesca", precipitadamente classificadas como tal pelos "especialistas paleolíticos", a lareira foi imediatamente classificada de "moderna". Mais tarde pudémos mesmo confirmar essa diferenciação com uma leitura mais atenta da própria estratigrafia do local. Assim deveriamos estar perante os vestígios de uma pescaria, até porque o sítio era desde sempre procurado para esse efeito. Meses mais tarde, por mero acaso, tivémos a sorte do Amílcar Guerra, na altura a escavar com Carlos Fabião um acampamento militar romano em Arganil, a "Lomba do Canho", identificado nos anos 50 por João de Castro Nunes, ter reparado nas "chumbadas" esquecidas em cima da secretária do Luis Raposo no primeiro andar do Museu de Arqueologia, em Belém. Algum tempo depois num artigo que Amilcar Guerra preparou para O Arqueólogo Português (Vol. 5 da S. IV) as três "glandes plumbeae" do Enxarrique seriam devidamente publicadas, correspondendo aos últimos nºs de catálogo do inventário geral das glandes encontradas até então no território português, num total de 28, ao lado dos conjuntos de Mértola (3) Casal da Cascalheira, Chamusca (9) do Castelo da Lousa (3), hoje expostos em Évora, de Carviçais, Moncorvo (1) e da Lomba do Canho (9).
 
As glandes do Castelo da Lousa (14,15 e 16) e da Foz do Enxarrique (26,27 e 28), publicadas por Amilcar Guerra

De referir que este catálogo está claramente desactualizado, tendo em conta a informação disponibilizada entretanto por Rui Mataloto no artigo acima citado. Com efeito, provenientes do Castelo das Juntas, um sítio nas margens da Ribeira do Alcarrache (Moura) identificado por Fragoso de Lima nos anos 30 e estudado no âmbito do Alqueva, Mataloto publica cerca de seis dezenas de projécteis ainda que, quase todos associados a um antigo achado ocasional, provavelmente com o apoio (hoje legalmente de uso muito restrito) de um detector de metais. No âmbito daquele estudo Rui Mataloto publica ainda 4 novos achados nas escavações do Alqueva, 3 das Juntas e um da Lousa.

Gravura publicada por Rui Mataloto: A- projécteis encontrados nas escavações do Alqueva, no Castelo das Juntas; 67- novo projéctil das escavações do Alqueva no Castelo da Lousa que se vem acrescentar aos 3 do Museu de Évora

Em resumo, e ainda para os mais leigos que eu nesta matéria, donde vem a importância destes pequenos objectos? Antes de mais o seu tempo de uso parece ter sido algo limitado e no território português parecem sempre associados a sítios atribuídos à época republicana, ou seja aos séculos II e I a.C.Sabemos que os romanos também usavam outros projectos manuais, com recurso ou não à funda,as glandes latericiae, ou seja, em pedra, mais ou menos afeiçoada para o efeito. Aparentemente, o uso do chumbo, por razões económicos deverá ter sido abandonado em época imperial. Depois, vem sempre a informação funcional destes objectos "militares". O seu aparecimento pode ou não servir de indicador da presença de militar ou até de actividade bélica? No caso do Castelo da Lousa, o seu aparecimento foi um dos argumentos básicos para o arqueólogo (antigo militar, com o posto de Coronel) Afonso do Paço considerar estar na presença de um pequeno forte, suficiente para abrigar um destacamento de controle do Guadiana, tese hoje afastada pelos resultados das campanhas de escavação, já publicadas, realizadas no contexto do Alqueva. E no que se refere ao Enxarrique, sítio nas margens do Tejo fronteiro às estratégicas Portas do Ródão, local de passagem do Tejo, como aconteceu com a primeira invasão francesa de Junot em 1807 (retratada em numerosas gravuras da época)? Eu e o Luis Raposo, graças à ajuda do Amílcar Guerra sempre gostámos de imaginar que afinal, a tal fogueira que inicialmente atribuiramos a caçadores do Paleolítico Médio (o que lhe daria a bonita idade de pelo menos 30 000 anos), servira afinal para aquecer a noite a um pequeno destacamento ao serviço das tropas do General Junio Bruto que algures no século II a C (há uns míseros 2 000 anos) escolhera aquele local, de inegável beleza e espectacular enquadramento, para acampar. As glandes plumbeae ali esquecidas, acabaram por ser o elo perdido com a memória desse acaso.


A Foz do Enxarrique (junto á tomada de água) vistas das Portas do Ródão. Escavações no sítio do Paleolítico Médio da Foz do Enxarrique, nos anos 80.

domingo, 14 de junho de 2015

Novos livros, entre Évora e Mértola

Há dias assim. Precisávamos ter o dom da ubiquidade para poder acompanhar os amigos em ocasiões que sabemos, por experiencia própria, serem particularmente importantes. No nosso campo de trabalho, publicar um livro de maior ou menor fôlego, representa vencer mais uma etapa, atingir uma meta importante num percurso pessoal quantas vezes feito a pulso e com grandes dificuldades, circunstancia que dá especial significado a estes momentos, partilhados com amigos e companheiros de ofício ou de interesses. É verdade que nestas ocasiões também está presente o lado social, mais ou menos interessante enquanto contributo importante de divulgação cultural, mais ou menos displicente enquanto oportunidade para uns quantos se mostrarem ou serem vistos.Vem tudo isto a propósito de na passada sexta-feira (12 de Junho) terem coincidido dois eventos desta natureza a que gostaria de não falhar. Em Évora, no museu, o Vitor Serrão apresentava o seu mais recente trabalho "Arte, religião e imagens em Évora-no tempo do Arcebispo D.Teotónio de Bragança, 1578-1602" e em Lisboa, no MNA,a equipa de Mértola, de uma assentada, divulgava mais quatro livros, produzidos no âmbito do projecto iniciado quase há quatro décadas por Cláudio Torres na vila alentejana. "Catálogo geral do Museu de Mértola", "Memória dos sabores do Mediterrâneo", "Entre Roma e o Islão" e "Cerâmica islâmica de Mértola". Naturalmente, alguns destes livros tinham sido editados já há algum tempo e o lançamento do último, da autoria de Susana Gomez, acontecera há poucos dias em Évora, no contexto de uma importante exposição versando a temática da herança islâmica eborense actualmente aberta ao público no Convento dos Remédios desta cidade. Ligam-me antigos e sólidos laços de amizade com toda a equipa de Mértola, praticamente desde o início do projecto, na medida em que através das minhas diferentes funções, primeiro em Lisboa no Departamento de Arqueologia do IPPC, depois em Évora, no Serviço Regional de Arqueologia do Sul, não faltaram ocasiões em que foi necessário, de alguma maneira e no que estava ao meu alcance, dar uma mãozinha à "malta de Mértola". Ou porque, (sobretudo nos primeiros tempos), o projecto não agradava politicamente a certas entidades com algum poder de decisão no estabelecimento de prioridades na hora de atribuir os magros subsídios à arqueologia, ou porque as questões burocrático-administrativas, que não eram de facto o forte do Cláudio Torres, por vezes precisavam de um empurrãozinho para se desbloquear. Apesar disso, acabei por optar por ficar em Évora e assistir ao lançamento do livro do Vitor Serrão. Afinal, somos colegas de curso  na Faculdade de Letras de Lisboa (1970-75) colegas de estudo desde o primeiro ano (graças à biblioteca do pai Joaquim Veríssimo Serrão)  mas também  companheiros de alguma pândega estudantil e, finalmente, ambos parte da tal geração do Tejo, que apesar dos caminhos diferenciados que cada um seguiu, se forjou no trabalho de campo da descoberta e registo da arte rupestre do Ródão. Uma outra razão me fez optar pela obra do Vítor. Afinal, trata de uma figura (D.Teotónio de Bragança) que na esteira de André de Resende e antecipando-se a Frei Manuel do Cenáculo, terá tido um papel importante e até hoje quase ignorado, na construção de uma "pré-arqueologia" alentejana, um tema que pelas mais variadas razões me interessa. Jà conhecia um dos capítulos que o Vítor tivera a amabilidade de me enviar e, desde essa altura que aguardava a oportunidade de o ler na totalidade. Certamente daí virão algumas deixas para novas entradas neste "blog" que, por muitos e variados afazeres, tem estado algo parado nos últimos dias.


A apresentação do livro de Vítor Serrão no Museu de Évora. A edição contou com o apoio da Fundação da Casa de Bragança, o que explica a presença e intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa, na qualidade de presidente da dita Fundação. Na mesa para além do Director do Museu e do autor, a Directora Regional de Cultura do Alentejo e Miguel Soromenho que fez a apresentação da obra.
O convite para a sessão no MNA
Em Évora (4 de Junho) no Convento dos Remédios, intervenção de Cláudio Torres por ocasião da apresentação pública do livro "Cerâmica Islâmica de Mértola", da autoria de Susana Gomez, também na foto.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Cota 152

Primeiro foi um amigo dos tempos da Amadora, o Vasco Pegado, a avisar-me via Facebook de que a RTP Memória iria passar um documentário em que eu aparecia...Depois foi um colega no serviço. Depois alguém do Coro... Afinal a RTP Memória tem audiências (pelo menos 3)! Tratava-se afinal da reportagem "Cota 152" sobre o Alqueva, da autoria de Anabela Saint-Maurice,  para o programa de boa memória na RTP, "O Lugar da História", que era produzido pela minha antiga colega de Faculdade, a jornalista Maria Júlia Fernandes. O título, hoje soa estranho, mas fazia algum sentido na altura da produção, o ano 2000, pois os ecologistas tendo desistido de lutar contra a "Barragem" já quase concluída nessa data (seria inaugurada 2 anos depois), propunham então uma cota de enchimento abaixo da original, prevista desde os anos 50, a tal Cota 152 que acabou por ser atingida, poucos anos depois do fecho das comportas. A reportagem  acabou de passar (noite de 3 de Junho de 2015) e foi com um misto de nostalgia e algum orgulho (confesso) que a revi, década e meia depois. Destaco antes de mais o excelente trabalho jornalístico da Anabela, correspondente da RTP em Évora durante os anos 90, muito equilibrado sem ser totalmente asséptico, sobretudo tendo em conta o contexto demagógico da generalidade das posições então assumidas quer a favor, quer contra a Barragem. Gostei de rever (e até me emocionei), graças à belíssima fotografia de Helder Oliveira, o velho Guadiana e as suas paisagens agrestes, hoje desaparecidas, aquele que foi o meu cenário de trabalho quotidiano durante 6 intensos anos (1996-2002). Para quem se interesse pelo tema e tenha acesso às gravações hoje disponibilizadas pelas operadoras de televisão, vale a pena ver ou rever. Para muitos será certamente uma boa surpresa.
O Paulo Marques na escavação da Barca do Xerez





Escavação do Xerez 12

A autora da reportagem, Anabela Saint-Maurice, o arqueólogo Victor Gonçalves e a invnção do "borrego à alentejana"


A produção não se poupou e as imagens de helicóptero são espectaculares

Fernando Branco na Rocha da Gramacha
O Carlos Tavares da Silva no Porto das Carretas
Materiais do Castelo da Lousa
Manuel Calado no Espinhaço de Câo
O povoado da Idade do Ferro, Espinhaço de Cão, visto do ar
O meu escritório, em Mourão

A Sandra Brazuna no Monte Branco







Materiais arqueológicos do Castelo da Lousa

terça-feira, 2 de junho de 2015


Almendres- Solstício 2015





Ontem dia 1 de Junho começou a ser divulgado na NET o cartaz-programa da 4ª festa do “Solstício Megalítico de Guadalupe”, que este ano acontecerá no domingo dia 21 de Junho (o momento exacto do início do Verão será às 16,38 h). Será pois oportuno recordar as circunstancias que rodeiam esta (quase) tradição local. É verdade que há muito tempo que os Almendres vinham a chamar a atenção de grupos alternativos de variadas inspirações (new age, esotéricos, neoceltas, etc…), sendo normalmente citado na “literatura especializada” nacional de lugares "misteriosos"ou servindo mesmo de palco para “cerimónias rituais” dos mais variados tipos e géneros. Pessoalmente como arqueólogo e residente, nunca me incomodaram tais manifestações desde que estas respeitassem fisicamente o monumento, o lugar e a sua envolvente, o que infelizmente nem sempre acontece. As fogueiras, eventualmente provocadas em contextos menos “espiritualistas”, são apenas um dos aspectos negativos mais evidentes ainda que não necessariamente associado às ditas manifestações. Recordo em especial, uma noite de “rave”, obviamente clandestina, organizada por alternativos “hippies” há quase duas décadas (julgo que após expulsão da cidade de Évora) com música em altos decibéis que ecoou pelo vale durante quase toda a noite…

Finalmente quando no Natal de 2011, após longos meses de “conversações” com a família actualmente proprietária dos Almendres, se conseguiu autorização para a instalação de um parque de estacionamento, a uma distancia conveniente do monumento, pareceu-me que estavam reunidas algumas condições para usar o fantástico sítio dos Almendres,  como cenário ideal para eventuais manifestações artístico-culturais que ajudassem a população local a envolver-se mais na salvaguarda e valorização do monumento. Naturalmente,tais manifestações ainda que de âmbito mais laico, poderiam integrar eventualmente essa já forte tradição de relacionamento do local com o calendário cósmico, que como já aqui referimos em anterior post a propósito do último equinócio, tem algumas raízes factuais em estudos já bem antigos do Professor Marciano da Silva.
http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/03/almendres-o-sol-falhou-o-equinocio-hoje.html.

Em 2012, uma vez criado o parque (provisório) de estacionamento, e realizado  pela eco-brigada municipal, um significativo esforço de recuperação do solo do Cromeleque, muito degradado pelo pisoteio turístico e pela erosão pluvial, a população de Guadalupe, enquadrada pela Associação de Idosos e pela Junta de Freguseia, decidiu lançar mãos ao projecto de, em torno do monumento, construir uma tradição de festa, associada ao Solstício de Verão. É verdade que a data não é a mais original nem mais adequada no contexto regional, já que a tradição das festas joaninas com grande expressão em Évora (feira de São João), não são mais do que a continuação cristã de um antiquíssimo costume que tem a sua origem registada em época romana mas que certamente remontará a períodos bem mais antigos… Mas, se qualquer dos equinócios poderia servir (há quem defenda que essa seria a orientação estrutural do Cromeleque), já o ambiente climatérico poderia não ser tão agradável. De qualquer modo em 2012 fizémos a 1ª festa, um tanto ou quanto ambiciosa, repartida entre o Cromeleque e a aldeia, entre a despedida ao Sol poente na véspera do Solstício, e a saudação ao Sol nascente na madrugada seguinte. Os passeios pedestres, dando a conhecer a locais e forasteiros a paisagem envolvente, têm sido recorrentes,  tal como alguma pedagogia ambiental e patrimonial, concretizada com a participação de colegas arqueólogos e biólogos em ateliers de temáticas diversas. Finalmente em 2014, a própria autarquia produziu no local o primeiro espectáculo erudito. Pelas imagens anexas e quando preparamos a 4ª festa do solstício por várias razões bem menos ambiciosa), relembramos o essencial da experiência passada. Julgo que o desejado envolvimento da população de Guadalupe está longe de atingir o nível que procurávamos há quatro anos mas uma coisa é certa já. A nenhum dos nossos vizinhos é agora indiferente o interesse forasteiro que sentem em torno de um sítio, as Pedras Talhas, que há muito conheciam mas que pouco ou nada valorizavam. Falta talvez apenas um pequeno passo para que finalmente o assumam como uma herança colectiva, recebida dos pais e avós, a qual devem legar aos seus filhos e netos, se possível, enriquecida com o seu próprio contributo. A isso se chama "património".








segunda-feira, 1 de junho de 2015


Ainda os "Coches e a Arqueologia"


Como era de esperar, a polémica em torno do novo Museu dos Coches, está para durar, e provavelmente irá renascer sempre que estiver em cima da mesa a discussão dos magros Orçamentos para a Cultura... E entretanto, falando com um amigo que trabalha no Museu do Côa, vim a saber que em Maio (agora já Junho), o Museu e a Fundação que inventaram para o gerir (?), continuava sem orçamento para 2015 e que os salários dos poucos trabalhadores que asseguram o seu funcionamento estão sempre atrasados e em risco. Mas Foz Côa é bem longe da Ajuda-Belém...

Já depois do lapidar artigo da Raquel Henriques da Silva:

www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-rei-nu-na-cultura-em-portugal-e-uma-proposta-para-fazer-diferente-1696375

coube agora a Luis Raposo, com a ironia certeira que caracterizam as suas intervenções cívicas, de se pronunciar:

www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/coches-corporacoes-e-ma-politica-1697279?frm=opi

Aproveitando o balanço, aqui deixo mais em jeito de registo, um texto que escrevi em 2009 e que se intitulava

SALVEMOS OS ARQUIVOS DA ARQUEOLOGIA PORTUGUESA





Ainda que com risco de ser acusado de falta de isenção, dada a minha formação e interesse profissional, não tenho dúvidas em afirmar que é no domínio do património arqueológico que se podem identificar os maiores prejuízos, se não mesmo os mais graves retrocessos, associados à recente e desastrada reestruturação do Ministério da Cultura (ver a recente tomada de posição do ICOMOS Portugal, divulgada pelo “Público” em 24 de Abril passado). Entre os efeitos perversos, o mais óbvio é desde logo a extinção do Instituto Português de Arqueologia (IPA), uma estrutura recente, criada em 1997 pelo Governo Guterres na sequência da polémica em torno da Arte Rupestre do Côa. Ainda que partilhando tal sorte com o também extinto IPPAR, o que de facto é marcante no processo de extinção/fusão daquele jovem serviço público de Arqueologia no novo “IGESPAR”, é a drástica redução a simples “Divisão”, apelidada de “Arqueologia Preventiva e de Acompanhamento”, da componente de intervenção territorial, que marcara a diferença com o passado. Infelizmente, os cortes não se reduziriam apenas às componentes estruturais, até porque estas estavam longe de ver preenchidos os respectivos quadros. Num processo herdado de anteriores governos e que se arrastava há longos meses, o IPA vinha a sofrer um processo de emagrecimento técnico forçado, pondo em causa a sua eficiência. No final do ano passado, como foi então largamente noticiado, apenas o receio do vazio absoluto, terá evitado (ou adiado) o golpe final na capacidade técnico-arqueológica do novo IGESPAR, com o impedimento “in extremis” do despedimento de duas dúzias de arqueólogos “avençados”. Com efeito, após uma década de precariedade, são ainda os “avençados” que continuam, quase em exclusivo, a assegurar de Norte a Sul, as funções e responsabilidades técnicas cometidas nesta matéria ao Estado pela legislação nacional ou mesmo, pelas convenções internacionais. Esses princípios, hoje comuns a todos os Estados modernos, obrigam os projectos que interferem de forma significativa com o subsolo urbano ou rural a ser acompanhados das medidas preventivas capazes de precaverem ou minimizarem a perda ou a destruição de vestígios materiais do passado, seja através dos Estudos de Impacte Ambiental, seja através dos mecanismos de gestão e planeamento territorial, aos seus diferentes níveis de execução. Tais princípios, associados à eficácia que o IPA demonstrara perante as solicitações e desafios da sociedade, complementada por alguma capacidade reguladora e fiscalizadora, viriam a estar na origem de um crescimento quase explosivo da actividade arqueológica de iniciativa privada, respondendo às novas exigências legais rapidamente integradas pela própria estrutura económica.


Um ano após a extinção do IPA, como era previsível, são cada vez mais evidentes as dificuldades da esforçada “Divisão de Arqueologia Preventiva e de Acompanhamento” do IGESPAR, em manter os mesmos níveis de eficiência. A perda de meios humanos qualificados, a inesperada complicação dos circuitos burocráticos e administrativos (o IGESPAR continua repartido por diferentes instalações) ou mesmo a incompatibilidade dos sistemas informáticos, reflectem-se no alargamento dos prazos de resposta, ou mais grave ainda, na incapacidade de regulação e fiscalização, o que, numa actividade hoje muito dependente do mercado, se está a revelar particularmente grave (como vêm alertando os próprios operadores privados). Infelizmente, novas e inesperadas ameaças se perfilam no horizonte, algumas das quais de efeitos irrecuperáveis, se concretizadas. Em 1997 o IPA instalou os seus serviços nos devolutos edifícios militares, vizinhos do Palácio de Belém e do Museu dos Coches. Ainda que muito degradadas, tais instalações acabaram por responder às significativas necessidades de espaço do novo Instituto, confrontado com a necessidade de armazenar numerosos materiais arqueológicos e acomodar laboratórios ou mesmo equipamentos pesados, nomeadamente da Arqueologia Subaquática. Entre os meios e recursos herdados pelo IPA e instalados em Belém após execução de obras de adaptação, ganharam especial importância, no contexto das suas atribuições territoriais, a valiosa Biblioteca (antiga Biblioteca da delegação de Lisboa do Instituto Arqueológico Alemão) e o Arquivo da Arqueologia Portuguesa. Se a biblioteca é considerada a melhor e mais completa biblioteca arqueológica do país, o Arquivo é único, porque conserva desde que há registos até hoje, toda a documentação produzida pelos arqueólogos sobre os sítios e monumentos arqueológicos intervencionados, muitos dos quais já nem sequer existem. É certo que, existem lacunas importantes, até porque parte da documentação mais antiga, proveniente dos arquivos do antigo Ministério da Educação Nacional, se terá perdido. Sucessivas reestruturações também se terão traduzido no extravio de alguns processos, mas o essencial foi preservado e o Arquivo, em permanente actualização e articulação com o Sistema Informático “Endovélico”, tem-se revelado um instrumento de trabalho essencial não apenas para os arqueólogos dos serviços, mas em particular para os arqueólogos das empresas responsáveis pelos estudos e avaliações de impacto. A real ameaça de despejo a curto prazo que pesa sobre os serviços de Arqueologia em geral, mas em particular sobre o Arquivo e a Biblioteca, sem que se anunciem ou vislumbrem alternativas credíveis para a sua reinstalação, pode representar a machadada final na herança extremamente positiva do IPA, com consequências graves para a salvaguarda do património e, mesmo para a actividade económica de dezenas de empresas e centenas de profissionais do sector. Mesmo evitando entrar na discussão do polémico projecto onde vão ser investidos “os milhões” do Casino de Lisboa - um “novo Museu dos Coches” anunciado precisamente para o local onde durante a última década funcionou o IPA- haverá que exigir do Ministério da Cultura, a garantia da integridade e da operacionalidade de um fundo documental único que encaixotado, disperso ou simplesmente inacessível, estará condenado a desaparecer, o que a acontecer, seria um verdadeiro crime de “lesa património”.