segunda-feira, 23 de janeiro de 2017


Do Carmo à Austrália, memórias "fotogramétricas"...



 



Há bastante tempo que não tinha oportunidade de participar nas actividades da Associação dos Arqueólogos Portugueses (passou recentemente o seu 153º aniversário) a veneranda agremiação de que sou membro há várias décadas, pelo que foi com muita satisfação que na passada 5ª feira (19 de Janeiro) assisti a uma conferência na sua belíssima sede nas ruínas do Carmo. Mais do que o tema, neste caso pesou a oportunidade de reencontro com o orador, Francisco Almeida, um amigo e colega arqueólogo com quem tive o prazer de trabalhar no projecto Alqueva ver aqui e que "imigrou" há seis anos para a Austrália, onde actualmente exerce a sua "profissão" no estado de Vitória.


Ainda que o assunto da sua intervenção seja bastante actual (vantagens para o registo arqueológico do uso das novas ferramentas informáticas que permitem transformar uma simples máquina fotográfica ou até um telemóvel, num "digitalizador 3D") julgo que o que terá cativado o razoável número de colegas que acorreu ao auditório do Carmo, terá sido o seu interessantíssimo testemunho sobre a singularidade da sua presente actividade arqueológica, sobretudo quando observada a partir da nossa muito limitada experiência ocidental e europocentrista. Como Francisco Almeida reconheceu, no trabalho de campo que executa no âmbito do registo e inventário dos vestígios materiais culturais das várias "nações aborígenes", sempre em articulação e com a indispensável colaboração dos representantes locais das próprias comunidades, as principais interessadas no seu trabalho, aprendeu mais sobre Arqueologia (ou seja sobre as relações e transformações das comunidades humanas no respectivo contexto territorial) do que em anos e anos de Faculdade e de prática arqueológica tradicional (e que no seu caso incluem até um Doutoramento nos EUA). Afinal, como está a nossa Arqueologia longe da comunidade a quem deveria servir antes de mais, seja ela feita em contexto empresarial (para "libertar" projectos e obras de entraves meramente formais....) ou académico (para justificar carreiras pessoais). Depois não compreendemos quão difícil é passar a mensagem "patrimonial" ao povo...

O Francisco Almeida, proferindo a sua conferencia no auditório da AAP, nas ruínas do Carmo.


Regressando ao tema propriamente dito da conferencia, "a nova fotogrametria digital", de destacar neste caso, o seu uso no inventário e registo expedito de estruturas localizadas em áreas remotas ou pouco acessíveis, permitindo de forma simples, prática e extremamente económica (basta uma câmara digital normal e o software adequado) obter, actualizar e comparar dados gráficos numa perspectiva de reconhecimento científico e de salvaguarda futura. Nada que não esteja, felizmente, já ao alcance da nossa arqueologia, sendo notória nos últimos tempos a sua aplicação entre nós aos mais variados domínios, sobretudo no campo da divulgação. Cito aqui em particular o caso que acompanho mais de perto, o projecto MORBASE (http://montemorbase.com ), dinamizado por jovens arqueólogos de Montemor-o-Novo, e com quem já tive a oportunidade de colaborar.

Levantamento 3D da Anta Grande da Comenda da Igreja (Montemor-o-Novo)


Naturalmente, a chamada de atenção para estas novas ferramentas tecnológicas, em plenas ruínas do Carmo e na semana em que desaparecera o Arquitecto Carlos Antero Ferreira (1932-2017), antigo presidente do IPPC (1990-1992) e um dos primeiros divulgadores da "fotogrametria"  (analógica, diriamos hoje) em Portugal, não deixou de ser motivo para algumas memórias pessoais neste domínio.
Artigo de Carlos Antero Ferreira de 1985, separata do nº4 da Revista do Instituto Geográfico e Cadastral

A primeira vez que tive oportunidade de ter uma noção do interesse e vantagens da aplicação da fotogrametria, uma metodologia quase tão antiga como a própria fotografia (na Alemanha foi fundado em 1885 um instituto estatal para a obtenção de registos fotogramétricos dos principais edifícios históricos), teve a ver com uma visita às escavações pré-históricas então em curso em Etiolles (Île-de-France), no verão de 1973. Dirigia as escavações daquele importante sítio Magdalenense, o arqueólogo Michel Brézillon, assistente de Leroi-Gourhan que conduzia na mesma altura as escavações de Pincevent, em que eu participava como estudante com outros colegas portugueses aqui. Dada a complexidade e quantidade de materiais de silex encontrados no solo de habitat paleolítico, o desenho dos sucessivos planos tornava-se particularmente moroso e complexo, pelo que se recorreu então à estéreo-fotogrametria, para o respectivo "registo gráfico". De referir que, apesar da complexidade dos equipamentos (as máquinas fotográficas eram especiais para o efeito) e das exigências metodológicas (os fotogramas eram obtidos a partir de pontos previamente cotados, de modo a articular entre si os múltiplos pares estereoscópicos), o trabalho de campo por comparação com os métodos tradicionais (desenho à escala, puro e simples, ou desenho sobre fotografia de cada plano, como era prática em Pincevent) era bastante mais rápido e eficaz. O problema residia, a posteriori, na chamada "restituição", ou seja, na passagem a desenho dos planos fotografados. Para além da grande complexidade dos equipamentos necessários ("ploters" especiais), o trabalho de restituição era uma actividade muito especializada e morosa, tornando a fotogrametria muito cara. No caso de Etiolles, embora mais tarde tenha tido oportunidade de ver publicados alguns planos assim obtidos, julgo que se ensaiava o método na perspectiva da sua futura aplicação a situações de "salvamento", em que a prioridade fosse a urgência da recolha dos fotogramas, ficando para um momento posterior, a sua "restituição". Aliás, foi aquela vantagem que levaria à aplicação sistemática da fotogrametria aos trabalhos da UNESCO de desmonte e reconstrução dos grandes templos egípcios ameaçados pela Barragem de Assuão, nomeadamente Abou-Simbel, nos anos 60 do século passado.


Mais tarde, já em contexto profissional, cruzar-me-ia outra vez com a "fotogrametria". No início dos anos 80, colocado no Departamento de Arqueologia do IPPC, tive conhecimento de um "mítico caixote" do Dr. Nunes de Oliveira que continha um equipamento fotográfico por ele adquirido para os "inventários" (ainda no âmbito da extinta Direcção Geral do Património Cultural, actualmente "reactivada", depois de ter sido IPPC, IPPAR, IPA, IGESPAR....) e que nunca fora utilizado. Investigado o assunto, verificámos que se tratava de um conjunto WILD C 120, um par de câmaras fotogramétricas 6x6, que se montavam sobre um braço horizontal apoiado num tripé... Apesar de algumas dificuldades e reticências (a desculpa para o seu não uso residia no facto de não se ter adquirido ainda o equipamento de restituição que custaria 10 vezes mais...) consegui requisitar o "caixote" e pô-lo à disposição do António Ventura, então responsável pela fotografia no Departamento (hoje professor de fotografia no Instituto Superior de Tomar). Com a meticulosidade que lhe é própria, o António Ventura estudou o equipamento e conseguiu mesmo algumas chapas fotográficas (em vidro, por razões técnicas, nomeadamente para evitarem as distorções provocadas pelo filme normal...) com que realizou alguns fotogramas experimentais que, no entanto, nunca terão sido "restituídos" pois seria necessário recorrer a trabalho externo, fora das capacidades orçamentais do Departamento. Percebemos então que a "fotogrametria" em Portugal, era então apenas usada por um par de empresas especializadas  (ESTEREOFOTO, ARTOP,...) e direcionada quase em exclusivo para os levantamentos topográficos e cartográficos. As imagens aéreas eram encomendadas e adquiridas à força aérea e a restituição era feita nas caríssimas "ploters" que apenas aquelas empresas possuíam. Ainda recordo ter visto uma a funcionar (ocupando toda uma sala) na sede da ESTEREOFOTO, ali para os lados da Estrada de Benfica. Quanto ao WILD C 120 do IPPC, percebemos, graças aos prospectos da empresa alemã, que se tratava de um equipamento "portátil", especialmente concebido para a polícia das auto-estradas alemãs. Montado sobre uma carrinha Volkswagen, permitiria a rápida recolha dos fotogramas de um qualquer acidente, facilitando a pronta remoção das viaturas... A restituição seria feita posteriormente em caso de necessidade.


Em cima, esquema do funcionamento do "Wild c-120". Em baixo, um modelo de "restituidor" dos anos 70.


Apesar da pouca tradição do uso destas tecnologias analógicas em Portugal no que respeita ao património, nos anos 80 fruto de alguma colaboração com a ESTEREOFOTO (a cuja fundação esteve ligado o Arquitecto Antero Ferreira), foram realizadas vários levantamentos, a título experimental, na perspectiva da salvaguarda do património cultural. Concretamente e no que respeita à Arqueologia, esta técnica seria experimentada na Anta Grande do Zambujeiro (Évora) por iniciativa dos serviços do IPPC (fornecendo-nos hoje elementos de referência importantes para aferir o grau de degradação das últimas três décadas) e no templo romano de Évora, neste caso no âmbito do projecto de investigação do DAI (Instituto Arqueológico Alemão) liderado por Thjeodor Hauschild ver aqui e cuja publicação, finalmente, se anuncia para breve.

Alçado longitudinal da Anta Grande do Zambujeiro (Èvora). Levantamento ESTEREOFOTO para o SRAZS.




















3 comentários:

  1. Obrigada António Carlos por todos os teus testemunhos, fundamentais para a memória da Arqueologia.

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  2. Respostas
    1. Muito brigado pelo contributo. Entretanto já corrigi o texto.

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