quinta-feira, 19 de maio de 2016

ABEL VIANA- PAIXÃO PELA ARQUEOLOGIA




Há cerca de ano e meio dei nota neste Blog (ver aqui) da minha participação num interessante colóquio promovido pela Fundação da Casa de Bragança em memória de Abel Viana, ilustre arqueólogo, minhoto de nascimento e alentejano de adopção, fundador do Museu de Arqueologia que aquela instituição gere no Castelo de Vila Viçosa. Essa sessão fechava um conjunto de iniciativas, com destaque para uma exposição intitulada "Abel Viana, 1886-1964", comemorativas da passagem do cinquentenário da morte do referido arqueólogo. Ontem, em boa hora, foi apresentado publicamente no Museu Nacional de Arqueologia um pequeno livro que regista para a posteridade algumas das comunicações então apresentadas.  Apesar da sua frenética agenda, aceitou estar presente o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, julgo que por três razões. Antes de mais porque como é público, tem um especial interesse por tudo o que é livro. Depois porque afinal é vizinho do MNA (revelou na sua intervenção que em Fevereiro, no primeiro domingo que passou no Palácio de Belém, não resistiu e veio visitar "incógnito" (?) a exposição "Lusitânia, A origem de dois povos"). Finalmente, porque ainda na qualidade de Presidente do Conselho Administrativo da Fundação da Casa de Bragança, assinou em 1 de Janeiro último, o prefácio a este livro.




O Presidente da República na sua intervenção



Por amável convite do António Carvalho, actual director do MNA, intervi de improviso na sessão, em representação dos meus colegas autores que, por motivos vários, não puderam comparecer ao acto. Como membro de uma geração que teve, graças ao 25 de Abril, a oportunidade, de conquistar o reconhecimento profissional para a Arqueologia, coube-me realçar por um lado o papel percursor de Abel Viana que com grandes sacrifícios pessoais e familiares dedicaria a esta paixão, quase em exclusivo, as suas duas últimas décadas de vida. Por outro, representando a Direção Regional de Cultura, referir aqueles que considero terem sido os grandes contributos de Abel Viana para a arqueologia alentejana, de que é verdadeiramente, um dos "pais fundadores" como refiro no texto que publico neste livro e que aqui reproduzo também.


ADENDA FOTOGRÁFICA (29 Novembro 2016)

Algures entre 1994 e 95, no âmbito de trabalhos no "circuito da Cola", tive oportunidade de experienciar as vivências de Abel Viana no Castro da Cola, ao pernoitar algumas noites na Casa dos Romeiros do Santuário de Nª Sª da Cola. Estas frugais instalações serviram de residência daquele arqueólogo nas campanhas que ali conduziu nos últimos anos de vida (1958-1964). 





O legado de Abel Viana para a Arqueologia do Alentejo


Não sendo propriamente um historiógrafo da Arqueologia portuguesa e muito menos um estudioso da obra de Abel Viana, o honroso convite da Fundação da Casa de Bragança para participar no evento em boa hora organizado para homenagear este “apaixonado pela arqueologia”, parafraseando o assertivo título da exposição patente no Museu - Biblioteca de Vila Viçosa, só pode ter a ver com as responsabilidades de direção de serviços e de projetos arqueológicos que assumi ao longo da minha vida profissional no Alentejo. Com efeito, apesar da obra legada por Abel Viana transcender largamente as fronteiras do Alentejo, terra que abraçou para viver já em fase madura da sua existência, foi aqui, em particular nos campos de Ourique, que levou essa paixão aos extremos da entrega e do sacrifício pessoal. E a tal ponto chegou essa comunhão com a terra de acolhimento que é frequente um certo espanto, mesmo entre pessoas normalmente bem informadas, quando descobrem que afinal Abel Gonçalves Martins Viana, era mesmo natural de Viana do Castelo e viveu no Minho até à idade madura. Não se esperem, pois deste meu pequeno contributo, revelações inéditas ou factos menos conhecidos sobre Abel Viana e a Arqueologia do Alentejo, até porque nesse campo, outros intervenientes o farão, certamente com maior propriedade. Nesta intervenção, recorrendo sobretudo à experiencia pessoal, procurarei dar testemunho do que considero ser o enorme contributo de Abel Viana para o conhecimento, salvaguarda e divulgação da Arqueologia do Alentejo, ainda hoje, meio século após o seu desaparecimento, um legado fundamental, apesar dos enormes progressos a que assistimos nos últimos anos.
Estou radicado no Alentejo há quase três décadas, mas o meu primeiro contacto com a obra de Abel Viana é anterior, remontando aos tempos de aluno da Faculdade de Letras de Lisboa. Com efeito, na Páscoa de 1975, por sugestão do então assistente José Morais Arnaud que regia uma nova cadeira de “Práticas Arqueológicas” a que assistiam alunos de diferentes anos, tive oportunidade de participar numa expedição de reconhecimento arqueológico dos terraços quaternários do Guadiana. Conjugavam-se nesta iniciativa, para além do interesse académico imediato, o anúncio do eminente arranque das obras do Alqueva e a ligação dos participantes ao Grupo de Estudos do Paleolítico Português (GEPP). O interesse arqueológico pelo vale do Guadiana surgia então como alternativa adicional ao Vale do Tejo, onde na região do Ródão, vários dos elementos do GEPP tinham tido o seu batismo de campo e desenvolviam já projetos com objetivos semelhantes. Os terraços quaternários do Guadiana apresentavam ainda um interesse adicional, pelo facto de não serem temática arqueológica inédita. Com efeito, Abel Viana acompanhara nos anos 40, pouco tempo depois da sua mudança para Beja, os trabalhos pioneiros de reconhecimento geológico aí desenvolvidos por Mariano Feio, procedendo a numerosas recolhas de materiais líticos que em função da tipologia e do contexto atribuiu a diversos momentos do Paleolítico. Para Abel Viana, tratava-se do regresso a uma temática que abordara ainda no Minho natal, nos primórdios do nascimento do seu interesse pela Arqueologia. Dos trabalhos realizados no Guadiana, Abel Viana publicaria variadas notícias, identificando e localizando os sítios onde procedera às recolhas de materiais líticos, descrevendo-os de forma sumária, mas adiando sempre uma análise mais conclusiva no que respeitava à sua atribuição cronológica, para futura colaboração com Georg Zbyzewski que considerava o seu mestre neste domínio. Este geólogo e arqueólogo, sobretudo no âmbito de trabalhos similares desenvolvidos com Henri Breuil nos terraços quaternários do Tejo e do litoral português, aperfeiçoara um método de seriação cronológico-cultural dos materiais líticos recolhidos em associação com os diferentes níveis de terraços, baseado no respetivo grau de patine. Curiosamente, Abel Viana, ainda que muito interessado na temática, tinha consciência das suas próprias limitações e manifesta em particular na sua correspondência com Veiga Ferreira, colaborador próximo de Zbyzewski, mesmo em épocas muito posteriores, a enorme vontade de retomar com a ajuda daquele, o estudo destes materiais. A dispersão por outros assuntos e sobretudo o intenso envolvimento de Abel Viana nos seus últimos anos de vida, nos projetos do Castro da Cola e da Atalaia, afastaram-no definitivamente deste tema que tinha marcado o seu primeiro contacto com a arqueologia de campo. Ainda assim, as indicações que nos deixou sobre as indústrias líticas do vale do Guadiana, foram guia indispensável para os trabalhos dessa expedição de 1975, a qual marcaria o retomar de pesquisas que, sempre articuladas ou condicionadas pela ameaça de futura inundação, aí viriam a ser realizadas ao longo do último quartel do Século passado. Em 1979, a montante da velha ponte de Mourão, próximo de local que já Abel Viana referenciara, tive oportunidade com Luis Raposo de proceder a trabalhos num dos sítios observados na expedição de 1975. A recolha de uma indústria lítica, pouco ou nada patinada e com características formais que apontavam para a possibilidade de uma ocupação in situ do Paleolítico Médio, determinou a realização de recolhas sistemáticas de superfície e algumas sondagens cujos resultados negativos no que respeitava à cronologia prevista, nos permitiram então questionar as abordagens tradicionais, meramente formais, deste tipo de sítios e que tinham informado a generalidade dos trabalhos neste campo, incluindo também os de Abel Viana. Mais tarde tive oportunidade de sistematizar toda a informação disponível sobre esta temática do Guadiana (o contexto e a cronologia das indústrias ditas “macrolíticas” ou “languedocenses”) num trabalho presente ao I Encontro de Arqueologia do SW (1993), e no qual a obra de Abel Viana seria um elemento informativo essencial. No entanto, a principal motivação na retaguarda destes trabalhos, passava ainda pela anunciada mas sempre adiada construção da Barragem do Alqueva. Então, para além da informação de base devida a Abel Viana, já se haviam acrescentado os resultados de novas prospeções, com destaque para as realizadas por Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares no início dos anos 80, no âmbito do primeiro estudo de impacto ambiental realizado no contexto do Alqueva. Finalmente, com a retoma definitiva das obras do Alqueva em 1996, foi possível no âmbito do Plano de Trabalhos Arqueológicos então lançado, providenciar a concretização de um grande projeto sobre estas temáticas, envolvendo prospeções, sondagens e escavações (1997-2002), ao longo das margens do Guadiana, em particular a montante do Ardila, demonstrando a existência de uma forte presença epipaleolítica, bem caracterizada a partir das escavações realizadas no sítio “Barca do Xerez, mas confirmando também a existência de vestígios “in situ” de períodos anteriores, do Paleolítico Médio e Superior, a cuja pesquisa ficarão sempre ligados os trabalhos pioneiros de Abel Viana.
Este particular fascínio de Abel Viana pelas indústrias líticas, como já referimos, está diretamente associado ao nascimento da sua vocação arqueológica surgida ainda na terra natal. Abel Viana nasceu em Viana do Castelo em 16 de Fevereiro de 1896, de mãe brasileira, circunstância que lhe terá proporcionado uma precoce estadia no Brasil, onde entre os seus 14 e 17 anos (1910-1913) trabalhou no comércio de um tio. Esta experiência brasileira, como ele próprio reconheceu, terá contribuído para a formação de um espírito aberto, atento às realidades multifacetadas da vida e pouco dado a paroquialismos locais, explicando também a amplitude temática e geográfica de interesses que revela ao longo de toda a sua vida. Após o regresso do Brasil, seguiu o liceu e a escola normal, tornando-se professor primário. Pela mesma época, frequentou também o curso de oficial náutico. Mesmo nunca tendo exercido esta profissão, ter-lhe-á ficado da experiência o interesse pelas ciências naturais e pela tecnologia, que se viria a manifestar por um sentido prático e uma eficácia no campo, pouco comum entre os arqueólogos portugueses da sua geração. Entre 1918 e 1933, exerceu a profissão de mestre-escola um pouco por todo o Alto Minho, o que lhe proporcionou grande proximidade à terra e às gentes, orientando a sua enorme curiosidade para a riqueza do folclore minhoto. Está ligado desde 1919 às primeiras exibições folclóricas associadas às Festas da Senhora da Agonia e em 1920 organiza no Carreço o primeiro grupo folclórico do Minho. Terá sido, neste contexto de grande ligação à cultura minhota, que terá acompanhado as notícias das escavações em curso no castro vizinho de Santa Tecla, junto a La Guardia, na margem galega da foz do Minho, revelando uma realidade semelhante à que já conheceria da Citânia de Santa Luzia em Viana do Castelo. Uma outra circunstância merece aqui alguma referência, ainda que a título de curiosidade, já que não há notícia de qualquer contacto, à época entre ambos. Referimo-nos à presença ocasional em La Guardia, entre 1919 e 1928, do jovem Padre Eugénio Jalhay, como professor do colégio português aí fundado pelos jesuítas, em resposta às dificuldades sentidas com os governos da I República. Já interessado pela Arqueologia desde a sua estadia como noviço no colégio do Barro, Torres Vedras, onde colaborara em escavações de Felix Alves Pereira num tholos pré-histórico, a Jalhay se deve em 1924 a identificação dos primeiros picos “asturienses” nas praias de La Guardia, na sequência da grande divulgação dos trabalhos do Conde de La Vega del Sella. O estímulo de Jalhay deverá ter contribuído para descobertas de materiais semelhantes, ao longo de todo o litoral minhoto feitas de forma independente por Rui de Serpa Pinto, Abel Viana e posteriormente Afonso do Paço. No caso de Abel Viana, estas recolhas constituíram um verdadeiro batismo arqueológico, que iria estar presente ao longo da sua longa carreira, com especial destaque para as suas futuras pesquisas alentejanas nos terraços do Guadiana e que, curiosamente, divulgaria preferencialmente nas páginas da Brotéria, a revista jesuíta a que Jalhay sempre esteve ligado. No entanto, antes de abandonar o Minho por razões profissionais, Abel Viana ainda teria oportunidade de abordar outras temáticas pré-históricas, demonstrando desde cedo um ecletismo de interesses que se traduzirá num precoce exercício de cartografia arqueológica minhota complementada por uma primeira experiencia museológica em Viana do Castelo. Identifica vestígios rupestres em Lanhelas e Carreço, estuda a Cividade de Âncora e a Citânia de Santa Luzia, aborda mesmo o megalitismo em exemplares do Carreço ou de Vila Praia de Âncora. Aliás, nunca se desvincularia totalmente do seu Minho natal, mantendo relações com os familiares mais próximos e voltando por vezes, e em circunstâncias várias, aos temas arqueológicos minhotos, chegando inclusive a dirigir um campo de trabalhos na Cividade de Âncora, já nos anos 60. Detivemo-nos nesta sua fase minhota de juventude, pois estamos em crer que ela acabou por ser determinante quer para a amplitude dos seus interesses temáticos quer para a sua atitude apaixonada e socialmente empenhada face à Arqueologia. De facto é ele próprio que reconhece, citado pelo sobrinho António Martins Costa Viana, que “os nove anos decorridos entre 1922 e 1931, em que residi nas freguesias de Seixas e Lanhelas, na margem do rio Minho, tendo em frente extenso panorama da Galiza, foram decisivos na deliberação por mim tomada, quanto a dedicar-me particularmente aos estudos arqueológicos”.

Entre 1933 e 1938, Abel Viana, já próximo dos 40 anos de idade, transfere-se para o Algarve onde irá exercer o magistério primário como inspetor e diretor escolar. Pelo que se depreende do seu próprio testemunho, por razões profissionais e pessoais, esse será um período de vida complexo em que não consegue dedicar-se tanto como gostaria, à Arqueologia. De qualquer modo, as funções que exerceu no Algarve, os trabalhos de investigação arqueológica que ainda assim conseguiu realizar, em particular na própria cidade de Faro, o relacionamento pessoal que estabeleceu com Mário Lyster Franco em Faro ou José Formosinho em Lagos, ou os contactos regulares que mantinha já com instituições nacionais, como o Museu Etnológico de Lisboa, preparavam o terreno para uma mudança radical de vida que, no entanto, apenas se concretizaria em Beja.
Após uma curta passagem por Setúbal, Abel Viana fixou-se definitivamente em Beja, a partir de 1939, assumindo as funções de Adjunto do Diretor Escolar. Aqui, no início dos anos quarenta, começa a consolidar e estruturar uma carreira que progressivamente lhe conferiria, como realçou recentemente João Cardoso, “um estatuto de primeiro arqueólogo profissional português, depois de Estácio da Veiga”. Durante algum tempo ainda prevalecem os laços que criara no Algarve, publicando ou retomando mesmo, algumas das investigações que ali iniciara, mas começa a cimentar raízes em Beja. Inicia uma colaboração regular com o Museu Regional, de que se intitula catalogador, que concretiza através do estudo e publicação dos respetivos acervos que ele próprio enriquece com novas recolhas. Colabora também com a Câmara como vogal da Comissão Municipal de Arte e Arqueologia, o que lhe permite acompanhar as principais obras na cidade e estar atento a importantes achados, aprofundando o conhecimento arqueológico da respetiva evolução urbana, tal como fizera em Faro e que nos permitem reconhecer Abel Viana, tal como destacou oportunamente José Manuel Silva Passos, como percursor da arqueologia urbana em Portugal. O interesse pelo Paleolítico do Guadiana, a que já aludimos, através da colaboração estabelecida com Mariano Feio, viria a ser um dos primeiros projetos de fôlego desenvolvido por Abel Viana a partir de Beja. Apesar da distância, não resiste ao apelo de José Formosinho, diretor do Museu de Lagos e associa-se no final dos anos 40 ao estudo das necrópoles megalíticas de Monchique identificadas por uma equipa dos Serviços Geológicos de Portugal no âmbito de uma missão de reconhecimento na região conduzida por Georges Zbyszewski, com a colaboração de Octávio da Veiga Ferreira. O envolvimento de Abel Viana nestes trabalhos acaba por contribuir para o estabelecer de relações de amizade com aqueles geólogos/arqueólogos, o que virá a ser determinante na carreira de Abel Viana, quer no âmbito estritamente científico, quer em particular no âmbito institucional. Poderemos afirmar que Abel Viana, pôde cimentar um percurso como arqueólogo, muito para além dos estreitos limites de Beja ou mesmo do Baixo Alentejo, não apenas pelas suas fortes características temperamentais, mas também pela teia de relações humanas que soube cultivar, em particular com os Serviços Geológicos de Portugal e com o Centro de Estudos de Etnologia Peninsular, estrutura da Universidade do Porto fundada e liderada por Mendes Correia. Aliás, seria através do apoio deste último que Abel Viana conseguiria o estatuto de bolseiro do Instituto de Alta Cultura que lhe permitiria, a partir de 1945 e praticamente até à sua morte em 1964, dedicar-se por inteiro e quase em exclusivo, à atividade arqueológica, situação muito rara à época.
É graças a esta exclusividade, conjugada com a cumplicidade com Octávio da Veiga Ferreira e Georges Zbyzewski, que Abel Viana se envolve em nova e decisiva frente de trabalho de campo na zona de Aljustrel, Ourique e Castro Verde em meados dos anos 50, região do Baixo Alentejo que estava a ser objeto de levantamento pelos Serviços Geológicos de Portugal. Reforçam nesta ocasião a equipa arqueológica, o Pároco da Messejana, Pe. António Serralheiro, e o Engenheiro Ruy Freire de Andrade, funcionário das Minas de Aljustrel. Ainda que o interesse arqueológico inicial desta equipa se concentre na escavação e estudo de um alargado conjunto de monumentos megalíticos inéditos, do tipo “tholos”, identificados no âmbito das prospeções geológicas, Abel Viana por influência de Ruy Freire de Andrade, acabará por alargar o seu interesse ao estudo dos abundantes vestígios da mineração antiga de Aljustrel. Apesar desta focagem no Baixo Alentejo que, como veremos, acabará por ganhar importância na fase final da sua carreira, Abel Viana manteve sempre em aberto outras opções, como resulta claro da correspondência que mantém com o amigo Octávio da Veiga Ferreira, recentemente divulgada por João Luis Cardoso, e onde amiúde enuncia intenções ou projetos, alguns dos quais bem fora das suas áreas de trabalho habituais. Por vezes concretizados, como no caso do megalitismo do Vouga, outras vezes nem tanto, como o estudo das Grutas de Tomar que se propunha realizar com Camarate França. É nesse contexto sempre aberto a novas frentes de pesquisa que se explica o seu envolvimento com a arqueologia da região de Elvas, para onde é atraído pelo diretor do Museu de Elvas, Domingos Lavadinho. Ao tomar conhecimento da importância dos espólios recolhidos de forma amadorística e durante anos a fio, por António Dias de Deus e António Luis Agostinho, em numerosas necrópoles do Alto Alentejo, Abel Viana irá assumir, sem reservas, uma atitude de salvaguarda patrimonial, invulgar para a época. Propõe-se orientar “in loco”, o estudo e a publicação dos materiais recolhidos e tomar as necessárias medidas para a sua integração museológica, atitude que em última análise estará na origem do Museu Arqueológico que a Fundação da Casa de Branca irá instituir, sob sua proposta e orientação, em Vila Viçosa. Apesar do evidente interesse público, antecipando no Alentejo aquele que deveria ser o modo de atuação das instituições patrimoniais apenas criadas muitas décadas depois, esta atitude acarretaria a interferência pouco amistosa de Manuel Heleno, o poderoso Diretor do Museu Etnológico. Valeu-lhe na ocasião, como se depreende da leitura da correspondência que troca a propósito com Veiga Ferreira, o apoio incondicional de Mendes Correia que lhe permitiu continuar a tarefa e levar a bom porto a recuperação possível de espólios e a informação acumulada mas não publicada e que de outro modo se perderia.
Terá sido no contexto dos já referidos trabalhos realizados no Baixo Alentejo com a equipa dos Serviços Geológicos que Abel Viana, através do Padre Serralheiro tomou conhecimento do povoado das Mesas do Castelinho, de que ambos publicam uma primeira notícia em 1957 e onde, segundo informação pessoal de Carlos Fabião, poderão mesmo ter chegado a fazer algumas sondagens. O facto de aquela mesma estação ser citada, em paralelo com o Castro da Cola, na petição que Abel Viana dirige nesse mesmo ano à Fundação Gulbenkian, solicitando apoio financeiro para a aquisição dos respetivos terrenos e para escavação de ambos os sítios, mostra que a “parada” de Abel Viana era bastante ambiciosa e mesmo algo despropositada para a época, ainda que cultural e cientificamente justificada, como se comprovaria décadas depois. Não consegue verba para as aquisições fundiárias mas garante o apoio da Fundação para iniciar em 1958 aquele que viria a ser o seu último e mais ambicioso projeto: a escavação em área do castro da Cola, um sítio tão mítico como remoto da arqueologia portuguesa, com vestígios de uma larga diacronia de ocupação, da Proto-história à Reconquista cristã, visitado ou citado por André de Resende, Frei Manuel do Cenáculo, Leite de Vasconcelos e tantos outros. Apesar de na petição apresentada à Fundação, publicada por João Luis Cardoso, Abel Viana referir como parceiros uma impressionante lista de ilustres colegas (Veiga Ferreira, Ruy Freire de Andrade, Fernando de Almeida, Fernando Nunes Ribeiro, Luis de Albuquerque e Castro e António Serralheiro) as escavações da Cola, acabarão por ser o projeto arqueologicamente mais solitário de Abel Viana. Pese embora a colaboração da população local por quem demonstra crescente afinidade, compartilhando dificuldades e alegrias, o isolamento prolongado e as espartanas condições de estadia e trabalho consomem-lhe recursos e energias para além do que seria normal. Ainda assim, a par da escavação na Cola consegue atrair o interesse e garantir o envolvimento de investigadores da delegação madrilena do Instituto Arqueológico Alemão para a escavação da vizinha Necrópole da Atalaia, uma das suas últimas grandes descobertas no Baixo Alentejo, encerrando de forma brilhante, o ciclo iniciado mais de uma década antes com a equipa dos Serviços Geológicos. O desaparecimento inesperado de Abel Viana quando, após cinco anos a pregar no deserto, parecia ter conseguido congregar o interesse das autoridades nacionais e regionais para a importância científica, cultural e turística do Castro da Cola, no contexto em que ocorre, acaba por parecer o desfecho de uma tragédia para a qual o voluntarismo e a paixão pareciam ter empurrado Abel Viana. E de facto, por dramática coincidência, ou por força da emoção que terá traído o seu coração já enfraquecido, o sítio da Cola foi visitado em 16 de Fevereiro de 1964, véspera da sua súbita morte, por uma extensa comitiva, presidida pelo Ministro das Obras Públicas e pelo Governador Civil de Beja, prenunciado o que parecia ser uma nova e decisiva fase para o seu projeto. Infelizmente, dois anos depois do desaparecimento de Abel Viana já as ruínas da Cola e da Atalaia se encontravam esquecidas e ao abandono, como alertava em extenso artigo no Diário Popular (22 de Setembro de 1966) o conhecido jornalista bejense, José Moedas e seria preciso esperar ainda algumas décadas, para que as sementes lançadas por Abel Viana finalmente frutificassem. Com efeito, no início dos anos oitenta, Caetano Mello Beirão, um advogado cujo interesse pela arqueologia nascera precisamente nos campos de Ourique, propõe enquanto Diretor do recente Serviço Regional de Arqueologia do Sul, a criação de um Parque ou Circuito Arqueológico com epicentro no Castro da Cola, valorizando um largo conjunto de monumentos, alguns escavados por Abel Viana, como a Nora Velha ou a Atalaia, outros pelo próprio Caetano Beirão. A concretização do projeto, por falta de meios, arrastar-se-ia por alguns anos e eu próprio nesse âmbito, tive oportunidade de aí conduzir algum trabalho de campo no início dos anos 90, chegando a pernoitar numa das casas usadas por Abel Viana três décadas antes. Finalmente, na transição do Século, viria a concretizar-se a aquisição pelo Estado dos terrenos do Castro da Cola e a instalação de um Centro Interpretativo numa das casas de romeiros do Santuário de Nª Sª da Cola (inaugurado em Março de 2001, 37 anos após a morte de Abel Viana) em apoio à visita ao “Circuito Arqueológico da Cola” e que hoje funciona graças à Câmara Municipal de Ourique. Também, mais a Sul, nas Mesas do Castelinho, Almodôvar, a tal segunda opção que Abel Viana preterira pelo Castro da Cola, a situação evoluiria de forma lenta mas positiva. A destruição parcial do povoado, em meados dos anos 80, por um alucinado caçador de tesouros, desencadeou uma reação por parte do Serviço Regional de Arqueologia, criando as condições para o desenvolvimento de um projeto de investigação universitário por parte de uma equipa da Faculdade de Letras de Lisboa, dirigida por Carlos Fabião e Amílcar Guerra, projeto que ao longo de duas décadas constituiu uma verdadeira escola prática de Arqueologia para dezenas de alunos, concretizando também neste aspeto, uma das mais reconhecidas preocupações de Abel Viana. Também este sítio, onde se confirmaria importante sucessão de ocupações (povoado fortificado da II Idade do Ferro, núcleo urbano de época romano-republica e finalmente, castelejo muçulmano), acabaria por ser adquirido pelo Estado, estando em curso um plano de valorização que passa pela instalação de um núcleo interpretativo na vizinha localidade de Santa Clara-a-Nova e pela melhoria das condições de acesso e visita pública.
Chegados a este ponto, julgo ser possível, ainda que em traços largos, proceder a um balanço sobre o enorme contributo de Abel Viana para a arqueologia alentejana, mostrando que meio século após o seu desaparecimento, muitas dos caminhos que trilhou ou das opções que tomou e que então poderiam parecer lunáticas ou no mínimo demasiado emotivas, se viriam a confirmar como linhas de ação que hoje consideramos estruturantes no contexto da arqueologia da região. Comecemos por Beja, sua base de trabalho, que lhe fica a dever antes de mais a criação da revista Arquivo de Beja, repositório para tantas das suas pequenas mas importantes notícias e que, apesar da crescente irregularidade, ainda hoje se mantém. A Abel Viana se fica também a dever, numa época em que ninguém falava de “arqueologia urbana”, a chamada de atenção para a existência de importantes vestígios soterrados das Bejas anteriores, em especial das suas épocas romana (com a descoberta do Templo Imperial ou a recuperação do Arco de Mértola), visigótica e islâmica, que era necessário conhecer e salvaguardar quando possível. As escavações da Rua do Sembrano nos anos 90, entretanto musealizadas ou as extensas escavações em curso dirigidas por Conceição Lopes na Acrópole, confirmando as observações de Abel Viana, vêm na continuidade direta do seu trabalho pioneiro. Da colaboração com Mariano Feio, resultou a primeira chamada de atenção para a realidade das indústrias líticas da Pré-história antiga dos terraços do Guadiana, fundamento para o posterior desenvolvimento da investigação, em particular nas zonas a montante do Ardila, afetadas pelos projetos do Alqueva. Já a Arqueologia do Norte Alentejano, em particular da região de Elvas, lhe fica duplamente devedora. Pesem embora as circunstâncias muito pouco científicas como A. Dias de Deus e A. Luís Agostinho, haviam congregado importantíssimos espólios provenientes de necrópoles pré e proto-históricas, romanas e até visigóticas, a Abel Viana se ficou a dever o registo da informação arqueológica possível e, finalmente, com o seu entusiasmo e empenho pessoal, a recuperação de parte significativa desses espólios, depositados no Museu de Elvas ou no Museu-biblioteca que a Fundação da Casa de Bragança, por sua proposta acabaria por constituir no Castelo de Vila Viçosa. Este aliás, apesar de renovado, constitui ainda hoje um dos contributos mais concretos e expressivos de Abel Viana para a Arqueologia Alentejana, reconhecido pela própria Fundação através do conjunto de iniciativas com que decidiu homenagear a sua memória no cinquentenário da sua morte. Em termos científicos e patrimoniais, porventura será o Baixo Alentejo, em particular a região de Ourique, Aljustrel, Almodôvar e Castro Verde, que mais terão beneficiado do contributo original de Abel Viana. Caetano Melo Beirão, no desenvolvimento dos trabalhos de investigação realizados na mesma região a propósito da Idade do Ferro, já tinha destacado esse mesmo facto e mais recentemente, Artur Martins, ao rever o megalitismo de Ourique para a sua tese de mestrado, veio reforçar essa noção. Não será também menor o contributo dado por Abel Viana ao retomar dos estudos da mineração antiga em Aljustrel, de colaboração com Ruy Freire Andrade e hoje continuados por projeto ligado ao próprio Museu Municipal. Mas, como realçámos, será no povoado das Mesas do Castelinho e no Castro da Cola, que o visionarismo apaixonado de Abel Viana acabaria por ser plenamente legitimado com o passar dos anos, constituindo estes dois importantes sítios paradigmas atuais da salvaguarda e valorização do património arqueológico no Alentejo.
Em conclusão, se quiséssemos adaptar à Arqueologia desta região o conceito de “pais fundadores”, mesmo alargando a ideia a todo o Sul, Abel Viana figuraria, inequivocamente e por direito próprio, na lista dos nomes imprescindíveis. De algum modo foi isso que Caetano Mello Beirão, meu antecessor na Direção do antigo Serviço Regional de Arqueologia do Sul, expressou taxativamente na introdução à sua conhecida obra sobre a I Idade do Ferro do Sul de Portugal, ao defender que havia quatro grandes nomes na origem da arqueologia do Sul de Portugal: Frei Manuel do Cenáculo (1724-1814), Estácio da Veiga (1822/1891) Leite de Vasconcelos (1858-1941) e, finalmente, Abel Viana (1896-1964). Destacando o facto da esmagadora maioria dos títulos da extensa obra de Abel Viana terem sido publicados depois da sua fixação em Beja e de na sua maior parte serem dedicados ao Alentejo e ao Algarve, “onde infatigavelmente ele investigou, escavou, estudou e publicou”, Beirão não hesitou pois em associar à fundação da própria Arqueologia alentejana, com pleno conhecimento de causa, justa e definitivamente, o nome de Abel Viana.

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