terça-feira, 28 de março de 2017

Antropologia,  Ortodoncia e Arqueologia

Página de um dos relatórios das campanhas de Afonso do Paço e Joaquim Bação Leal, no Castelo da Lousa (Mourão)


Tenho estado a reler, com imenso prazer (ainda que na versão espanhola que adquiri em 1998 numa banca de alfarrabista em Tarifa) uma espécie de memórias do grande arqueólogo e etnólogo André Leroi-Gourhan, um conjunto de conversas com Claude-Henri Rocquet, editadas em França em 1982 sob o título "Les racines du Monde" (Pierre Belfond). A certa altura, falando da amplitude da sua formação pluridisciplinar, das ciências naturais à etnologia, da museologia à arqueologia, Gourhan contou ao seu entrevistador, como escolhera, por acaso, o tema do seu doutoramento em ciências, "As linhas de equilíbrio mecânico do crânio nos vertebrados terrestres" (um assunto que retomaria por razões de contextualização paleo-antropológica, na sua obra clássica "Le geste et la parole"). Traduzo a justificação avançada pelo próprio:"É um tema muito ambicioso cujo estudo comecei de maneira totalmente fortuita: foi no decurso de conversas com a a minha dentista; eu era o paciente e ela, ortodontista, perguntou-me o que pensavam os antropólogos da evolução do rosto das crianças e das correções que se podem fazer utilizando o crescimento para rectificar as mandíbulas, para trás ou para diante. Discutimos algum tempo sobre isso até que um dia lhe disse: tudo bem, tratarei de ver e assim o compreender melhor"

Esta pequena e quase irrelevante história não me podia ser indiferente. Até porque, guardadas as devidas distâncias comparativas, também guardo agradáveis recordações de longas conversas com um ortodontista, no caso o Dr. Fernando Mendonça, que tive o prazer de conhecer no final dos anos 90, ao recorrer, por recomendação amiga, aos seus serviços para correção de problemas de deformação facial do meu filho David, cuja gravidade representaram claramente um desafio aos conhecimentos e experiência daquele médico. Através das conversas que então mantivémos (normalmente aos Sábados à tarde, quando o Dr. Fernando atendia no consultório da Avenida da República os clientes "da província") e que também abordaram algumas questões do foro antropológico, apercebi-me do nome do seu grande mentor, que não me era totalmente estranho e que ele considerava como o introdutor da especialidade da ortodoncia em Portugal, o Professor João Bação Leal. De facto, por coincidência, algum tempo antes havia conhecido em Mourão (onde acabara de instalar o gabinete de Arqueologia do Alqueva), o Dr. Joaquim Bação Leal que já idoso e com a ajuda de um filho me procurara para entregar alguns materiais arqueológicos que conservava em sua casa. João e Joaquim Bação Leal, percebi então, eram dois conhecidos dentistas de Lisboa, irmãos originários da pequena vila alentejana de Mourão, ambos com consultório na Avenida da Liberdade. João especializara-se no estrangeiro (países nórdicos) em ortodoncia e Joaquim, a par da sua actividade profissional como dentista, colaborara com vários arqueólogos  em trabalhos investigação, em particular com Afonso do Paço, nalguns dos quais recorreria à sua formação de antropologia física (caso do estudo de alguns dentes humanos encontrados nas sepulturas de S. Pedro do Estoril que já aqui referimos neste blog (ver necrópole de S.Pedro do Estoril ).

Mas será em particular pelos seus trabalhos no Castelo da Lousa, que o nome de Joaquim Bação Leal ficará ligado à história da Arqueologia portuguesa. Terá sido através dele que Afonso do Paço, que mantinha colaboração também com outro conhecido médico da região (José Pires Gonçalves, de Reguengos de Monsaraz), iniciou trabalhos na margem esquerda do Guadiana, estudando algumas necrópoles "argáricas" (Herdade da Queijeirinha, Folha da Palmeira) aí descobertas. Foi também pela mão de Joaquim Bação Leal que Afonso do Paço se dedicaria ao seu último grande projecto de arqueologia: o estudo e escavação do Castelo da Lousa, uma imponente estrutura romana confundida décadas antes pelo General João de Almeida, com uma "atalaia islâmica". As escavações sazonais aí iniciadas em 1962 seriam interrompidas em 1969, devido à morte de Afonso do Paço. Joaquim Bação Leal, porém, ainda realizaria por sua conta e risco mais uma campanha em 1970.

Um quarto de século depois, enquanto arqueólogo responsável pelo salvamento arqueológico no Alqueva, tive oportunidade de ali promover novos e definitivos trabalhos (o monumento está hoje debaixo de água) os quais viriam a confirmar o rigor das observações e considerações de Joaquim Bação Leal. Aqui divulgando o texto do relatório da campanha de 1970, já dirigida apenas por si, procuro render homenagem ao homem que em 1996 me procurou no escritório de Mourão, para conscienciosamente, entregar algumas pesadas "mós manuais" que, certamente pela dificuldade de transporte, não entregara em 1970 ao Dr. Farinha dos Santos, arqueólogo que na sequencia do desaparecimento de Afonso do Paço seria o representante da Administração Pública nestes trabalhos. De referir que os materiais das antigas campanhas estão depositados e parcialmente expostos no Museu de Évora enquanto os recolhidos nas campanhas promovidas pela EDIA, fazem parte do acervo do Museu da Luz (Mourão). http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/12/a-reinvencao-do-castelo-da-lousa-2.html












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