quarta-feira, 8 de março de 2017

A minha faca de Toledo




Enquanto arqueólogo, tenho alguma dificuldade em abstrair da apreensão do "artefacto" para além do seu contributo para a definição de uma qualquer categoria tipológica e funcional (qual arquétipo material), esquecendo quase sempre a sua dimensão individual, enquanto objecto único, fabricado e usado por indivíduos concretos num determinado espaço físico e num contexto temporal mais ou menos longínquo. Identificado o tipo em causa, catalogado e devidamente encaixotado, o artefacto perde a sua importância específica, a não ser que congregue também um valor estético que lhe confira uma especial mais valia contemplativa que justifique a sua exposição museológica. 

Resulta esta breve reflexão de um detalhe observado por acaso num diapositivo pessoal, com quase meio século, e que recentemente digitalizei. Trata-se da foto de um grupo à mesa, obtida em França no verão de 1974, numa quinta nos arredores de Saint-Martory, onde se alojava a equipa das escavações da Gruta de La Tourasse então em curso e nas quais eu participava a convite do arqueólogo Michel Orliac. Enquanto fotógrafo, não apareço na imagem, pelo que o prato em primeiro plano só pode ser o meu. Nele reconheço uma "faca de mato" que ainda hoje conservo e que, milagrosamente, tem sobrevivido às sucessivas purgas caseiras de velharias mais ou menos inúteis. Para além da circunstância pouco "civilizada" de estar a usar tal instrumento à mesa (pecadilhos de juventude!), este reconhecimento de um objecto concreto acabou por despoletar outras memórias associadas.
Jantar em Saint -Martory, Haute-Garonne (Junho de 1974), da equipa das escavações de La Tourasse. Em primeiro plano, o meu prato e a faca toledana...

A faca em causa foi adquirida em Toledo no Verão de 1973, no decurso de uma viagem arqueológica com o Mário Varela Gomes e o Francisco Sande Lemos, feita num velho mas imponente Peugeot que o Mário herdara do pai e que, apesar de alguma vetustez, dava nas vistas no trânsito de Madrid então dominado pelos pequenos e omnipresentes SEATs. Apesar de termos aproveitado a viagem para algum turismo arqueológico (data dessa altura a minha primeira visita ao Museu Arqueológico de Madrid, na Calle Serrano, que apresentava na altura, no jardim exterior, uma tosca réplica da sala dos touros de Altamira) o nosso principal objectivo era participar nas escavações paleolíticas de Pinedo, dirigidas por Maria de los Angeles Querol numa antiga saibreira nas margens do Tejo, junto a Toledo. A Maria Queirol, natural de Badajoz, para além de uma ligação pessoal muito estreita a Portugal (a família mantinha uma casa de férias na Praia das Maçãs) estabelecera estreitos laços de amizade com os elementos do GEPP (Grupo para o Estudo do Paleolítico Português)  ver aqui e  aqui também . Ainda como estudante e posteriormente como assistente da Universidade Complutense de Madrid (onde é há muitos anos Professora Catedrática), colaborara em vários projectos de arqueologia em Portugal, sendo uma das arqueólogas presentes no Fratel, no dia em que se reconheceu a existência da Arte Rupestre do Vale do Tejo. Era aliás do Ródão que em particular o Mário e eu próprio (que não integráramos as origens do GEPP) a conhecíamos, pois por várias ocasiões a Maria e algumas alunas (hoje arqueólogas distintas em Espanha) vieram dar uma ajuda nos intensos trabalhos de salvamento arqueológico ali promovidos pelo GEPP entre 1971 e 1974. 

Uma foto de grupo do GEPP (1970?) no Museu Nacional de Arqueologia. A Maria Querol é a terceira em pé, a contar da direita, entre o Luis Raposo e o saudoso Eduardo Cunha Serrão

Naturalmente, da estadia em Toledo e das incursões às lojas turísticas do centro histórico, onde abundavam os artefactos supostamente fabricados com o lendário "aço toledano", resultou a aquisição da "faca de mato" em causa. Hoje em dia, com a paranoia securitária dominante, não sei se será muito adequado alguém passear-se com tais instrumentos. De qualquer modo, a velha faca de Toledo há muito que perdeu a sua função, até porque tem no seu curriculum uma história algo recambolesca verificada poucos anos depois também na zona do Ródão, algures entre 75 e 76, durante uma das várias campanhas de escavação realizadas em Vilas Ruivas. Com efeito, numa excursão arqueológica de fim de semana, em que com vários participantes nas escavações procurávamos rever as gravuras rupestres de São Simão (na margem esquerda do Tejo, próximo de Montalvão), fazendo para isso a "corta-mato" e a pé, o longo percurso entre o Ródão e a aldeia de Perais, onde cruzávamos o Tejo, graças ao barqueiro Carepa, eu e o Francisco Sande-Lemos, acabámos momentaneamente "detidos" por uma patrulha da Guarda Republicana (que se deslocava também a pé...), por posse de "armas"... Além da minha "faca de mato", o Sande Lemos, trazia à cintura um "perigoso" martelo de geólogo e por mais que se esforçasse não conseguia convencer os guardas de que se tratava de um "instrumento científico"... Afinal o mal entendido acabaria por se resolver sem necessidade de interrompermos a nossa excursão arqueológica e nos dirigirmos todos para o "posto", a pé. Algum dos raros moradores da pequena aldeia do Salgueiral que atravessáramos algum tempo antes assustara-se com o aspecto pouco rural do grupo, reforçado pelo ambiente crispado que se vivia na época (estávamos em pleno PREC) e telefonara para a GNR do Ródão que enviara uma patrulha no nosso alcance, temendo que integrássemos alguma brigada de "incendiários". Apesar de inconsequente, embora por vezes algo mitificado e ampliado nas narrativas de alguns dos envolvidos...este evento terá sido determinante na passagem à "reserva" da velha faca de "aço toledano"...

A minha faca de Toledo, há muito "reformada"...


Sem comentários:

Enviar um comentário