segunda-feira, 13 de junho de 2016


Afinal, ainda há "tesouros", para alguns...

Do ouro de Baleizão às pedras do Castelo da Lousa, quanto vale o património?



O tema dos "tesouros" (ou seja do enriquecimento rápido e inesperado) é cíclico e de interesse mediático garantido. Venha ele na versão tradicional da "panela das libras" descoberta por acaso, ou nas versões mais contemporâneas da "caça" organizada ao tesouro, com recurso a tecnologias cada vez mais sofisticadas mas sem enquadramento legal no território português ou na plataforma continental marítima, o que acaba por abrir a porta a todo o tipo de especulações sobre o que de facto se passa entre nós nesse domínio.

 E o tema aí está de novo nas páginas dos jornais "O Tesouro de Baleizão", PÚBLICO, 12/6/2016 embora o assunto já tenha barbas, pois refere-se a um caso de 2004.  https://www.publico.pt/local/noticia/tesouro-de-baleizao-rendeu-40-mil-euros-a-antonio-lamas-1734463#

Só que ao contrário de outros casos parecidos que não passaram do "diz que diz" ou do "ouvi dizer", este acabou na barra dos tribunais. E estas instituições, apesar de alguma tendência ideológica conservadora, têm o hábito de se regular pelo que as leis determinam e não por aquilo que cada um de nós acha que deveriam determinar... Sobre este assunto em concreto, porém, prefiro não me pronunciar. Para além de nunca ter acompanhado directa ou indirectamente este caso, conheço ou sou mesmo amigo de praticamente todos os intervenientes (à excepção dos "achadores", os quais embora me possam merecer alguma simpatia social, sabiam exercer uma actividade mais ou menos lucrativa, não só depredadora do património mas também ilícita, pois ao tempo já havia legislação a proibir o uso de detectores de metais para este fim).

Em todo o caso aí está assunto que há muito me interessa e como técnico do património me preocupa, como já o recordei oportunamente neste mesmo Blog, não sendo uma questão que possa ser reduzida a interpretações simplistas, de "polícias e ladrões", ou mais propriamente de "bons arqueólogos e pesquisadores de tesouros maléficos" ...  http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/04/a-propriedade-dos-bens-arqueologicos.html .

 Aliás fui protagonista de um dos poucos casos de actuação bem sucedida neste campo (controle do uso dos detectores de metais) por parte da Administração Pública, numa altura em que não havia ainda qualquer legislação sobre o assunto,  Torre de Palma, ver aqui , ao conseguirmos a condenação no Tribunal de Fronteira de um "pesquisador de tesouros" detectado em flagrante nas imediações das ruínas da Villa Romana de Torre de Palma. A existência de testemunhas e o facto das ruínas estarem classificadas e não se conhecer bem o seu limite, terão sido decisivas para a juíza condenar o réu, "antiquário de profissão", com banca aberta em Setúbal. O que terá sido também instrutivo para os detectoristas que têm hoje como princípios básicos de actuação, as seguintes regras: Primeiro, nunca se deixar identificar e evitar "flagrantes"; Segundo, evitar prospecções em sítios classificados... que, no entanto, são uma minoria em relação aos 30 000 registos do ENDOVÉLICO.

Mas a posse privada de bens arqueológicos e a legitimação da obtenção de lucros avultados com o que, aparentemente, deveria pertencer a todos, não se limita apenas aos objectos avulsos, mais ou menos valiosos em função da sua raridade, interesse artístico ou matéria prima de fabrico. De tempos a tempos caiem nos tribunais casos de conflitos relativamente a expropriações (infelizmente cada vez mais raras) que envolvem a avaliação de ruínas de interesse arqueológico e que, na falta de princípios legais claros, acabam por deixar a decisão na mão de advogados habilidosos, pagos à percentagem. Neste contexto de jurisprudência, digam-me por favor, como resolver a favor do bem e do interesse comum, o problema de monumentos de primeira grandeza, como a "Anta Grande do Zambujeiro", completamente arruinados mas cuja posse privada impede o Estado de investir na sua recuperação? E se o Estado avançar para a recuperação, apesar do seu estado de colapso, quanto não exigirão de indemnização (neste contexto) os proprietários?

Por razões profissionais acompanhei há mais de uma década um processo em tribunal, cujo desfecho negativo (em relação ao Estado ou seja ao interesse comum) ainda hoje considero quase como um revez pessoal, pese embora a minha intervenção no mesmo se tenha reduzido a de perito técnico ao serviço da EDIA. De facto estava em causa a reclamação dos proprietários relativamente ao valor atribuído a parte de uma propriedade expropriada no âmbito do Alqueva, na qual se localizavam os vestígios arqueológicos, conhecidos como "Castelo da Lousa". A EDIA oportunamente e com fundamento legal, tomara posse administrativa do terreno e, no âmbito das medidas de minimização de impactos culturais, desenvolveu no local um vasto e dispendioso programa de investigação que terminou com o acondicionamento e afundamento das ruínas pelas águas da Barragem (2002). Os proprietários, obviamente não levantaram nem podiam levantar, qualquer objecção àqueles trabalhos. Mas aproveitaram todos os estudos promovidos pela EDIA para virem mais tarde fundamentar e reclamar direitos privados sobre um património que sempre haviam olimpicamente ignorado e para o qual nunca haviam mexido uma palha. O Estado (IPPAR) através de um seu representante nomeado a pedido do tribunal, fechou-se numa atitude "fundamentalista" defendendo que não era possível atribuir um valor monetário às ruínas apesar do seu óbvio valor cultural e o juíz (já em segunda instancia), na falta de valor contraditório, acabaria por considerar com válida a reclamação dos proprietários atribuindo ao Castelo da Lousa, entretanto "afundado" pelas águas do Alqueva, o valor de três centenas de milhares de Euros (mais coisa menos coisa). Afinal uma rica "panela de libras"...

A título de curiosidade e para simples registo "histórico", aproveito para transcrever na íntegra (acrescentando apenas a figura 4) o parecer que então redigi para a EDIA, para apoio à sua resposta ao tribunal no caso da "reclamação" relativa à avaliação sobre o Castelo da Lousa.


PARECER


Assunto: litígio judicial entre a “proprietária” da Herdade do Montinho (entidade expropriada) e a EDIA (entidade expropriante), por desacordo relativamente ao montante da “indemnização” a atribuir pelo sítio arqueológico conhecido por “Castelo da Lousa”, classificado como Monumento Nacional pelo Decreto-Lei 271/70 e localizado em terrenos da referida propriedade expropriados no quadro da construção da Barragem de Alqueva.


Estamos, naturalmente, perante duas posições praticamente antagónicas:

Por um lado a proprietária considera que o “sítio arqueológico do Castelo da Lousa” _ que refere sempre e apenas como “CASTELO DA LOUSA” _ dado o seu reconhecido “interesse cultural” comprovado pela classificação como Monumento Nacional, representa em si mesmo um valor material ou monetário elevado, ainda que de difícil cômputo, o qual deverá obrigatoriamente ser tido em conta no cálculo global da indemnização que lhe é devida pela expropriação da propriedade em causa.

Por outro, a entidade expropriante que, apesar de considerar também elevado o valor cultural do “sítio arqueológico do Castelo da Lousa” (de tal modo que nele foi obrigada nos termos da lei, a realizar grandes investimentos a título de minimização dos impactes “ambientais e culturais” decorrentes da construção da Barragem de Alqueva) defende que esse valor cultural não é passível de se traduzir num montante monetário objectivo correspondendo a um valor real de mercado, e que, por consequência, não são devidas, para além do justo valor da terra expropriada, quaisquer outras mais valias a título de perda de rendimentos inexistentes, presentes ou futuros e muito menos de compensação por quaisquer investimentos de escavação, conservação ou valorização nunca efectuados pela proprietária ou pelos seus antepassados.


A- Sobre o eventual “valor venal” do “sítio arqueológico do Castelo da Lousa”


Tal como o representante jurídico da expropriada, nos nº 31 e 32 da resposta ao recurso interposto pela entidade expropriante de 25 de Junho de 2003, a propósito do cálculo do valor global da indemnização devida, defende que deverá ser tido em conta o valor da área da propriedade incluída no Domínio Público Hídrico, área sujeita a um “regime de servidão, não pago nem indemnizado ao proprietário, (tal como o regime de Reserva Agrícola Nacional ou de Reserva Ecológica Nacional” (sic), também nós começaremos por defender que o terreno (e apenas este), onde se localiza o “sítio arqueológico do Castelo da Lousa”, classificado como Monumento Nacional -  e por isso também sujeito a um regime de servidão, limitativo das capacidades de uso e de liberdade do proprietário poder dispôr ou afectar aquela superfície para outras finalidades- deve ser considerado para aquele efeito, mas, naturalmente, tendo em conta o valor médio atribuído aos terrenos imediatamente adjacentes às ruínas.

Procurar atribuir às “ruínas arqueológicas” propriamente ditas, pese embora o seu reconhecido valor enquanto recurso científico, histórico e cultural (ainda que não artístico, neste caso) um montante pecuniário específico que possa reflectir aqueles valores, seria praticamente o mesmo que considerar para efeitos do valor da área expropriada incluída no Domínio Público Hídrico, o montante pecuniário resultante da eventual venda da água que transita pela mesma e que, dado o regime de servidão em causa, está naturalmente sujeita a rigorosas limitações quanto ao seu uso.

É óbvio que se reconhece que alguns imóveis classificados, nomeadamente alguns imóveis de natureza “arquitectónica”, para além do respectivo valor cultural, histórico ou artístico (valores sujeitos a um regime de servidão e, como tal, recursos que de certo modo podem ser considerados do domínio público), apresentam igualmente um valor imobiliário específico. E também não podemos deixar de reconhecer que face à evolução das mentalidades, a “classificação” que ainda há bem pouco tempo era considerada, subjectiva e objectivamente, como um “ónus” pesadíssimo sobre a propriedade privada, começa hoje, ainda que ocasionalmente, a poder representar uma mais valia que pode também, em determinadas circunstâncias, ter reflexos positivos (na óptica do vendedor) sobre os valores (imobiliários) de mercado.

Simplesmente, o bem “sítio arqueológico do Castelo da Lousa”, ao contrário do que está subjacente a toda a lógica da argumentação da adjudicatária e do que pode sugerir o respectivo “topónimo”, é um bem inequivocamente de “natureza arqueológica” (sem qualquer valor imobiliário, nem real nem potencial...), o que lhe confere uma especificidade própria, não apenas em termos técnicos (da metodologia da intervenção) e práticos (das capacidades de uso), mas igualmente em termos jurídicos como procuraremos demonstrar.

Acresce ainda que,  como se verifica de uma maneira geral e por definição com os bens imóveis de natureza arqueológica, a sua actual mais valia científica, histórica e cultural (que em parte se mantém mesmo com a submersão graças ao múltiplos “registos” efectuados e às medidas de protecção empreendidas, nos termos da legislação de minimização de impactes ambientais) não existe “de per si” mas é o produto do esforço e investimento público realizado nas últimas quatro décadas e ao qual os proprietários do terreno em causa (actuais e anteriores) foram completamente alheios. Com efeito, sem as extensas escavações realizadas entre 1962 e 1968 pelo arqueólogo Afonso do Paço e financiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian; sem os estudos realizados nos anos 80 pelo arqueólogo Yurgen Wahl, financiados pelo Instituto Arqueológico Alemão; sem finalmente as novas escavações e investigações promovidas pela EDIA nos últimos anos, o “sítio arqueológico do Castelo da Lousa” teria continuado a ser um local como milhares de outros dispersos por todo o território nacional, com um topónimo popular curioso mas comum[1] e onde afloravam alguns materiais cerâmicos que denunciavam a existência de um potencial sítio arqueológico da época romana.

Por outro lado, mesmo após o reconhecimento público do especial interesse científico e cultural deste local (através da classificação proposta pelo arqueólogo Afonso do Paço e publicada pelo Decreto 251/70, o que segundo testemunho pessoal da actual proprietária “muito terá desagrado a seu pai”, como é normal, acrescentarmos nós, dado o “ónus” que implicava) o “sítio arqueológico do “Castelo da Lousa” ficou votado ao esquecimento e ao abandono, tanto por parte dos poderes públicos como dos proprietários, de tal modo que quando do início dos trabalhos promovidos pela EDIA a respectiva situação avaliada em Estudo solicitado ao LNEC (Laboratório de Engenharia Civil) era a seguinte:

 “É importante salientar que, nas actuais circunstâncias, o estado de conservação inspira cuidados, sendo algumas situações já preocupantes no que diz respeito à sua estabilidade estrutural. Quer isto dizer que, independentemente das exigências postas pela submersão, o monumento já hoje necessita de cuidados de grande envergadura, mesmo que fosse prevista a sua manutenção em estado emerso.”
 (DELGADO RODRIGUES- Parecer sobre o estado de conservação do Castelo da Lousa e medidas para a sua preservação. Relatório 5/98- GERO, LNEC, 1998, pg 3)

Queremos com isto afirmar que a responsabilidade pela conservação do sítio arqueológico, competiria aos proprietários ou usufrutuários do terreno, de acordo com o que parece estabelecer a tradição legal desde 1932 (art.44, do Decreto 20 985, Art. 15 da Lei 13/85 e Art. 21º da Lei 107/2001)?

Na nossa interpretação, desde que aceite o princípio da especificidade jurídica do “património arqueológico”, tal exigência ­_defensável para o património arquitectónico de interesse imobiliário_ não faz sentido no caso da “arqueologia”, sendo essa aliás a interpretação comum sempre seguida pelos serviços competentes. Seria de facto um “ónus” pesadíssimo sem quaisquer contrapartidas que permitissem compensar os pesados encargos que a conservação arqueológica implica (a não ser a mira de hipotéticas “indemnizações chorudas”) até porque grande parte das causas da degradação deste património são de origem natural, competindo apenas ao proprietário ou detentor, nos termos dos seus deveres de salvaguarda, evitar qualquer uso ou interferência que possa colocar o bem classificado em risco.

Mas se aceitamos este princípio, considerar como uma mais valia a favor do proprietário os investimentos públicos efectuados no sentido de preservar aqueles bens, só pode ser entendido como um absurdo. [2] Com efeito e nesta lógica, se  por hipótese o Coronel Afonso do Paço não tem falecido em 1968 e, com o apoio da Gulbenkian ou do Ministério da Educação Nacional, tem prosseguido os seus trabalhos e procedido ao restauro dos arruinados paredões Norte e Nascente do edifício central e tem resolvido os problemas de instabilidade do paredão Poente (que se foram entretanto agravando a ponto de ameaçarem ruir), quanto não exigiria hoje a título de indemnização, a actual detentora do sítio arqueológico?

Lemos algures numa citação (Código das Expropriações, J.A.Santos, 2ª Ed., Dislivro, pg 313) que “a justa indemnização há-de corresponder ao valor adequado que permita ressarcir o expropriado da perda que a transferência do bem que lhe pertencia lhe acarreta (...) não devendo nela atender-se a quaisquer valores especulativos ou ficcionados por forma a distorcer a necessária proporção que deve existir entre as consequências da expropriação e da reparação”.

Apesar da argumentação exposta, se viesse mesmo assim a considerar-se que a expropriada tinha direito a uma indemnização apenas pelo facto de as “ruínas arqueológicas do Castelo da Lousa” se situarem na sua propriedade, não nos restaria mais do que denunciar (enquanto cidadãos pagantes de impostos) o triplo “confisco” de um valor cultural de interesse público, a favor afinal de um particular:

            - enquanto “pagantes” das escavações e dos estudos arqueológicos que permitiram a sua “descoberta” e “interpretação”;
            - enquanto “pagantes” das extensas e caras medidas de minimização de impactes decorrentes de uma obra de interesse público mas que nada tem a ver com o referido sítio arqueológico;
            - por fim, enquanto “pagantes” da indemnização a que a proprietária do terreno se julga ter direito;

E o que é mais grave e ridículo é que, no final de tudo, nem “dinheiro”, nem “sítio arqueológico” para usufruto público, já que o mesmo se encontrará afinal, durante várias gerações, completamente inacessível sob as águas do Alqueva.


B- Sobre o eventual “valor de marketing” do “sítio arqueológico do Castelo da Lousa”


O exemplo da Herdade do Esporão


Ainda que algo irrelevante, no quadro do raciocínio que seguimos, vale a pena abordar também a questão do valor de imagem ou de “marketing” dos bens culturais, já que em teoria poderá argumentar-se que um sítio arqueológico poderá não ter um valor imobiliário ou mesmo um valor de uso (de facto a exploração turística dos poucos sítios arqueológicos nacionais musealizados, mesmo sem considerar a amortização de todos os investimentos de escavação e conservação, é sempre altamente deficitária, como facilmente se pode comprovar) mas poderá, ainda assim, apresentar esse valor complementar ou residual de “marca”. O exemplo que o representante jurídico da expropriada resolveu usar em apoio da respectiva argumentação, a “Torre do Esporão”, é especialmente interessante e elucidativo, da falácia do raciocínio seguido. De facto o que explica o sucesso económico da Herdade do Esporão, e confere inequívoco valor à marca “Esporão”, é a qualidade dos seus produtos e a poderosa e dispendiosa política de “marketing” associada e não a qualidade intrínseca do imóvel ou do bem que esteve na origem da marca, como facilmente se demonstra:

a) a antiga “Torre do Esporão”, situada na Herdade do Esporão, ainda que muito descaracterizada por obras e acrescentos diversos, foi classificada como Imóvel de Interesse Público em 1957;

b) quando os actuais proprietários adquiriram a propriedade (1973) e quiseram criar uma “marca” para os produtos da Herdade, resolveram, a exemplo do que acontece noutros locais, usar a referida “Torre” como imagem inspiradora; simplesmente, face já referida descaracterização, o artista contratado resolveu inspirar-se em modelo mais “autêntico” que, para quem conheça um pouco de História de Arte, identifica de imediato como a “Torre das Águias”, classificada como Monumento Nacional e localizada em Brotas, Mora, na Herdade das Águias e que nada tem a ver com a Herdade do Esporão.

c) recentemente, os proprietários do Esporão, resolveram restaurar (às suas custas, obviamente) a referida Torre. Apesar de muitas reservas (e de justificada polémica) o IPPAR acabou por dar parecer favorável à controversa proposta de restauro apresentada pelos proprietários e que, curiosamente, se aproximava (com pouco fundamento) da imagem de “marca” que todos conhecemos das garrafas do Esporão (como se pode observar no conjunto de imagens que juntamos...)

Moral da história: não foi certamente a mais valia histórica e muito menos artística do monumento que trouxe reconhecimento à “marca” mas o investimento feito em “marketing” o qual acabou por influenciar (negativamente, porque não fundamentada...) a imagem artificialmente fabricada pelo restauro do monumento...

                                                       
1. A "Torre das Águias" em Brotas, Mora- o modelo
2. A conhecida imagem de marca de vinhos de Reguengos de Monsaraz, na sua versão original. 








3. A verdadeira Torre do Esporão (Reguengos de Monsaraz) - Antes e depois do restauro (ou do "marketing")


4. O actual "logo", por sua vez influenciado pelo "restauro".





O caso das ruínas arqueológicas do Castelo da Lousa


Em teoria, dois factores potenciam o eventual valor de marca de um bem cultural (seja ele uma pintura, uma escultura, um edifício ou um sítio arqueológico). Antes de mais a qualidade intrínseca da própria imagem e depois o seu fácil reconhecimento ou identificação por um público muito vasto. Como raro exemplo arqueológico português que conseguiu associar aqueles factores, podemos citar o caso das gravuras rupestres do Côa. A uma elevada qualidade artística de algumas gravuras juntou-se o excepcional impacto mediático da controvérsia gerada em torno da respectiva salvaguarda, que gerou um efeito objectivo de reconhecimento público que em condições normais custaria uma fortuna em publicidade ou “marketing” e que entidades locais, nomeadamente a cooperativa vinícola, tiveram a inteligência de saber aproveitar para destacar os seus produtos junto do consumidor.

No caso da “Lousa”, o seu valor intrínseco enquanto imagem era reduzido. O que o tornava especialmente interessante era o respectivo enquadramento paisagístico e a especial relação com o Rio Guadiana. Mas tal situação, julgamos nós, não era passível de apropriação privada. De facto, mesmo que tivesse sido possível tecnicamente “trasladar” as ruínas (como de forma algo “cínica” a proprietária a certa altura propunha) para além de irreparável descontextualização científica, elas perderiam todo o impacto e interesse visual que lhe era conferido pelo enquadramento paisagístico. Por outro lado e no que respeita ao reconhecimento pelo público, é fácil provar que este sítio, apesar de referido nalguns inventários ou roteiros turísticos, era pouco conhecido do grande público. A relativa notoriedade que veio a conhecer nos últimos tempos ficou a dever-se antes de mais à inevitabilidade da sua submersão, aos trabalhos de minimização de impactes que nalguns casos assumiram metodologias de grande inovação técnica e, sobretudo, ao imenso esforço de divulgação que a EDIA levou a cabo como provam os diversos materiais (livros, brochuras, cds, filmes) que a proprietária juntou ao processo e que, como se pode verificar, são quase todos ou promovidos ou directamente apoiados por aquela entidade.



Em conclusão e em síntese somos de opinião que:


1. Os bens imóveis arqueológicos, nomeadamente os classificados, estão sujeitos juridicamente a um regime específico que limita e condiciona fortemente o seu hipotético valor de mercado;

2. O imóvel “Castelo da Lousa”, ao contrário do que o topónimo pode sugerir, é exclusivamente um sítio arqueológico, apresentando fortes condicionantes quer quanto ao uso quer quanto à metodologia de intervenção; nesse contexto e pese embora o seu elevado interesse cultural, a sua presença representava um “ónus” para os proprietários do terreno e não uma potencial fonte de rendimento económico;

3. O sítio arqueológico do Castelo da Lousa, não foi objecto de expropriação por si mesmo, em função de um qualquer valor cultural específico gerador de mais valias para a entidade expropriante; pelo contrário, a sua localização numa zona afectada por um empreendimento de especial interesse nacional, implicou, nos termos da lei, a realização de grandes investimentos de minimização de impactes culturais cujo retorno é exclusivamente de ordem cultural e científico, beneficiando a comunidade em geral e não especificamente esta ou aquela entidade.



ANEXO



Fundamentação complementar de alguns dos pressupostos em que apoiamos a nossa argumentação



1. Da especificidade própria do património arqueológico

Ainda que o regime geral de protecção dos bens culturais estabelecido pela actual Lei de Bases do Património Cultural (Lei 107/2001 de 8 de Setembro) se aplique a todo o tipo de bens classificados ou inventariados, essa mesma Lei, na tradição da legislação portuguesa sobre património cultural[3], reconhece especificidade ao “Património arqueológico” em capítulo próprio. O artigo 74º (Conceito e âmbito do património arqueológico e paleontológico) distingue claramente os bens arqueológicos dos bens arquitectónicos ou artísticos ao afirmar que integram o património arqueológico e paleontológico “todos os vestígios, bens e outros indícios da evolução do planeta, da vida e dos seres humanos, cuja preservação permitam traçar a história da vida e da humanidade e a sua relação com o ambiente, e cuja principal fonte de informação seja constituída por escavações, prospecções, descobertas ou outros métodos de pesquisa relacionados com o ser humano e o ambiente que o rodeia”. Esta definição que, acompanhando a evolução epistemológica da disciplina, valoriza sobretudo a mais valia científica/documental deste tipo de património, inspira-se directamente na Convenção Europeia para a Protecção do Património Arqueológico, mais conhecida por “Carta de Malta”[4]. Do seu Artigo 1º, transcrevemos “ 1. A presente convenção tem por objectivo a protecção do património arqueológico enquanto fonte da memória colectiva e instrumento de estudo histórico e científico. 2. Para esse fim são considerados elementos do património arqueológico todos os vestígios, bens e outros indícios da existência do homem no passado; a. Cuja preservação e estudo permita traçar a história da humanidade e a sua relação com o ambiente; b. Cuja principal fonte de informação é constituída por escavações ou descobertas e ainda outros métodos de pesquisa relacionados com o homem e o ambiente que o rodeia”.

Para além da grande abrangência que transparece destas definições, destaca-se a introdução em ambas de um conceito operatório visando de algum modo estabelecer limites a uma definição, juridicamente, demasiado generalizante. Com efeito, nos termos da Lei de Bases do Património Cultural, o que integra determinados “vestígios, bens ou indícios” na categoria de “património arqueológico ou paleontológico” é o facto de a sua principal fonte de informação ser constituída por escavações, prospecções, descobertas...”.

Poderá, para o caso em apreço, parecer irrelevante tal distinção, na medida em que o que está em causa é estabelecer o valor material (valor de mercado) de um determinado bem imóvel com interesse cultural, independentemente da sua natureza (arqueológica, artística, arquitectónica, ou outra...). No entanto, julgamos que a inequívoca caracterização técnica e jurídica do bem em causa, é indispensável para uma avaliação do seu eventual valor de mercado. Como procuraremos provar, tendo em conta o quadro legal português que segue muito de perto as recomendações e convenções internacionais sobre a matéria, o ónus, as condicionantes e as drásticas limitações ao uso dos bens culturais variam substancialmente em função da respectiva natureza, o que não pode  deixar de ter consequências directas sobre eventuais valores de mercado.

Nota:

Esta especificidade própria do património arqueológico, ainda que mantendo-se na presente lei do património (107/2001 de 8 de Setembro) através de um capítulo autónomo, estava particularmente expressa na anterior lei, (13/85) nomeadamente no Art. 36º que declarava inequivocamente que “Os bens arqueológicos, imóveis ou móveis, são património nacional”. Ainda que o alcance da referida qualificação fosse objecto de polémica e de diferentes interpretações, ela representava, no mínimo, a consideração do “património arqueológico” em geral, como um recurso colectivo (tal como a água, o ar, a paisagem) que se impunha proteger e salvaguardar tanto quanto possível, independentemente da sua classificação ou inventariação, ou mesmo da sua posse efectiva. Aquele princípio, por outro lado, dava cobertura formal à obrigatoriedade de comunicação de qualquer achado arqueológico ocasional, princípio claramente expresso no Art. 39º da Lei 13/85 e que tinha o seu antepassado no Art.48º do Decreto 20 985 de 7 de Março de 1932. A actual lei não será tão explícita e tão universal mas para além de manter a obrigatoriedade da comunicação de achados ocasionais (Art. 78º) continua a reconhecer aos bens arqueológicos o carácter de recurso colectivo, nomeadamente quando no nº 3, do Art. 74 estabelece que “Os bens provenientes da realização de trabalhos arqueológicos constituem património nacional, competindo ao Estado e às Regiões Autónomas proceder ao seu arquivo, conservação, gestão, valorização e divulgação


2. O “Castelo da Lousa” é um bem arqueológico

Apesar de, à data da sua recente protecção e submersão, o chamado “Castelo da Lousa” apresentar uma rara monumentalidade no contexto da arqueologia portuguesa, estávamos em todo o caso perante uma mais que evidente “ruína arqueológica”, em toda a acepção da palavra. Com efeito o que estava à vista, como refere objectivamente o relatório técnico do LNEC de 1998 “resulta, em grande parte, de escavações arqueológicas extensivas, realizadas há cerca de três décadas, que puseram a descoberto vastas áreas que se encontravam soterradas sob escombros, muito provavelmente provenientes dos desmoronamentos sofridos pelo próprio monumento. Com as operações de escavação foram feitas algumas reconstruções em diversas áreas e que, hoje, são parte significativa da imagem que se tem do monumento”[5]. Resta acrescentar que aquele Relatório se refere ás escavações realizadas na década de 60 (entre 1962 e 1968), realizadas pelo conhecido arqueólogo Coronel Afonso do Paço e pelo médico local Joaquim Bação Leal, patrocinadas pela Fundação Calouste Gulbenkian como consta dos respectivos relatórios. Aqueles trabalhos trouxeram de facto à vista a parte que subsistia das ruínas de um edifício parcialmente alcantilado sobre um esporão rochoso sobranceiro ao Guadiana e que interpretaram então como sendo os restos de uma “fortificação” romana, de forma quadrangular, mas a que faltavam já as fachadas Norte e Nascente. Após a morte de Afonso do Paço em 1968, não seriam efectuados quaisquer outros trabalhos escavação ou conservação, até às escavações mais recentes promovidas pela EDIA no quadro do Plano de Minimização de Impactes Ambientais e Culturais de Alqueva a que estava legalmente obrigada pelo processo de AIA. Estes trabalhos vieram alterar bastante a visão daqueles autores, que já tinham sido contestadas por outros investigadores, mostrando que existiam outras estruturas arqueológicas na zona paralela ao rio, incluindo diversos enterramentos, e sugerindo que o sítio arqueológico da Lousa, mais do que funções militares teria constituído ou uma grande casa agrícola (villa) ou um entreposto de natureza comercial de época romana republicana.

Tendo em conta o exposto, tratar o impropriamente chamado “Castelo da Lousa”[6] como um imóvel arquitectónico, procurando assim estabelecer paralelos de situação patrimonial com “Castelos Medievais ou Modernos (como o Castelo de Noudar, por exemplo), independentemente do estado de conservação destes, ou com palácios ou casas históricas antigas (como é o caso da conhecida casa da “Sempre Noiva” ou da “Torre do Esporão”), não é apenas cientifica e tecnicamente incorrecto como juridicamente inadequado. Com efeito, nos termos do citado Art. 74º da Lei 107/2001, os vestígios, estruturas e outros indícios localizados no sítio do “Castelo da Lousa”, localizado na Herdade do Montinho resultam em exclusivo de “escavações e estudos arqueológicos” e como tal integram a categoria de “património arqueológico” o qual por sua vez está sujeito a um regime especial de protecção e valorização cultural que, a nosso ver, tem consequências decisivas sobre a determinação de um eventual valor comercial do bem em causa.


3. O sítio arqueológico do Castelo da Lousa, pode ter um valor de mercado ?

Desde que respeitados os princípios fundamentais da conservação e do restauro hoje universalmente adoptados com base na “Carta de Veneza” de 1964, a reutilização com adequação a novas funções, é muitas vezes apontado como uma solução de viabilizar económica e socialmente a recuperação e valorização dos bens imóveis do património arquitectónico. O programa das Pousadas Históricas levado a cabo há várias décadas pelo Estado e hoje replicado mesmo por privados, é um exemplo significativo. Pelo contrário, aos bens imóveis de natureza arqueológica, nomeadamente os classificados, está por definição e princípio vedada qualquer utilização ou intervenção que vá além da sua conservação, protecção ou eventual “musealização”[7]. A referida “Carta de Veneza” tão aberta às transformações e adaptações dos edifícios em função das novas exigências decorrentes da evolução dos usos e costumes, recomenda no que respeita ao património arqueológico que “toda a reconstrução deve ser excluída “a priori” e só a anastilose deve ser ensaiada, isto é, a recomposição de partes existentes desmembradas”.

Ainda que hoje, graças à evolução das mentalidades e da cultura, a classificação cultural de um imóvel arquitectónico, já não seja entendida exclusivamente como um “ónus”, no caso do património arqueológico a situação é claramente diferenciada. De tal modo que, embora a legislação (tanto a de 1932, como de 1986 ou a de 2001) seja muito clara sobre os deveres dos detentores de bens classificados, nomeadamente no que se refere ao dever de “conservar, cuidar e proteger devidamente o bem, de forma a assegurar a sua integridade e a evitar a sua perda, destruição ou deterioração” (alínea b) do Art.21º da Lei 107/2001), jamais passou ou passaria pela cabeça dos responsáveis pela salvaguarda do património arqueológico, ao nível da Administração Central ou Local, exigir a um particular que no caso de bens arqueológicos imóveis (ruínas arqueológicas), assegurasse os pesadíssimos encargos que qualquer intervenção arqueológica de conservação exige. Antes de mais por se reconhecer que da posse desses bens não resulta qualquer vantagem económica imediata para os proprietários; mas também, porque se depreende, que o seu interesse cultural, histórico ou científico é um interesse colectivo e como tal, dependente nos domínios do estudo e da salvaguarda da acção do Estado.


Face ao exposto, partindo do princípio que não existia a Barragem do Alqueva e que não tinham sido promovidos trabalhos de minimização de impactes pela EDIA, qual a viabilidade de os proprietários virem um dia a tirar dividendos da existência das ruínas do Castelo da Lousa nos seus terrenos?


Nos termos da lei, está sempre em aberto o direito de os proprietários requererem a respectiva expropriação (nos termos da alínea c) do Artº 50 da Lei 107/2001), mas nesse caso, o respectivo valor indemnizatório terá que ser encontrado tendo em conta as condicionantes e limitações que acima referimos. Em todo o caso, nada impede que os proprietários promovam a respectiva exploração turística, desde que cumpridas todas as condicionantes técnicas e jurídicas, o que como também já referimos, não é simples dada a especificidade e as limitações deste tipo de património. Para isso teriam de assumir a responsabilidade de contratar uma equipa de arqueologia tecnica e cientificamente idónea para, no quadro de um projecto de valorização previamente aprovado pelo IPPAR, ser autorizada a realizar trabalhos arqueológicos de escavação, conservação e valorização no sítio arqueológico. Ainda que não seja fácil estimar os custos de uma intervenção dessa natureza, os montantes dispendidos pela EDIA (cerca de 800 000 €) dão uma perspectiva objectiva dos custos que um tal projecto poderia assumir. Tendo em conta que o principal retorno de um tal investimento resultaria da venda de bilhetes a potenciais visitantes (e de algum mershandising associado) é fácil concluir, numa perspectiva meramente economicista, que um tal investimento não parece afinal ser aliciante. A título comparativo referimos que a GRUTA DO ESCOURAL, monumento único em Portugal no seu género (com arte paleolítica), bem sinalizado a partir da A6, localizado junto a uma Estrada Nacional nas proximidades de Évora (cidade inscrita na Lista do Património Mundial da UNESCO) atrai cerca de 8 000 visitantes anuais, parte dos quais estudantes.





[1] No âmbito do Alqueva, foram realizadas escavações em vários outros sítios arqueológicos com este topónimo. Só para citar os mais interessantes: “Outeiro do Castelinho”, villa romana da margem do Lucefecit; “Castelo das Juntas”, povoado da Idade do Ferro, junto ao Alcarrache; ou ainda “Castillo de Cuncos”, povoado medieval, já em território espanhol;
[2] Vale a pena recordar a este propósito que o nº2 do Artº 44 da Lei 20985 de 1932, prevendo a hipótese do proprietário de um bem imóvel classificado não possuir meios para pagar as obras de conservação consideradas inadiáveis, poderia o Estado isentá-lo do pagamento, ficando nesse caso “onerada” a propriedade em favor do Estado na proporção da despesa feita. Na actual legislação, Art.76º da Lei 107/2001 prevê-se apenas a execução coerciva nos termos da legislação em vigor.
[3] Entre outros, o Decreto 20 985 de 7 de Março de 1932, Artº 48, o Decreto 21 117 de 18 de Abril de 1932, ou mais recentemente, o Capítulo IV da Lei 13/85 de 6 de Julho
[4] Ratificada por Portugal através da Resolução da Assembleia da República 71/97, de 9 de Outubro.

[5] RODRIGUES, D. Parecer sobre o estado de conservação do Castelo da Lousa e medidas para a sua preservação. Relatório 5/98- GERO, LNEC, 1998, pg 3

[6] Como já referimos o topónimo “Castelo” ou “Castelos”, é muito comum no Alentejo,  e especificamente nesta região, referindo-se a locais elevados, associados ou não a vestígios arqueológicos observáveis à superfície do terreno.
[7] O Artigo 75º da Lei de Bases (107/2001) reconhecendo a impossibilidade de proteger todos os bens arqueológicos, refere no seu nº 1, que “Aos bens arqueológicos será desde logo aplicável, nos termos da lei, o princípio da conservação pelo registo científico”, ou seja através da escavação e estudo que se torna obrigatória no caso de impacte negativo de uma obra, por exemplo.

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