quinta-feira, 14 de abril de 2016


As ossadas da Inquisição de Évora

Um dos esqueletos recolhidos no Pátio da Inquisição (Fonte: jornal Público)

Como arqueólogo no trabalho de campo mais ligado à Pré-história, raramente tive de lidar com restos humanos osteológicos, pelo menos de forma mais ostensiva. Os tempos longos e a acidez de muitos terrenos geológicos, encarregam-se de fazer desaparecer grande parte da matéria orgânica, restando muitas vezes como vestígios antropológicos físicos apenas pequenas esquírolas ou, na melhor das hipóteses, alguns dentes. Nada de impressionante, mesmo para os mais sensíveis. E mesmo quando, com os colegas da Universidade de Liége, retomámos as investigações na Gruta do Escoural, extensamente usada no Neolítico como necrópole (ainda que mais como ossuário do que cemitério), os testemunhos remanescentes “in situ” das antigas escavações de Farinha dos Santos onde fizemos novas sondagens e recolhas  pontuais, apresentavam apenas fragmentos de alguns ossos  em desconexão anatómica e envolvidos em espessa ganga calcítica, o que lhes conferia um ar pouco ou mesmo nada tétrico.

Apesar desta experiência “antropológica” limitada, tive oportunidade ao longo da minha carreira de acompanhar dezenas de escavações, um pouco por todo o país mas especialmente no Alentejo, onde foi necessário lidar com a presença de enterramentos humanos de todas as épocas, das mais antigas às mais recentes. Tive até a possibilidade de, na qualidade de responsável do Serviço Regional de Arqueologia do Sul (1988-1990), contribuir de algum modo, para a evolução das práticas até então correntes na escavação de vestígios antropológicos, graças à colaboração então conseguida em Évora com uma “antropóloga física”, a Teresa Matos Fernandes, natural de Évora e, neste domínio, juntamente com a sua colega e actual Professora Catedrática de Coimbra, Eugénia Cunha, uma das introdutoras em Portugal das modernas práticas metodológicas. De facto a escavação de restos humanos até à publicação do regulamento de trabalhos arqueológicos de 1999 (já sob a influência do Instituto Português de Arqueologia, IPA) não obedecia a condicionalismos especiais. O arqueólogo escavava, registava e interpretava o melhor que podia e sabia os vestígios osteológicos e, na melhor das hipóteses, o antropólogo se disponível, procuraria em gabinete retirar as conclusões possíveis… O Regulamento de trabalhos arqueológicos, revisto em 1999, mais uma das heranças positivas do efémero IPA, veio finalmente determinar através do seu artigo 8º que a escavação de restos humanos fosse assegurada por especialistas (antropólogos físicos) na altura já mais numerosos, graças à escola antropológica da Universidade de Coimbra. 

Esse mesmo artigo introduzia, no entanto, uma outra nuance inesperada. Determinava que a escavação de “cemitérios históricos” ficava dependente da concordância das autoridades responsáveis… Mesmo com alguma imprecisão de conceitos, a lei portuguesa vinha pela primeira vez colocar algumas objecções a uma certa “ligeireza” com que a arqueologia portuguesa costuma(va) lidar com os “restos humanos”, tratando-os como simples artefactos ou fontes de informação arqueológica. Tal atitude, no entanto, parece estar associada a alguma aparente insensibilidade da nossa própria cultura, face ao destino dos restos mortais dos nossos antepassados, pelo menos passada a relação directa de proximidade geracional com o defunto. Ao contrário do que acontece com outras culturas, onde o “respeito” pelos restos humanos, seja qual for a sua antiguidade e até origem, é uma regra quase “fundamentalista”. Veja-se o que ainda hoje acontece em Israel onde os judeus ortodoxos se opõem, por vezes violentamente,  a toda e qualquer escavação de cariz antropológico ou os movimentos indígenas nos USA, exigindo o retorno a território sagrado, de “colecções” antropológicas há décadas depositadas em Museus. Na arqueologia portuguesa, porém, esse é quase um não assunto ainda que aqui ou ali possa aparecer alguma excepção. Recordo um facto ocorrido nos anos 80 com o meu colega José Beleza Moreira, responsável pelo Serviço Regional de ARqueologia do Centro que, na falta de meios para uma análise e estudo antropológico mais aprofundado, após a escavação das ruínas de uma capela medieval na zona do Mogadouro, se viu compelido a entregar ao Pároco local, a pedido deste, os restos osteológicos recolhidos, para que se procedesse ao respectivo funeral no cemitério actual, o que viria a acontecer com todo o ritualismo canónico. Contraditoriamente, na mesma época e ainda durante alguns anos, enquanto não foi introduzida maior exigência ao nível do acompanhamento arqueológico de muitas obras, era normal observar no meio do entulhos dos trabalhos de infra-estruturas urbanas, em particular quando estas passavam perto das igrejas ou conventos, caveiras e toda a espécie de ossadas humanas, sem que tal impressionasse os manobradores das escavadoras ou motivasse qualquer tipo de comoção religiosa ou social.

Vêm estas reflexões a propósito de um texto que, por mero acaso tomei recentemente conhecimento. Trata-se de um comentário publicado em 7 de Setembro do ano passado no BLOG “A viagem dos Argonautas” por Joaquim Palminha da Silva, um jornalista e historiador regional, há muito radicado em Évora e que infelizmente viria a falecer cerca de um mês depois. ver aqui

O malogrado jornalista reagia nesse derradeiro texto às notícias divulgadas por alguns jornais nacionais e pela própria televisão, que davam conta dos resultados de uma investigação antropológica, sobre um conjunto de vestígios osteológicos humanos recolhidos em escavações preventivas realizadas em 2007/2008 durante as obras levadas a cabo pela Fundação Eugénio de Almeida, no chamado Palácio da Inquisição, em plena acrópole eborense.  Certamente pela natureza da temática, a normal publicação de um artigo científico assinado entre outros, pela já citada antropóloga Teresa Matos Fernandes, hoje professora na Universidade de Évora, no “Journal of Anthropological Archaeology”, tinha atraído a curiosidade da comunicação social, incluindo as televisões, que se lhe referiram com algum destaque.  (ver aqui alguns exemplos:

O frontispício do artigo do Journal of Anthropological Archaeology

O artigo em causa, “The unburied prisoners from the jail of the Inquisition of Évora, Portugal”, apesar do título algo apelativo, procura interpretar com o rigor metodológico que se espera de qualquer trabalho de pesquisa científica, a documentação de natureza antropológica recolhida em diversas sondagens arqueológicas realizadas num logradouro do edifício da antiga inquisição de Évora, cenominado a partir de plantas da época, como “pátio de despejos da prisão” ou “lixeira”. Os investigadores, partindo do registo arqueológico e antropológico obtido em escavação e em laboratório, calculam o nº de indivíduos representados nas amostras escavadas, o sexo e idades aproximadas quando possível, e tentam perceber se a deposição dos respectivos restos mortais obedeceu a qualquer ritual ou tradição de natureza funerária, retirando daí as conclusões históricas possíveis. Naturalmente esta investigação, vinha acompanhada de circunstancias menos vulgares e daí a curiosidade da própria comunicação social. O envolvimento directo com as práticas da Inquisição, uma funesta instituição religiosa, ainda hoje altamente controversa, que teve precisamente em Évora o seu primeiro tribunal português (1536) e a possibilidade rara de cruzamento da informação arqueológica com os registos de arquivo da própria instituição, muito cuidadosa a identificar e documentar todos os indivíduos encarcerados.  Antes, no entanto, de abordarmos as questões levantadas pelo texto de Palminha da Silva, sintetizemos as principais conclusões deste estudo. Todos os dados disponíveis (antropológicos, arqueológicos e históricos) demonstram que foi negado qualquer tipo de ritual aos indivíduos cujos restos foram encontrados nos sectores escavados do pátio em causa. Estão em causa doze esqueletos completos e cerca de um milhar de ossos desarticulados que apontam no seu conjunto para um mínimo de mais 16 indivíduos, homens e mulheres, ainda que com maior percentagem destas. Pela posição em que foram encontrados os esqueletos, ainda em conexão anatómica, ficou demonstrado que estes foram lançados para este local como “lixo”, certamente como derradeira “punição para o corpo e sobretudo para a alma, para além da própria morte”, como destacam os autores. Estes concluem ainda, pelo cruzamento das várias fontes, que o pátio terá sido usado como lixeira entre 1568 e 1634. Depois de assinalarem que apenas uma pequena parte do fatídico pátio foi escavado, em função das necessidades da obra de recuperação do edifício da Fundação, terminam com uma proposta (que traduzimos do original em inglês) que, claramente, aponta para questões do domínio ético decorrentes de um posicionamento crítico perante os factos em presença: “Uma escavação mais alargada permitiria um melhor conhecimento deste período negro da História caracterizado por intolerância religiosa tanto em vida como após a própria morte. Mantendo viva a memória destas vítimas poderá ajudar a prevenir no futuro, réplicas destes actos ignóbeis.”

Certamente não conhecendo o trabalho original (pouco acessível e que só me chegou às mãos por deferência da própria Teresa Fernandes)  que questões veio Palminha da Silva levantar, a partir do que a comunicação social divulgou? Em primeiro lugar interroga-se sobre o eventual significado do longo período de silêncio entre a  descoberta (a escavação) e a sua revelação. Depois insurge-se contra o facto do artigo científico ter sido publicado numa revista estrangeira e em inglês. Continuando a questionar aquilo que considera como um estranho “pacto de silêncio”, Palminha da Silva interpela a Fundação Eugénio d’Almeida, proprietária actual do edifício, a Universidade de Évora, que enquadrou parte do estudo e a própria autarquia, pelo manto de silêncio que em sua opinião todos lançaram sobre o “macabro achado”.

Ressalvando alguma visão conspirativa que ressalta destas interrogações e que obviamente resultam do seu desconhecimento das práticas correntes em investigação arqueológica, (nomeadamente quando esta resulta de intervenções de natureza preventiva, como é o caso, muito exigentes em fase de “obra” mas infelizmente muito permissivas no que respeita aos prazos para tratamento e publicação dos resultados, quase sempre adiados “sine die”), interessa-nos aqui destacar sobretudo as suas considerações a propósito do “destino” que em sua opinião, devem merecer os restos humanos em causa. Dirigindo-se particularmente à autarquia, como entidade eleita representando a comunidade contemporânea, Palminha da Silva  vem afinal propôr que seja dado hoje a estes restos mortais, um tratamento humanista que vá para além do seu interesse documental e científico já demonstrado, propondo em última análise que a Câmara Municipal “garanta o abrigo e repouso dos restos mortais destes eborenses e alentejanos, avós dos nossos avós, em talhão próprio no cemitério municipal, requisitando para isso as ossadas à Fundação Eugénio de Almeida”.


E de facto, seja qual for o posicionamento religioso ou filosófico, a partir do qual a antropologia ou a arqueologia aborde a problemática dos despojos humanos que normalmente surgem nas nossas escavações, mesmo sem entrar em pressuposto ideológicos como os que decorrem do texto de Palminha da Silva, julgo que sempre lhes será devido um tratamento diferenciado, relativamente à generalidade dos artefactos com que lidamos. Essa, pelo menos é a minha posição sobre um tema que não é isento de polémica entre os próprios arqueólogos.

Pelo seu interesse como testemunho aqui transcrevo o texto de Palminha da Silva (1945-2015)

Palminha da Silva


Achado Arqueológico & insensibilidade humana
(Inquisição de Évora)
Um “achado arqueológico” acontecido em Évora nos anos 2007 e 2008 (?), durante escavações em propriedade da Fundação Eugénio de Almeida (FEA) situada na “acrópole” da cidade, depois estudado em pormenor no ano de 2013, só agora (Agosto de 2015!) veio a conhecimento público, aparentemente através de artigo na revista da especialidade em língua inglesa, Journal of Anthropological Archaeology, com a “assinatura” de três investigadores portugueses do «Centro de Investigação em Antropologia e Saúde da Universidade de Coimbra», que contaram com a colaboração do Departamento de Biologia da Universidade de Évora.
O dito “achado” é constituído pelos restos mortais de 12 adultos, lançados na lixeira do extinto palácio daInquisição de Évora, hoje Fórum da Fundação Eugénio de Almeida. Segundo os investigadores, trata-se das ossadas de pessoas de origem judaica, referentes aos anos de 1568/1634, e que nem sequer foram “julgadas” pelo então Tribunal do Santo Ofício. A estes restos mortais somam-se perto de mil ossadas de mais de 16 pessoas.
A existência da prisão por simples denúncia, torturas, sofrimentos incalculáveis e morte em fogueira ateada em espaço público na cidade, no período compreendido entre 1542 e 1781, de inúmeras vítimas da intolerância religiosa levada a cabo pelo Tribunal do Santo Ofício de Évora, bem como a eventual existência de soterrados restos mortais destes desgraçados penitentes, não são um “assunto” privado de uns quantos investigadores, provavelmente em busca de itens curriculares, nem tão pouco uma questão que apenas diz respeito à FEA, seus imóveis e espaços a céu aberto.
O espírito humanista, bem como a opinião pública avisada eborense obrigam-me a colocar as questões que a seguir se expõem.
Parto do princípio de que as escavações arqueológicas em espaço privado da FEA, só devem ter sido possíveis com o consentimento da prestigiada instituição.
1) -Nesta ordem de ideias, não se percebe porque existiu um silêncio de perto de sete anos sobre o “achado”? Que se pretendeu acautelar?
2) – Os investigadores de Coimbra entendem que, publicações da sua especialidade e cientificamente fiáveis, só as estrangeiras, isto é, as anglo-saxónicas, pois as nacionais parecem-lhes talvez patuscas, sonolentas, incapazes de servir as grandes revelações arqueológicas do seu génio?
3– Naturalmente acompanhado por uma discrição inusitada da FEA, a que se fica a dever também o silêncio conivente sobre o “achado” arqueológico, por parte da Universidade de Évora?
4 – A que tipo de ignorância cultural e humanista se fica a dever o silêncio e, portanto, ausência de opinião da Câmara Municipal de Évora (CME), instituição do poder local democrático, sobre este macabro “achado”? Sobretudo, no que se refere ao respeito e dignidade que devemos aos restos mortais de pessoas que foram vítimas da intolerância e da criminalidade anti-cristã da Inquisição de Évora? Que tipo de desmemória é esta, precisamente quando a CME é gerida por membros de um partido político que, historicamente, conheceu as perseguições, a prisão, a tortura física e a morte, apenas por ter opinião política contrária ao regime da ditadura salazarista?
Que haverá de indiscutíveis novidades históricas a sacar aos restos mortais dos “justiçados” da Inquisição de Évora que, pela documentação existente e várias investigações publicadas (entre as quais sublinho a de António Borges Coelho), não sejam já conhecidas?!
Para que submeter a novos «tratos de polé» os restos mortais de pessoas martirizadas há uns quantos séculos?! Não têm o direito de descansar em paz? Porquê? – Porque eram supostamente judeus e, por isso, a “ciência” histórica deve ignorar o humaníssimo respeito pelos mortos, capitulando face às exigências da arqueologia, da antropologia e não sei mais quantas habilidades académicas?! – Os nazis alemães não justificaram de modo muito diferente as suas experiências sobre os prisioneiros dos campos de concentração…
Não pode a CME garantir o abrigo e repouso dos restos mortais destes eborenses e alentejanos, avós dos nossos avós, em talhão próprio no cemitério municipal, requisitando para isso as ossadas à FEA?
No passado, a existência das comunidades judaicas entre nós, deram ocasião à nobreza, aos eclesiásticos e à populaça de Évora de acender uma fogueira por semana, espoliando os bens dos queimados… Hoje, os restos mortais dos mártires da Inquisição, servem para arredondar currículos e municiar noticiários…

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