segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Arqueologia e Nacionalismo em Portugal, uma história por fazer


Há alguns dias, o Gonçalo Pereira da Rosa (editor da National Geographic portuguesa) dava a conhecer no Facebook, uma página de 1942 do jornal salazarista ou integrista “Acção”, assinada por Dutra Faria (1910-1978), na qual o conhecido jornalista procurava comprovar a origem ibérica da saudação romana do baço erquido, adoptada como forma de saudação típica do fascismo e do nazismo e mais tarde assumida pelos movimentos congéneres peninsulares, Portugal incluído. O artigo (“A saudação romana não é romana é Ibérica- Braço ao alto”)  é uma peça interessante para um tema que, infelizmente, tem sido muito pouco explorado pela historiografia da arqueologia portuguesa. 



Quais as relações entre o regime político que vigorou em Portugal durante meio século e a arqueologia praticada em Portugal durante o mesmo período? O tema não é inóquo, bem pelo contrário, e basta pensarmos nas responsabilidades desta disciplina na construção ideológica do Fascismo Italiano ou do Nazismo alemão, para de imediato nos interrogarmos se, guardadas as devidas distâncias, terá havido algo parecido entre nós. Como, aliás parece parece depreender-se dos parágrafos iniciais do “nacionalista” Dutra Faria: “(…) ou fosse de origem predominantemente céltica e fadados para os descobrimentos, ou fossem de origem predominantemente ibérica e fadados sobretudo para conquistas, todos os povos peninsulares usavam então, parece, o mesmo escudo ibérico redondo, a mesma espada curta e a mesma saudação: o braço direito levantado.”

É verdade que, abordado sobre o assunto em causa ("a origem da saudação fascista"), o etnólogo (e arqueólogo) Luiz Chaves (apesar de perfeitamente alinhado com o regime) é cauteloso, refugiando-se na materialidade das poucas evidências disponíveis… De facto, há um aparente distanciamento entre as estruturas político-ideológicas do fascismo/corporativismo português e a Arqueologia sua contemporânea. Não apenas determinado pelo natural afastamento cronológico-temporal dos temas, mas também explicado por circunstancias muito específicas. A unidade cultural linguística em todo o território e a antiguidade e estabilidade das fronteiras mais antigas da Europa, não exigiam à arqueologia qualquer explicação adicional  (embora da citação do Dutra Faria, ressalte bem a necessidade de marcar distancias em relação aos "vizinhos conquistadores"…talvez face às faladas veleidades “iberistas” de Franco!). Por outro lado e apesar do peso da História na construção ideológica salazarista, esta parecia satisfazer-se na gesta da “reconquista cristã” do território aos mouros, pela espada e pela cruz, gesta de que os Descobrimentos seriam afinal uma continuidade messiânica, determinada desde o nascimento da nação. A realidade, no entanto, é sempre mais complexa do que a pintamos e basta pensarmos na importância que a escavação dos castros assume nalgumas épocas (com o apoio de campos de férias da Mocidade Portuguesa) para pressentirmos alguma exploração ideológica da figura de Viriato não restrita apenas aos livros de História do "pai Mattoso". Ou interrogarmo-nos porque é que a arqueologia medieval, nomeadamente islâmica, precisou do 25 de Abril, para aparecer à luz do dia? Por vezes as omissões são elas próprias “ideologia pura”.

Ora na sequencia do “post” de Gonçalo Pereira, alguém (julgo que Alexandre Monteiro) recordou um antigo artigo de Katina Lillios sobre esta problemática, a do papel ideológico da arqueologia portuguesa durante os 48 anos de salazarismo. A Katina, é uma arqueóloga americana actualmente professora na Universidade de Iowa, com origens familiares na Grécia e em Portugal, que tem desenvolvido investigação em Portugal há cera de três décadas.  Conhecia-a ainda nos anos 80 em Lisboa, por via das funções que ocupava então no IPPC e desde então cruzámo-nos ocasionalmente. Ao ver a referencia de Monteiro, recordei que ela me tinha a certo altura oferecido um texto, então ainda não editado, e que pelo seu título me despertara grande interesse “Nationalism and Copper Age Research in Portugal during the Salazar Regime (1932-74)", até porque tinha então como livro de cabeceira a obra de Bruce Trigger "A History of Archaeological Thought" de 1989". Procurei-o por entre os meus papéis e encontrei a respectiva cópia. Entretanto, graças à INTERNET verifiquei que uma versão revista do referido texto fora entretanto publicada em livro pela prestigiada Cambridge University Press “Nationalism, Politics and the Practice of Archaeology” (1995). (O artigo da Katina Lillios e a obra completa, encontram-se com facilidade na NET)

Uma espreitadela ao respectivo “índice”,  (onde colaborou também o próprio Trigger) pode dar uma ideia da importância destas coisas, muito longe da aparente inocência dos “cacos ou das pedras”…






O artigo de Katina tem limitações óbvias que a própria refere, como a excessiva estreiteza do tema arqueológico abordado “Idade do Cobre” ou a falta de um maior aprofundamento das relações com o "regime", dos arqueólogos em causa no seu ensaio, Afonso do Paço e Eduardo Jalhay, um Coronel e um Padre Jesuíta. Mas vale sobretudo pela ousadia e pelo inedetismo da abordagem, a milhas da laudatória necrológica que caracteriza a habitual "arqueo-historiografia" nacional, o que terá sido facilitado por uma mistura atípica de "distanciamento" circunstancial da autora em relação ao meio paroquial com uma certa dose de ingenuidade juvenil (julgo que a ligação de Katina à arqueologia portuguesa vem desde os seus tempos de estudante). Aliás, não me admiraria, embora sem dados para o afirmar, que Katina Illios tenha conhecido dificuldades para trabalhar em Portugal, por causa deste artigo. Afinal, muitos dos que faziam arqueologia a quando do 25 de Abril, tinham começado antes (não me excluo do lote, ainda que como mero "estudante") e as “teias de relações” já existentes haveriam de manter-se durante muito tempo. Ainda hoje, com raras e honrosas excepções, quando se faz a “história” da arqueologia portuguesa do Século XX, as fidelidades das relações humanas ou outras, parecem sobrepor-se ao julgamento distanciado da procura da “verdade”… 

Em todo o caso, o corajoso artigo de Katina Illios sugere a eventual exploração de outros temas, alguns mais próximos, até porque a citação de vários artigos de jornais, para isso aponta. Espero que o Gonçalo Pereira da Rosa, na sua incansável releitura da imprensa do Século XX, nos encontre e faça chegar mais algum "tesourinho" esquecido nos arquivos.

(Apenas uma interrogação. a que "Miguel Martins" se refere Katina Lillios nos agradecimentos..."I especially wish to thank Miguel Martins for sharing with me much obscure and unpublished bibliographic material" ?)


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