quinta-feira, 14 de setembro de 2017

A propósito de Neanderthais
Um filme, uma reportagem, memórias de adolescente...

Edição de 1963, a mesma que li e reli no antigo colégio dos Jesuítas de Santarém (Editorial Verbo, Biblioteca da Juventude), traduzido do origial francês de J.H. Rosny Aîné de 1911 


Há poucos dias, procurando novidades na NETFLIX, encontrei um filme que, por vários motivos, me captou a atenção: "ICEMAN" (não confundir com mais um "super-herói", "The Iceman"...). Quer o título quer a curta sinopse (A prehistoric Neanderthal man found frozen in ice is revived by an arctic exploration team, who then attempt to use him for their own scientific means.) pareciam remeter para uma aventura ficcionada, inspirada eventualmente, no célebre "Homem de Otzi", a múmia pré-histórica congelada, descoberta há algumas décadas na fronteira alpina entre a Itália e a Àustria.

O livro sobre "O Homem no Gelo" (Otzi) do arqueólogo alemão Konrad Spindler, em catálogo publicitário de 1996 (a par de outras edições arqueológicas do mesmo ano...). Curiosamente, K.Spindler (1939-2005) que liderou as investigações sobre este caçador da Idade do Cobre (3500 aC), escavou em Portugal nos anos 70, nomeadamente a célebre sepultura da Idade do Bronze, da Roça do Cal do Meio, Sesimbra.


No entanto, conferida a ficha técnica de "ICEMAN", verifiquei que o respectivo argumento, pese embora algumas curiosas coincidências, nada devia à descoberta alpina, uma vez que esta se verificaria apenas em 1991 e o filme data de 1984. Aliás, no desenvolvimento do enredo e a quando da "descoberta de algo preso num glaciar ártico", a título comparativo e para dar alguma plausibilidade à história, os cientistas intervenientes citam as conhecidas descobertas de mamutes congelados nas tundras da Sibéria. O filme, que não recordo ter passado em Portugal, apresenta algumas caras conhecidas de Hollywood mas é nitidamente uma produção da série B, apesar de alguma preocupação com um mínimo de consistência científica, até no tratamento físico do "Neanderthal descongelado". Não saindo do "microcosmo" da estação ártica onde tudo acontece, o enredo concentra-se essencialmente nas dificuldades da "comunicação", o que tanto poderia aplicar-se a um indígena de uma tribo perdida como a um qualquer alienígena da ficção científica saída de Hollywood (ainda que neste caso todos pareçam já falar inglês...). Curiosamente, a visão do Neanderthal subjacente a "Iceman", aponta já para uma humanidade muito próxima da nossa, com pleno domínio da capacidade do raciocínio abstracto e simbólico (traz consigo vários amuletos) algo que só muito recentemente começou a ser comumente aceite pela comunidade científica. Aliás, o tema da mais que provável capacidade artística do Homem de Neanderthal está na ordem do dia e será até objecto de próximo colóquio em Itália.

Iceman_ filme de 1984

"Iceman"_ dificuldades de comunicação











































Por mero acaso, mal acabara de ver o filme, surge a interessante reportagem no Público (11 de Setembro) sobre o arqueólogo João Zilhão "Advogado dos Neanderthais", cujo Link se disponibiliza Ver aqui . Em anexo, deixamos também a transcrição da mesma reportagem divulgada pelo Alexandre Monteiro no ARCHPORT e que resolverá eventuais dificuldades de acesso ao SITE do "Público".

Sobre as recentes descobertas antropológicas das equipas de Zilhão no Almonda tive  oportunidade de me referir neste blog (http://pedrastalhas.blogspot.pt/2017/04/afinal-eles-andavam-por-ai-ha-400-000.html) e já nesse texto destacava o imenso contraste verificado no território português entre a riqueza do registo arqueológico e a magreza do respectivo registo antropológico. E se tal é verdadeiro praticamente para as muitas centenas de milhares anos da Pré-história Antiga, torna-se particularmente estranho no que respeita ao imenso vazio de restos físicos dos Neanderthais. De facto, os indícios da sua presença e actividade abundam por todo o território português, mas os seus vestígios físicos directos são muito escassos e reduzem-se a alguns dentes isolados, nem sempre de classificação inequívoca. Esta situação é tanto ou mais estranha quando parece certo que a extinção deste grupo humano tão característico, e ao qual nos ligam afinal tantas afinidades genéticas e culturais, se terá verificado na Península Ibérica há cerca de 30 000 anos. Naturalmente, a descoberta do esqueleto juvenil do Lapedo no Natal de 1998, levantando a questão da hibridação com os últimos Neanderthais há cerca de 25 000 anos, ou mais recentemente, a identificação do crânio da Aroeira com 400 000 anos, podem ser as primeiras peças locais de um imenso puzzle que sabemos nunca estar completo mas cujo sentido último tem estimulado a reflexão de antropólogos e arqueólogos e povoado a imaginação de romancistas e cineastas.

O  filme que valeu um Oscar a Jean Jacques Annaud em1981

De facto e sempre que me cruzo com este tipo de ficção, vem sempre à minha memória um romance que, muito antes de sonhar com Arqueologia ou com História, me entusiasmou de forma inexplicável quando tinha doze anos. Recordo as circunstancias (a biblioteca e a sala de leitura em causa, no antigo Seminário de Santarém, todo um novo mundo para quem não conhecia livros em casa) e os detalhes do enredo, o que só se pode explicar pelo profundo impacto que a leitura d'A Guerra do Fogo (J.H.Rosny Aîné, 1911, ed. portuguesa, Verbo, 1963) terá então provocado na minha imaginação de adolescente. E ainda que muito mais tarde, quando iniciava a carreira de arqueólogo no Museu Nacional de Arqueologia (1981), não tenha perdido a conhecida e belíssima adaptação cinematográfica de Jean-Jacques Annaud, é para o romance original que ainda remetem as minhas primeiras e mais profundas emoções. A participação com Luis Raposo, José Mateus, Francisco Sande Lemos e tantos outros (como o jovem Zilhão) na descoberta em 1977 das primeiras estruturas de combustão em Vilas Ruivas (Portas do Ródão) directamente relacionáveis com grupos de caçadores do Paleolítico Médio (muito provavelmente Neanderthais), vinha afinal dar algum contexto e plausibilidade à "saga" dos buscadores do fogo que havia povoado a minha imaginação adolescente...

PS_ a exploração das potencialidades romanescas da Pré-história surge ciclicamente, ainda que sem cultores no panorama nacional (com excepção do malogrado João Aguiar que na sequencia da exploração de temas históricos mais recentes, se aventurou pelo campo da Pré-história com "Lapedo, Uma criança no Vale", 2006, pouco antes da sua morte prematura). A autora norte-americana Jean M.Auel, conheceu um extraordinário e talvez inesperado sucesso, com a publicação do "O clã do urso das cavernas" (1980) tema que não mais largará até hoje, construindo uma das grandes sagas pré-históricas da moderna literatura de aventura. A sua obra foi também explorada por Hollywood, mas sem o mesmo sucesso, apesar (ou nem por isso) da presença da loura e curvilínea Daryl Hannah no papel de Ayala, (a filha das cavernas) em demasiado contraste com os seus pais adoptivos (Neanderthais). O filme apenas passou na televisão, mas os livros conheceram várias edições portuguesas. Recordo que no MNA discutíamos, nos idos de oitenta, a qualidade e o nível das fontes de informação arqueológica usadas pela autora.









A Notícia do Publico de 11 de Setembro de 2017 (transcrição de Alexandre Monteiro)

Visita guiada às grutas da nascente do Almonda com o advogado dos neandertais

São 500 mil anos de história em 70 metros de escarpa. Várias grutas
mostram com pontas de sílex, ossos queimados e ferramentas em pedra
que quem viveu na planície do Tejo sabia onde se refugiar. O
arqueólogo João Zilhão escava-as há 30 anos e vai continuar a fazê-lo.
Há ali trabalho para mais 200.

Publico, LUCINDA CANELAS 11 de setembro de 2017

Junto à água, virado para a entrada da grande Galeria da Cisterna,
João Zilhão vai apontando para a parede rochosa que tem à sua frente
enquanto enumera outras grutas: da Lapa dos Coelhos ali bem perto à do
Pinheiro, no topo da escarpa, passando pela dos Ursos, a da Oliveira
e, claro, a da Aroeira, que se converteu na estrela deste sítio
arqueológico quando, em 2014, ali foi encontrado um crânio com 400 mil
anos, o fóssil humano mais antigo descoberto em Portugal.

Todas fazem parte de um complexo sistema subterrâneo que tem hoje mais
de 12 quilómetros de galerias reconhecidas e que no passado terá sido
usado por diversas populações que viveram na região, quando aquele
território era, também em termos geológicos, bem diferente do que é
hoje, explica este arqueólogo de 60 anos, que ali começou a trabalhar
em 1987.

“Foram precisos 30 anos para que aparecesse um fóssil humano como este
no Almonda, que é rico em [vestígios de] fauna e indústria acheulense
[utensílios bifaces de pedra do Paleolítico Inferior]. É por isso que
digo sempre que aqui temos trabalho para mais 200 anos”, diz ao
PÚBLICO João Zilhão, enquanto sobe a encosta íngreme que conduz à
Gruta da Aroeira, onde um pequeno grupo de arqueólogos formado por um
português e quatro espanhóis (alguns catalães, farão questão de
corrigir mais tarde) está a trabalhar desde as primeiras horas do dia.
No laboratório de uma povoação próxima, outros colegas limpam,
restauram e inventariam as peças que vão saindo da escavação feita
apenas com o apoio da Câmara Municipal de Torres Novas. “A formação
faz-se no campo. É muito importante que os mais novos possam
participar em projectos assim.”

Nos últimos 15 anos este arqueólogo que já deu aulas em Portugal,
França e Inglaterra e que agora está ligado à Universidade de
Barcelona concentrou a sua investigação no período de transição do
Paleolítico Médio para o Superior, o que o levou a escavar no abrigo
do Lagar Velho (Leiria), onde identificou a sepultura de uma criança
com cerca de 25 mil anos que ficaria conhecida como o Menino do Lapedo
e cujo esqueleto apresenta características comuns aos neandertais e ao
homem moderno; no sítio de Pestera cu Oase, noutro sistema de
galerias, nos montes Cárpatos (Roménia), onde foram encontrados os
vestígios mais antigos de humanos modernos na Europa; na Cueva Antón,
na região de Múrcia (Espanha), onde conchas pintadas e perfuradas
indicam, defende Zilhão, que os últimos neandertais tinham um grau de
sofisticação que até então não lhes era reconhecido.

Os trabalhos neste complexo de grutas do Almonda, afluente do Tejo, em
sucessivas campanhas de Verão em que participaram muitos portugueses e
estrangeiros ao longo das últimas três décadas, também se inscrevem
nesta linha de investigação.

João Zilhão conta que o sítio do Lagar Velho – o local da Sepultura do
Lapedo – venha a ser escavado em 2018, ano em que o Museu Nacional de
Arqueologia (MNA), em Lisboa, deverá receber uma exposição sobre
evolução humana com base no espólio recolhido em escavações em que
participou, na maioria liderando a equipa. A Aroeira estará,
naturalmente, em grande destaque, mostrando, diz António Carvalho,
director do MNA, que “em Portugal se têm feito descobertas muito
significativas no âmbito da evolução humana” e que o debate à volta
dela mudou muito.

“Quando propusemos, a partir do Lapedo, que tinha havido uma mistura
[entre neandertais e homens modernos, a nossa espécie], um cruzamento,
a polémica foi grande – o debate era ‘hereges contra a ortodoxia’. E
agora essa miscigenação é que é a ortodoxia. O Lapedo – o contexto da
ocupação humana – ainda pode trazer muita coisa. Bem financiado, é um
projecto para mais cinco ou seis anos de trabalho”, garante Zilhão.

É precisamente na Sepultura do Lapedo que termina cronologicamente o
guião da exposição em que este professor e o MNA estão a trabalhar. Os
materiais já foram escolhidos – os do Lapedo estão em depósito no
museu há anos e nunca foram mostrados em Portugal –, mas não se sabe
ainda quando é que a exposição abre nem quanto tempo fica.

“Esta é uma oportunidade muito boa para o MNA abordar um tema
importantíssimo, ainda mais interessante para nós, porque se quer
mostrar coisas que saíram de escavações em Portugal envolvidas em
investigação científica de ponta. E não tendo o museu uma exposição
permanente, esta é também uma hipótese de mostrar peças fundamentais
que estão em reserva”, diz o director do MNA.

Para Zilhão, é a maneira de cumprir mais uma etapa do processo – a
partilha do espólio que resultou dos trabalhos e do conhecimento que
ele gerou com o público, provando que uma intervenção como a que foi
feita no Lagar Velho ou no Almonda não é só “pedra e ossos”: “Aqui [no
Almonda] não se trata só de evolução humana e geologia. Uma escavação
como esta vai da física atómica à filosofia e é isso que torna as
coisas interessantes.”

Arqueólogos de fato-macaco

Foi aos 14 anos que começou a explorar as grutas labirínticas do
Almonda com o liceu. Nessa altura eram precisas cinco horas de
autocarro para ligar Lisboa, onde vivia, a Torres Novas. Zilhão e os
colegas dormiam na Galeria da Cisterna, a mesma onde acabaram por
descobrir a entrada para uma outra gruta, a da Oliveira, que guardava,
viriam a saber mais tarde, fósseis e ferramentas de neandertais
datados de há 65 mil a 35 mil anos, o que contribuiu para a teoria de
que a Península Ibérica serviu de reduto para os últimos sobreviventes
desta espécie humana extinta.

A primeira das campanhas de escavação em que esteve envolvido no
Almonda aconteceria só em 1987, com amigos da Sociedade Torrejana de
Espeleologia e Arqueologia (STEA), e dela resultaram pontas de sílex
com 25 mil anos e restos humanos com cerca de 13 mil. Só dois anos
mais tarde dariam com a entrada da Oliveira, usada no tempo dos
neandertais (Paleolítico Médio, entre 50 a 100 mil anos): “Foi em
meados de Setembro, lá pela uma da manhã. Foi incrível.” Começaram a
escavá-lo no ano seguinte e só terminaram em 2012.

Quem hoje entra nesta gruta, que a um não-espeleólogo pode parecer
relativamente exígua, e percorre os passadiços metálicos apercebe-se
dos desafios que enfrenta quem ali trabalha: “Isto é só para
arqueólogos que estão habituados a fato-macaco”, diz João Zilhão.
“Aqui na rede do Almonda é preciso ser espeleólogo primeiro e só
depois arqueólogo. E não é só uma questão de destreza ou de segurança
– trata-se de compreender o ambiente em que se está a trabalhar, de
saber como se comporta a rocha ou a que se deve determinada formação
na parede.”

Pelo meio, no final da década de 1990, entraram em escavação as grutas
da Lapa dos Coelhos e da Aroeira. Na primeira, o português Francisco
Almeida e os que com ele escavaram identificaram um depósito do
Paleolítico Superior (35 mil a dez mil anos), com sílex, restos de
animais e peças em osso, entre elas anzóis. “A Lapa é muito
interessante porque nela está documentada a pesca de rio – sável,
barbo, truta…” Na segunda, a equipa do norte-americano Anthony E.
Marks, da Universidade Metodista de Dallas, localizou bifaces
(instrumentos pré-históricos em pedra, usados para cortar) e dois
dentes humanos.

Anthony Marks escavou cinco anos na Aroeira (1997-2002), mas deixou,
na opinião de Zilhão, espaço ao desenvolvimento da investigação: “Para
mim há um princípio fundamental na arqueologia de grutas – o trabalho
só acaba quando se chega à rocha que está na base. O Anthony preferiu
terminar antes e foi por isso que, depois de lhe ter dado tempo [dez
anos] de publicar o que ele tinha a publicar [sobre a Aroeira],
resolvi voltar lá.”

Em 2013 a equipa de Zilhão chegou à rocha de base e, no ano seguinte,
e porque antes aparecera um cantinho com ossos queimados, uma prova da
existência de fogo controlado que “era das mais antigas da Europa”,
resolveu dar continuidade à escavação: “Abrimos outros dois metros
para tentar saber mais sobre o uso do fogo e foi aí que apareceu o
crânio.”

Este crânio, assegura Zilhão, tem uma datação muito precisa porque o
manto de calcite da gruta assim o determinou. Expliquemos: “A calcite
aqui da Aroeira foi datada com o método de urânio-tório, que é muito
exacto porque tem um intervalo que é, no máximo, de 20 mil anos.
Datando o manto de calcite, sabemos que o que está por baixo é mais
antigo.”

Este fóssil, que se partiu no processo de escavação, foi reconstituído
e restaurado no laboratório da Universidade Complutense de Madrid, um
processo “muito complicado” que durou dois anos e contou com a
participação de Juan Luis Arsuaga, co-director das escavações na Serra
de Atapuerca, cenário de um importante sítio arqueológico que é
património mundial e onde foram encontrados fósseis semelhantes. “A
morfologia interna de um crânio com 400 mil anos não é igual à nossa.
O seu restauro exige muitas comparações e é muito demorado.”

Fogo domesticado

O crânio da Aroeira vem juntar-se ao chamado “debate das espécies” em
que Zilhão está envolvido há anos: “Estou sempre à espera que me
perguntem a que espécie pertence isto ou aquilo. Em relação a este
crânio, a resposta é muito simples – pertence à espécie humana, que é
a única que existe. Há 400 mil anos não há senão uma espécie humana,
mas mais diversa [do que hoje]. Porquê? Porque os humanos eram muito
menos e as suas populações viviam muito mais isoladas umas das outras.
A humanidade actual é que é anormalmente homogénea em comparação com a
heterogeneidade do passado.”

Diversos e capazes de domesticar o fogo: “Este crânio, datado com
precisão, mais os ossos de animais queimados que ali tínhamos
encontrado, ajuda-nos a dizer que, há 400 mil anos, já se usava o fogo
para cozinhar ou para aquecer.”

No entanto, lembra a revista Science que, entre os que mais criticam
as teorias de Zilhão e de outros colegas que o apoiam está o
antropólogo francês Jean-Jacques Hublin, que defende que as jóias dos
neandertais (conchas pintadas há 45-50 mil anos descobertas em
Espanha, por exemplo) resultam de um fenómeno de aculturação com o
homem moderno e que são muito menos sofisticadas. Hublin é da opinião
que se trata de espécies distintas que viveram separadas durante
centenas de milhares de anos – negar isto é, para este francês, negar
a própria teoria da evolução das espécies.

Já no topo da escarpa, junto à Gruta do Pinheiro, que serviu de covil
a hienas, João Zilhão explica que quem ocupava aquele território há
400 mil anos vivia na planície do Tejo, que se vê da encosta sul. Lá
caçaria cavalos, auroques e veados, usando as grutas onde os
arqueólogos têm vindo a trabalhar como refúgio, muito provavelmente no
Verão, já que na altura se atravessava um “período de sobreaquecimento
global”.

Até à visita do PÚBLICO, a campanha arqueológica de 2017 na Gruta da
Aroeira rendera já diversas ferramentas em pedra e fragmentos de
tartaruga, cavalo, veado e macaco. “Recuperámos uma mandíbula de
macaco”, diz Montserrat Sanz, uma catalã especializada em fauna,
chamando a atenção para a singularidade do achado no que toca à
Península Ibérica, antes de se juntar a Joan Daura, outros dos colegas
arqueólogos, para conversar sobre a importância do primeiro referendo
sobre a independência da Catalunha a 1 de Outubro, qualquer que seja o
resultado: “O referendo é já uma vitória. Se o resultado for
expressivo a favor da causa independentista, mesmo que ela não vença,
há coisas que terão de mudar.”

Joan e Montserrat estão habituados a esta rede de grutas da nascente
do Almonda que, explica João Zilhão, é como um bloco de apartamentos
em que cada janela nos permite olhar para uma época diferente do
território, acompanhando os que o escolheram para viver. “Temos aqui
documentados 500 mil anos de história e só agora começámos.” Entre a
nascente do rio, na galeria cuja entrada está hoje ao nível da água
que enche a represa junto à velha fábrica de papel (a da Cisterna), e
o topo do penhasco, onde fica a Gruta do Pinheiro, são cerca de 70
metros. “À medida que vamos subindo na escarpa recuamos no tempo [no
que diz respeito aos vestígios encontrados]. O rio nunca nasceu em
cascata lá de cima – os terraços que hoje temos foram criados pelo
tempo.”

É o facto de permitir o estudo de vários períodos ao mesmo tempo que
torna este sistema de galerias singular, defende o arqueólogo
português. “É uma situação única na Europa porque são jazidas de
épocas diferentes e permitem perceber como se explorou o mesmo lugar
em função da demografia, do clima, das tecnologias usadas.”

Um peso-pesado

O sistema de grutas do Almonda ainda tem muito para contar, mas para
isso é preciso que as equipas não deixem de trabalhar no local, o que
hoje só é possível porque alguns estão com bolsas de doutoramento da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, porque a câmara de Torres
Novas continua a apoiar o projecto e porque a Renova, empresa que é
dona da velha fábrica junto à nascente, fornece a electricidade.

“No âmbito universitário as coisas melhoraram muito nos últimos 15
anos, mas no que toca às instituições ligadas à cultura, o
desinvestimento e a falta de objectivos claros para esta área está a
dar cabo de tudo o que já se tinha conquistado a nível científico.”

Zilhão, que esteve na origem do Parque Arqueológico do Côa, hoje
património mundial, e do entretanto extinto Instituto Português de
Arqueologia, de que foi o primeiro director, não quer falar de
políticas culturais, mas diz que Portugal tem um potencial imenso que
continua a ser explorado graças a parcerias internacionais: “No
Almonda já tivemos pessoas de 20 nacionalidades a trabalhar. Acredito
que, se formos mais para oeste, para os lados da Lapa do Coelho,
encontraremos outras grutas onde será possível recuar mais de 400 mil
anos. Se temos bons problemas para resolver, as pessoas lá fora
interessam-se por eles e vêm.”

Isso acontece no Almonda, como acontecera já no Lagar Velho, que
fomentou um intenso debate internacional e que ajudaria a fazer de
Zilhão um peso-pesado – expressão que parece francamente deslocada
quando nos confrontamos com a sua figura esguia – na discussão sobre a
inteligência dos neandertais.

Zilhão está habituado à controvérsia. As suas posições geram, por
regra, opiniões extremadas e isso parece agradar-lhe. Se lhe
perguntamos o que sentiu quando em 2013 a sequenciação do genoma de um
neandertal que viveu há 50 mil anos deixou claro que as pessoas de
hoje não originárias de África têm entre 1% e 3% de ADN desta espécie
humana que surgiu na Europa e na Ásia há uns 400 mil anos e se
extinguiu há 28 mil, sorri: “Que os dois se tinham misturado era já
muito claro. A quantificação não é importante, até porque termos hoje
entre 1 e 3 ou 4% de ADN neandertal não nos deve levar a pensar que,
há 40 mil anos, a proporção era a mesma.”

E nada de olhar para os neandertais com a ideia pré-concebida de que
seriam, de alguma forma, inferiores, adverte este arqueólogo que
começou por estudar economia: “Há uma grande proximidade biológica e
cultural entre os neandertais e os humanos modernos. Porquê? Porque só
há uma espécie que evoluiu. Não houve uma competição entre várias
espécies coexistentes em que só uma sobreviveu.”

Hoje Zilhão é conhecido, pode ler-se no seu perfil publicado pela
revista Science, como “o mais feroz advogado dos neandertais”, por
defender, contra qualquer um, que não seriam inferiores aos humanos
modernos.

“Depois de provada a mistura, a hibridização, há ainda quem diga que
todas as conquistas dos neandertais são aprendizagens, aculturações
dos humanos modernos, que eles não inventaram nada e que eram
cognitivamente inferiores. É absurdo e prova que há mesmo quem tenha
um preconceito contra eles.”

A investigação há-de continuar a encarregar-se de demonstrar que, quem
pensa assim, está simplesmente errado, conclui João Zilhão. Ele
trabalha para isso.





















Sem comentários:

Enviar um comentário