domingo, 19 de fevereiro de 2017


A IGREJA DA ESTRELA (Moura)

A Igreja da Estrela, visitada por estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na "semana santa" de 1975. Ao centro o João Ludgero, à esquerda a Maria João Coutinho, admirando os frescos da abóbada, e o José Mateus, de costas.

Digitalizando antigos "slides", alguns já com grandes perdas de cromatismo para além de outras maleitas, encontrei há dias duas fotos, sem legenda ou data, do interior de uma igreja que me parecia familiar. Ampliando as imagens acabei por reconhecer nelas três colegas (O Zé Mateus, a Maria João Coutinho e o João Ludgero), o que me permitiu datar e localizar a situação retratada. Com efeito, aquelas fotos foram obtidas na Igreja da aldeia da Estrela, na semana santa de 1975, durante uma "expedição arqueológica" ao longo das margens do Guadiana, organizada pelo GEPP (Grupo de Estudos do Paleolítico Português) e na qual também participei. Esta actividade de campo, realizada numa velha viatura Land Rover da Faculdade de Letras ( http://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/02/os-land-rovers-nas-minhas-memorias.html), tinha sido proposta pelo José Morais Arnaud (enquanto professor da nova cadeira de "Práticas Arqueológicas") e tinha já como motivação implícita, a problemática dos previsíveis e inevitáveis impactes sobre o património cultural decorrentes da construção da Barragem do Alqueva. Com um projecto que vinha dos anos 50, este empreendimento era nesta época já objecto de trabalhos preliminares (ao nível das engenharias e sem qualquer Estudo de Impacto Ambiental, conceito legal que ainda não existia em Portugal), como pudemos confirmar ao passarmos no local previsto para futura implantação da Barragem, entre os Ratinhos (Moura) e os Pardieiros, do lado de Portel. Pessoalmente, esta "expedição estudantil" acabaria por ter consequências futuras que estava então longe de adivinhar. De facto, eram como que os preliminares de uma velha e persistente relação com a Arqueologia do Alentejo que, com o passar dos anos, acabaria por se tornar permanente e que, entre 1996 e 2002 se focaria exclusivamente no território afectado pela inundação do Alqueva e cujas circunstâncias eu explico na introdução ao primeiro volume das Memórias d'Odiana (Salvamento Arqueológico no Guadiana, EDIA, 1999). 

Mas regressemos à Estrela, no já distante ano de 1975. Após prospecções nos terraços da zona do Xerez, não muito longe de Monsaraz, e onde localizámos alguns sítios com abundantes materiais líticos de superfície, (nomeadamente o Xerez de Baixo, onde com Luís Raposo,  realizariamos algumas sondagens dois anos depois) havíamos atravessado para a margem esquerda, pela velha ponte de Mourão.  Já então a passagem na aldeia da Luz era obrigatória, dada a ameaça pendente de inundação que no entanto só viria a concretizar-se três décadas mais tarde. A vizinha aldeia da Estrela, no contexto do Alqueva, foi sempre uma espécie de "enteada". Mais pequena e já então com poucos habitantes, a circunstância de não estar directamente ameaçada pela subida das águas (hoje é uma estreita península), tirava-lhe importância e visibilidade, face à omnipresente e mediática situação da Luz. Nessa Páscoa de 75, a nossa passagem prendia-se com a necessidade de chegar às margens do Guadiana, cujo perímetro inundável procurávamos explorar, tanto quanto possível. Dessa ocasional visita à Estrela recordo, apesar de tudo, uma aldeia com mais gente do que ali viria a encontrar vinte anos depois e que pelas razões do calendário religioso se concentrava naquele dia na envolvente da Igreja. Nesta, como se comprova pelo aparato dos andores observado na foto, tudo estaria preparado para a procissão do Senhor dos Passos que, no entanto, não se iria realizar por falta de Padre. O assunto era alvo de animadas conversas de rua, mas já não garanto que a falta do Padre resultasse de alguma circunstância fortuita ou se, pelo contrário, não seria um sinal dos tempos revolucionários que então atravessavam as planícies alentejanas, como parecia decorrer de alguns comentários menos ortodoxos, do género, "temos a nossa crença, não precisamos do padre para nada..."

O altar mor da Igreja da Estrela, em 1975

Só voltaria à Estrela duas décadas depois, quando as circunstâncias da vida determinaram que eu viria a coordenar os trabalhos de salvaguarda patrimonial e arqueológica a empreender no Alqueva, após a retoma das respectivas obras em 1996. A partir do escritório da EDIA em Mourão, tive então oportunidade de visitar frequentemente a Estrela. Apesar da aldeia não ser directamente afectada, a sua localização entre o Guadiana e a Ribeira do Alcarrache, colocava boa parte do seu território no centro do futuro lago, implicando a inundação de diversos sítios arqueológicos, com destaque para o povoado proto-histórico do Castelo das Juntas, identificado nos anos 30 pelo arqueólogo de Moura, Fragoso de Lima. Curiosamente, os seus já reduzidos habitantes, sentiam alguma "inveja" dos vizinhos da Luz, alvo de toda a atenção e futuros beneficiários de uma aldeia totalmente nova. De tal modo que, quando se colocou a hipótese de, com algumas terraplanagens, se precaver a remota hipótese das águas da Barragem poderem vir a atingir a soleira do cemitério local, os habitantes da Estrela (à imagem e semelhança do que se passou na Luz mas nesse caso por razões objectivas) viriam a exigir a trasladação dos seus mortos para um "cemitério novo"... Foi também num contexto de compensação da pequena aldeia da Estrela que eu viria a propor em 1997, uma intervenção de recuperação da própria Igreja da Estrela, imóvel que apesar do seu cariz rural, apresentava uma riqueza inesperada ao nível da pintura mural.

Contactados os meus colegas da então Direção Regional de Évora do IPPAR, a Igreja da Estrela seria objecto de um relatório preliminar assinado pela Margarida Botto, reconhecendo a importância artística da respectiva decoração mural e a necessidade da sua salvaguarda. Desse relatório, aliás, resultou a abertura do processo de classificação, processo que como é demasiado comum, só se completaria quinze anos depois, com a publicação da respectiva Portaria 213/2013 no Diário da República.
A Igreja da Estrela em 1997
















Felizmente, porém, a EDIA não esperou pela classificação para actuar. Nesse mesmo ano de 97, seria encomendado um primeiro diagnóstico sobre a situação da pintura à empresa Mural da História, empresa que nessa altura se ocupava também do estudo (e posterior destaque) da pintura existente na Igreja da Luz (de muito menor qualidade que a da Estrela). Esse estudo, no entanto, apontaria para a necessidade de previamente a qualquer actuação sobre os revestimentos murais, se proceder à recuperação das coberturas da Igreja e à consolidação estrutural da abóbada, que apresentava evidentes e perigosas fissuras. Começava assim a preparar-se uma intervenção de maior fôlego, muito reclamada localmente, cujo arranque demoraria ainda algum tempo e que passou pela contratação de um projecto de recuperação ao Arquitecto Nuno Lopes  (2002) e pela realização da respectiva empreitada de recuperação estrutural já em 2006. A conservação das pinturas, porém, arrastar-se-ia no tempo. E apesar do apoio dado pela EDIA à execução do respectivo Caderno de Encargos, pela documentação que consultei entretanto, verifiquei que a respectiva concretização só viria acontecer em 2013. Tratou-se de uma iniciativa da própria população, através da Comissão Fabriqueira da Igreja, realizada com o apoio da autarquia, certamente graças à sensibilidade e ao interesse do Vereador e arqueólogo, o meu amigo Santiago Macias, hoje presidente da Câmara Municipal de Moura.


Novas pinturas descobertas durante a intervenção de restauro (2013), dando conta de um retábulo pintado na parede fundeira do altar-mor., solução a que as comunidadades mais pobres do Alentejo muitas vezes recorriam, na impossibilidade de encomendarem dispendiosos retábulos de talha e pintura de cavalete

A Igreja da Estrela, na actualidade, em foto do SITE da Câmara Municipal de Moura








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