sexta-feira, 29 de janeiro de 2016



Documentos para a história da nossa Arqueologia





Criado em 1997 pelo Ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho na sequencia do mediático e polémico processo em torno da salvaguarda das gravuras rupestres do Vale do Côa - que culminaria em final de 1995 com a suspensão da construção da Barragem do Côa, uma das primeiras decisões tomadas pelo Governo recém-eleito de António Guterres - o novo Instituto Português de Arqueologia, acabou por ter vida curta e atribulada. Ainda assim, a sua existência deixaria marcas profundas na Arqueologia portuguesa na transição do século XX para o século XXI e algumas das estruturas então criadas ainda persistem (ainda que algumas muito debilitadas) hoje integradas na DGPC (Direcção Geral do Património Cultural)  e influenciam no dia a dia, a prática da salvaguarda do património arqueológico em Portugal.

Referimo-nos em particular à Biblioteca e Arquivo, às base de dados informáticas ENDOVÉLICO, ao ex- CIPA (hoje intitulado Laboratório de Arqueociências - ver aqui um balanço da sua actividade)
ou mesmo às estruturas da arqueologia subaquática, ex-CNANS (Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática).

Em Maio de 2002, já no contexto do Governo PSD de Durão Barroso, surgiam os primeiros sinais de que poderia haver alterações significativas a nível das estruturas da Cultura. Ainda que definitivamente abandonada a construção da Barragem, havia no ar ainda algum ressabiamento relativamente às corajosas decisões de Guterres e a ideia original de construção de um Museu no próprio sítio da Barragem (o que inviabilizaria ad aeternum a Barragem) foi a primeira a cair. Mas as baterias estavam apontadas já ao IPA. Algum tempo depois, perante a confirmação da decisão, a direção do IPA (João Zilhão e Monge Soares) dimitir-se-ia e o IPA entraria num período de longa agonia, acabando formalmente por ser extinto no final de 2006, integrando-se os seus serviços na orgânica de um novo Instituto, o IGESPAR, por sua vez substituido em 2012 pela actual DGPC.

Na sequencia imediata  das notícias ameaçadoras sobre o IPA -a cuja primeira Comissão Instaladora, presidida pelo Vitor Oliveira Jorge, pertenci- reagi com um texto que julgo nunca conheceu a luz do dia. Reencontrado mais de uma década depois, aqui fica como testemunho pessoal de um período conturbado da pequena história da nossa arqueologia.


A morte anunciada de um instituto cultural ?


Ainda que falte a confirmação oficial, o destaque de primeira página dado pelo Expresso ao assunto (“Governo trava museu de Foz Côa”- 04/05/02) parece anunciar aquilo que, desde as últimas eleições, na modesta paróquia arqueológica uns já temiam, outros esperavam e, alguns, até desejavam. Atrás da revisão do processo do Museu do Côa, polémica já herdada da anterior gestão socialista e que o PSD, no respectivo programa eleitoral, prometia reapreciar, perfila-se agora também a extinção do Instituto Português de Arqueologia, classificado pelo Expresso como “outro emblema socialista”. Sobre esta questão, embora prevendo mexidas na área do Património, o programa do Governo era lacónico e vago quanto baste. Mas, face ao discurso sistemático da crise orçamental e, por consequência, da inevitável extinção de serviços e institutos públicos, que melhor “bombo da festa” se poderia encontrar? Antes de mais porque, ignorando ou esquecendo a importância das respectivas atribuições, não preenchidas por outros organismos, é fácil associar a sua criação (1997) a uma qualquer contrapartida pós-Côa ou cedência do Governo PS ao lobby(zinho) dos arqueólogos portugueses. Depois porque, sendo demasiado pública a proverbial guerrilha entre as diversas capelinhas arqueológicas, não será difícil encontrar apoios para amortecer ou explorar eventuais efeitos colaterais, nomeadamente os mediáticos, que tal decisão possa acarretar. Aliás, a forma como a notícia veio a lume (o Director do IPA, João Zilhão, confrontado com o teor da notícia do Expresso declarou ao “Público” de 05/05/02, que “não fora essa a posição que o Ministro da Cultura lhe comunicara, porque, caso contrário, já se teria demitido”) parece apenas o primeiro acto de uma estratégia cautelosa mas implacável.

Mas, esquecendo por um momento, a normal e saudável diferença de perspectivas culturais entre a direita e a esquerda que naturalmente pressupõem e fundamentam, mesmo nos domínios mais consensuais da salvaguarda e valorização do património histórico-cultural, políticas divergentes, vale a pena fazer uma pequena reflexão sobre o papel do IPA e as circunstâncias conjunturais que determinaram o seu aparecimento. Pese embora o tempo e o modo como surgiu, aquele Instituto visava preencher uma lacuna objectiva no quadro das responsabilidades que o Estado vinha assumindo desde o início dos anos 80 em matéria de salvaguarda, estudo e gestão dos recursos arqueológicos do território, entendidos como parte integrante do património identitário nacional. Curiosamente, deve-se a um Governo AD (1980, sendo Secretário de Estado da Cultura o Dr. Vasco Polido Valente), no quadro da criação do IPPC (Instituto Português do Património Cultural) o reconhecimento da especificidade territorial do património arqueológico, promovendo a criação de Serviços Regionais de Arqueologia. Num quadro global de interdisciplinaridade e de equilíbrio que a amplitude das atribuições do velho IPPC impunha (gerindo monumentos, museus, arquivos, sítios arqueológicos, etc...) podemos dizer que a Arqueologia, apesar dos meios sempre reduzidos, soube então por mérito próprio mas também por reconhecimento institucional, ganhar algum espaço na política patrimonial, facto que assume especial significado se tivermos em conta que à data do 25 de Abril de 1974, praticamente não existiam ainda arqueólogos profissionais em Portugal. Contraditoriamente, seria no quadro da progressiva fragmentação sectorial do IPPC, decorrente da importância crescente que as políticas patrimoniais assumiram ao longo da década de 80, que a “Arqueologia” começaria a perder terreno. Por um lado porque algumas das suas atribuições passam a ser diluídas pelos novos Institutos ou organismos (nomeadamente no que respeitava às questões museológicas, ao restauro ou mesmo ao inventário) por outro, porque de reestruturação em reestruturação, acabaria por ficar confinada ao papel de parente pobre no IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico) criado por Santana Lopes no início dos anos 90 e onde prontificavam, quer na estrutura hierárquica, quer na definição estratégica, os arquitectos e engenheiros civis, muitos deles tardiamente despertos para o “património”. Os Serviços Regionais de Arqueologia foram extintos e os respectivos arqueólogos integrados nas novas Direcções Regionais. Sem a definição de uma política própria, condicionados por uma gestão incompetente ou casuística, os arqueólogos da Administração Central, entraram praticamente em auto gestão, apesar do desenvolvimento e importância que a salvaguarda do património arqueológico, vinha assumindo de forma crescente na sociedade civil. Isso verificava-se em particular na multiplicação de cursos superiores, nas políticas culturais ao nível local e, finalmente, nas novas exigências de minimização de impactes patrimoniais, tornadas obrigatórias com a plena integração na Comunidade Económica que fizeram surgir as primeiras empresas privadas no sector. Quando surge a questão do Côa, num quadro de maior exigência legal no domínio da defesa integrada do património cultural e de crescente interesse da opinião pública por estas questões, a fragilidade técnica das estruturas arqueológicas da administração do Estado revelou-se por inteiro. Entre o arqueólogo funcionário que no campo descobrira as primeiras gravuras e o Governo a quem competia o cumprimento da legislação patrimonial aplicável, não havia praticamente ninguém (Directores Regionais, Directores de Serviços, Directores Gerais...) que tivesse a mínima ideia do que estava em jogo, com as consequências que se viram.

Portanto, mais do que um prémio ou uma cedência, o IPA visava criar condições para assegurar o cumprimento das obrigações ou responsabilidades que o Estado assumira, pela integração de princípios internacionais ou pela aprovação de legislação própria. Poder-se-ão, no entanto, colocar duas questões pertinentes. Não teria sido possível, ainda que com nova reestruturação do IPPAR, dar cumprimento a esses mesmos objectivos sem a criação de novos serviços, solução sempre onerosa porque inevitavelmente duplicadora de algumas estruturas? Terá o IPA, nestes 5 anos de existência, correspondido às expectativas então geradas?

No que à primeira questão se refere, a minha resposta não pode deixar de ser afirmativa. Com efeito, e pese embora o facto de ter pertencido à Comissão Instaladora do IPA, nunca escondi que teria visto com melhores olhos a reestruturação do IPPAR, valorizando uma perspectiva integradora da política de salvaguarda e gestão do património cultural imóvel embora precavendo, através de novos mecanismos estruturais, a autonomia própria do sector arqueológico em domínios específicos, como a arqueologia subaquática, o património rupestre e a arqueologia pré-histórica em geral, ou mesmo o inventário (Carta Arqueológica). Obedecendo a uma lógica que vinha já dos Governos de Cavaco Silva, de progressiva desintegração disciplinar, a criação de um novo organismo (que de facto constava do programa eleitoral do PS) acabou por fazer vencimento. No entanto, e entramos já na segunda questão enunciada, o figurino que prevaleceria, acabou por corresponder a uma situação algo híbrida que se viria a reflectir ao nível da capacidade de actuação do novo Instituto. Cedo se tinha verificado que, entre as expectativas da Comissão Instaladora (e nas quais eu próprio então me revia totalmente, porque uma vez assumida a decisão de criar um novo Instituto, este deveria herdar, não só as atribuições mas as próprias estruturas e meios do IPPAR, no domínio arqueológico) e a realidade dos equilíbrios da distribuição dos poderes dentro do novo Ministério da Cultura, ia um fosso intransponível. Embora não exclusivamente por estes motivos, a Comissão Instaladora acabaria por se dissolver, tendo vencido, mais por força das circunstâncias do que por convicção, a tese de um “mini-IPA” dividindo as suas naturais competências e atribuições com o todo poderoso IPPAR que apesar do novo parceiro, mantinha largas competências em matéria arqueológica e uma estrutura técnico-administrativa cada vez mais pesada. Mesmo assim, e apesar de alguma crescente conflitualidade entre ambas as instituições decorrente da duplicação ou sobreposição de funções, o IPA teve nestes anos um papel fundamental para o desenvolvimento de uma política consistente em matéria de prevenção e salvaguarda do património arqueológico português, nomeadamente no que respeita ao estreito acompanhamento das grandes obras públicas. É especialmente reconhecido por toda a classe arqueológica, o grande esforço efectuado ao nível da política da publicação científica, ou, apesar da escassez de financiamento, da cooperação científica entre a arqueologia e as diferentes disciplinas da paleo-ecologia. Por consequência, e seja qual for a decisão política que venha a ser tomada pelo novo Governo, descontadas as necessidades de alguma demagogia de discurso para consumo mais generalista, espera-se pelo menos alguma coerência de atitude. Das duas uma. Ou numa lógica meramente economicista neo-liberal, se entende que as atribuições do IPA são excedentárias e o Instituto é descartável, mas para isso o Governo terá de lançar borda fora toda uma série de legislação nacional, comunitária ou mesmo internacional (incluindo em especial a “Convenção Europeia para a protecção do Património Arqueológico”, assinada em nome do Governo da República Portuguesa em La Valetta, Malta, em Janeiro de 1992 pela Dra. Maria José Nogueira Pinto) ou, pelo contrário, mesmo insistindo na extinção do IPA, o Governo garante através dos meios mais adequados, o cumprimento integral das suas obrigações e responsabilidades nesta matéria. Recordo porém que, em múltiplos domínios, o Ministério da Cultura não apresenta actualmente alternativas efectivas para as funções cobertas, com maior ou menor eficácia, pelo Instituto cultural com morte agora anunciada. Significativamente, ou não, o primeiro com “nome” dos muitos que vêm sendo apregoados como necessários à salvação do equilíbrio orçamental.


António Carlos Silva- arqueólogo (vogal da Comissão Instaladora do IPA, em 1995/96)








 
Ainda que extinto desde finais de 2006, o IPA continuaria a funcionar os seus serviços técnicos essenciais, não só a nível das suas "extensões territoriais" mas também nas suas instalações da Avenida da Índia, num antigo edifício militar. Em 2008, porém, e perante a "revolta dos arqueólogos", seria finalmente despejado para se começar a construção do megalómano novo Museu dos Coches.

Sobre este assunto podem ver-se também:



Sem comentários:

Enviar um comentário