segunda-feira, 4 de junho de 2018

NOTÍCIAS DA TOUREGA, DE 1954

Um funcionário da Junta de Freguesia (actual União de Freguesias de Nª Sª da Tourega e Nª Sª de Guadalupe) sabendo do meu interesse pelas "coisas antigas", trouxe-me a fotocópia de um velho número do jornal A Defesa, mais concretamente do exemplar de sexta-feira, 7 de Maio de 1954. Jornal católico, propriedade da Arquidiocese de Évora, "A Defesa" ainda hoje existe mas como semanário. À época era um diário vespertino (havia outros diários em Évora, como a "Democracia do Sul, que no ano de 1963 acompanhou todos os incidentes relacionados com a descoberta da Gruta do Escoural) e a sua orientação ideológica estava bem expressa em frase destacada no respectivo frontispício "Dar Deus a Portugal, e Portugal a Deus". Era seu director nesta data o Cónego Dr. José Filipe Mendeiros", uma espécie de "alter ego" conservador de Mestre Túlio Espanca, personalidades que ainda acompanhei nos anos 80, na Comissão de Arte e Arqueologia do Município de Évora, então presidido pelo Dr. Abílio Fernandes. ( ver aqui )


Ora o que este número tem de particular, é que ele dedica as suas 8 páginas à Freguesia de Nossa Senhora da Tourega, por ocasião e a pretexto da visita da "Imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima" que aconteceria, segundo o programa então divulgado entre 9 e 16 de Maio desse "Ano Mariano" de 1954. Para além do seu interesse para a história e sociologia local, chamaram-me a atenção dois artigos que aproveito para transcrever, por maior facilidade de leitura e acesso a eventuais interessados. Um do já referido Túlio Espanca sob o título de "O Paço-Quinta e Convento de Bom Jesus de Valverde- Notas Histórico-Artísticas", um tema especialmente caro àquele historiador que a ele voltaria inúmeras vezes. O outro é um texto de José Fernandes Ventura, sob o título pouco sugestivo "Nossa Senhora de Fátima em terras de Nossa Senhora da Tourega", mas no qual se aborda também o passado pré-histórico e romano do território da freguesia. Fernandes Ventura era à época professor na Escola Agrária de Valverde (Mitra) e arqueólogo amador que ficou ligado à divulgação de alguns povoados pré-históricos da zona, como o Castelo do Giraldo (onde chegou a escavar com o Arqueólogo Afonso do Paço) ou a Corôa do Frade. O seu nome aparece ainda associado a algumas polémicas com outros arqueólogos, nomeadamente Farinha dos Santos por ocasião da descoberta da Gruta do Escoural, ou mesmo Henrique Leonor de Pina, a propósito da primazia no reconhecimento do interesse arqueológico dos Almendres (ver a esse propósito:
http://pedrastalhas.blogspot.com/2015/04/monfurado-mui-ignorada-serra-do-sul-de.html )

A seguir se transcrevem na íntegra, o texto de Túlio Espanca e, parcialmente, o de José Fernandes Ventura:


O PAÇO-QUINTA E CONVENTO DE BOM JESUS DE VALVERDE
Notas histórico-artísticas, por Túlio Espanca
(Diário "A Defesa", Évora)
7 de Maio de 1954

O paço-quinhentista de Valverde, instituído em terras arborizadas do vale do mesmo nome, na encosta da Provença de Montemuro e a par do agreste morro onde a tradição localiza o histórico CASTELO DO GIRALDO, o bravo conquistador da cidade, pertença da Mitra de Évora, teve como primeiros habitantes o bispo muito ilustre D. Afonso, II do nome, cardeal-infante, filho do rei D. Manuel, e a sua douta câmara, considerada em seu tempo, a fina flor do clero português.
Em 1544 o prelado sucessor e seu irmão. O Cardeal D. Henrique dotou aos Capuchos portugueses terras anexas ao paço gótico e concedeu amplas rendas para fundação de uma casa religiosa.
Construída logo após, verificou-se anos depois a insalubridade do sítio por prisão de águas pantanosas no verão, originando o finamento de vários monges e doenças sezonáticas noutros.
Apiedou-se o arcebispo D. Henrique das necessidades do convento e autorizou a transferência dos religiosos doentes para a cidade, na qual fundou segunda casa da Ordem, no cabeço fronteiro ao demolido convento do Carmo e a par do Aqueduto, ao qual se deu a designação de Santo António da Piedade (1576). Apesar da protecção e assistência dos antístites seguintes, a comunidade não teve a serenidade suficiente para suportar a desventura de tantas mortes e, no capítulo geral da Ordem celebrado em Coimbra em 1607, a consentimento de D. Alexandre de Bragança, abandonou-se a clausura do mosteiro e transferiu-se toda a habitação para a cidade.
Com a extinção do convento em Maio de 1834 embora quanto a fábrica de arquitectura não sofresse perda irreparável, o mesmo não aconteceu ao recheio cultural e artístico da antiga casa religiosa. A igreja foi profanada e as várias capelas da cerca, então recheadas de esculturas de barro policromado, de mestres de Estremoz e Évora, viram-se despojadas de tantas delicadas figurinhas saídas de anónimas mãos de coroplastas dos séculos XVII e XVIII e, infelizmente, na sua maioria destruída! O retábulo da igreja, um belo tríptico do CALVÁRIO, da escola de pintura portuguesa, datável de cª 1540, de tipo oficinal de Gregório Lopes, ao presente depositado no Museu Regional de Évora, esteve desmontado e prestes a ser reduzido a acha de fogueira, salvando-se da maneira mais providencial que se possa conceber.
Os restantes pertences do culto, na sua maioria delicadas peças da época do rei. D. Henrique, sofreram descaminho e ignora-se presentemente, os locais da sua existência.
                                                                      ***
Dois arquitectos eborenses dirigiram as obras do paço e mosteiro de Bom Jesus de Valverde, em 1538 e 1564, em datas respectivamente documentadas segundo elementos históricos da Biblioteca Pública de Évora. São eles Pero Anes, a quem se devem atribuir as construções góticas disseminadas pela quinta, e Manuel Pires, mestre das obras da Comarca e do cardeal-infante, que dirigiu, senão desenhou o belíssimo templete, nas mais puras linhas da Renascença.
O Dr. Reinaldo dos Santos inclina-se para um debuxo original do arquitecto Diogo de Torralva, mestre também da Casa Real e espírito mais integrado nas formas clássicas, que dirigiu a construção dos claustros monumentais dos conventos de Cristo e da Graça de Évora.
Este notável templo, de planta circular, é sobrepujado no corpo da rotunda por uma cúpula assente em colunas de mármore de Estremoz, da ordem toscana, com friso e arquitrave de desenho muito correcto, envolvido por quatro capelas semelhantes, sob lanternins de proporções quase miniaturais mas obedecendo às regras formais da arquitectura renascentista.
No extinto convento são curiosos os elementos de Arte: o corpo principal, de galeria de sete arcos de colonéis toscanos, de época do arcebispo D. Simão da Gama (1706); o claustrim clássico, de pilastras graníticas, de c.ª 1570, ricos azulejos de relevo do tipo árabe, quinhentistas e, na cerca, o vasto lago circular, decorado com figuras de mármore e tendo ao centro a estátua de MOISÉS, da 2ª metade do século XVIII; a sala da cisterna, gótica, coberta por um tecto de ogivas e outros pormenores coetâneos e mesmo manuelinos, dispersos pela quinta.
No antigo paço arquiepiscopal, de merecimento, subsistem a Casa do Despacho, com o seu frontão pintado a fresco e inúmeros restos quinhentistas, com destaque para a loggia de colunelos manuelinos e o curioso portal encimado por grelha de elos e calabres e rematado nos extremos por pitorescas torrinhas de secção cónica, tanto do apreço da primeira metade do séc. XVI em Évora.


NOSSA SENHORA DE FÁTIMA EM TERRAS DE NOSSA SENHORA DA TOUREGA

por José Fernandes Ventura
(Diário "A Defesa", Évora)
7 de Maio de 1954

(…) Conheceis a Tourega? É uma parcela do concelho de Évora, com a da Boa Fé, a que mais avança pelo Ocidente. Bastante variados são os aspectos da sua configuração orogénica. São aqui as lombas boleantes de pequenas elevações com azinhais de maior ou menor densidade; é além a campina chã, extensa, preponderante, com a moderna marca antropogeográfica da via férrea de Évora e da estrada das Alcáçovas; são acolá, a deslado, em plano mais baixo, as várzeas ribeirinhas prestes a desentranhar-se com a água da sua represa, em caudais de prosperidade; e o cavaleiro de toda a área é a Serra de Montemuro, pelos naturais também chamada de Monfurado, até há pouco escalvada e cinzenta e agora toda ela verde floresta num arremedo de revestimento florestal alpino ou de país do Norte europeu.
Há sítios que têm o condão de nos fazer romper o contacto com o presente para nos reconduzir ao passado e nos desvendar os segredos desse passado. A região da Tourega é um desses sítios privilegiados.
Ali encontramos sobrepostas camadas culturais diversas, níveis de civilização diferentes. Não há dúvida que pelo menos desde o alvorecer dos tempos neolíticos, ao trocar as actividades de caçador e pescador nómada pelas actividades agrícolas da vida sedentária, o homem arrastava a sua existência por estas paragens. É o homem da civilização dolménica, largamente documentada por grande número de construções sepulcrais: antas, antelas, arcas, orcas, mamoas…
Ainda adentro dos quadros da pré-história mas a níveis mais altos do que os da civilização megalítica, depara-se-nos a civilização castrense iniludivelmente representada pelo “Castelo do Giraldo”, castelo que do Giraldo apenas possui o nome, pois se trata de construção defensiva pré-giraldina, podendo mesmo com segurança afirmar-se ser pré-romana.
Representada e largamente representada se encontra a civilização que teve por berço o Lácio. Numa área de muitos hectares, tendo por centro a Matriz da freguesia, dificilmente o ferro da enxada ou do arado penetram no solo sem toparmos com seus vestígios. São restos de construções murais, tijolos, lateres e laterculi, telhas, tegulae e ímbrices, mosaicos policromos, mármores, tanques, possivelmente balneários, canalizações, opus signinum; etc…
Se não o cristófobo Daciano, outros qualificados da Roma imperial ali teriam assento.
Mundo de esplendores foi essa, que então se estendia desde a Síria à Lusitânia! Mas, minado na sua saúde social pela vermina de uma imoralidade escancarada, entrou com ele gangrena que o levou a enterrar.
Tout une splendeur évannuie, tout un monde enseveli, diria Gebhart.
E, na Tourega, soterrado e bem soterrado ficou aquele mundo, como se supremos desígnios decidissem apagar da superfície da terra a lembrança de tantas iniquidades a implantar em sua substituição um novo mundo, o Mundo Cristão.
Eu bem sei que a lenda e a história andam ali muito enlaçadas, sendo impossível averiguar o que a uma e a outra compete, mas também sei que o chamar-se ao governo de Diocleciano e Maximiano, a “era dos mártires” é afirmação de historicidade inconcussa. E assim, podemos admitir que muitos dos primitivos cristãos ali teriam pago com a vida a admirável constância na confissão da sua fé; ali está, contra a opinião de A. de Resende, a Cova dos Mártires; ali se vê borbulhar a FONTE Santa, sangue de Santa Anónima transformado em cristalina ninfa de notórias propriedades terapêuticas oculares; ali está, em ruinas, a capela de Santa Comba…
A dominar este cenário, ergue-se a igreja Matriz, que não exibe pergaminhos romanos, embora o aparelho de algumas pedras, incrustadas aqui e além, insinuem mais alta antiguidade do que a do actual traçado.
Sucessivamente dominados pelos Romanos, Germanos e Maometanos, duramente batidos pelos fluxos e refluxos alternados de Reconquista cristã, aqueles palmos de terra foram por certo teatro de grandes convulsões sociais. E deste modo é de admitir a reconstrução ou reconstruções do velho templo da Tourega.
Dos tempos medievo-feudais ficou ali também muita coisa: não na campina, na sede da freguesia, mas sim, no Valverde.
A vila romana, que sucedera à estação castreja, viu por sua vez suceder-lhe o couto eclesiástico, que foi a origem da ridente povoação de Valverde e é hoje cenário de gravidade da freguesia. Dos tempos medievais, ali nos falam os pórticos da Casa do Despacho e de outras edificações, os tectos artesoados da Casa da Água e da capela primitiva.
Da época áurea temos: o curioso templozinho de planta circular, com cinco cúpulas: uma central e quatro laterais; o conventinho do Bom Jesus de cujo risco arquitectural o Rei-Cardeal foi autor e do qual o autor da Évora Gloriosa havia de dizer que tinha tanto de limitado como de engraçado e lindo; a porta manuelina com motivos florais da primitiva ermida; o pórtico maior do pátio com sua grelha sobrepujante, qual renda delicada em argolas e calabres, com a franja em borla das torretas laterais; o Palácio dos Arcebispos com suas delicadas colunas de mármore, etc…
Nota particularmente interessante é a da rigorosa observância da regra por parte daquela colónia de monges Capuchos, instalada no conventinho imediatamente após a sua construção em 1544, e com a qual D. Henrique muito folgava em praticar.
Muitas foram as liberalidades do Cardeal e dos seus sucessores na Mitra eborense aos Capuchos de Valverde sem que, todavia, o rigor da disciplina desse mostra de relaxar-se. Porém, volvido meio século, a pestilência dos ares, as febres palustres entraram a matar e tal foi a carnificina que a Comunidade houve que abandonar o conventinho.
Era em 1607. Ocorreu então, segundo o testemunho de velhas crónicas, coisa de maravilha:
Durante a noite, por mão invisível, o sino tangia e ao dealbar, fosse de anjos ou fosse de religiosos defuntos, ouvia-se o salmodear das matinas. Nisto se viu desígnios do Alto em ordem a que os religiosos regressassem às suas celas. E, depois de convenientemente saneado o ambiente, após três anos de ausência, os frades voltaram, continuando a viver na mesma atmosfera rescendente de santidade. E daí o passar-se a dizer que no convento do Bom Jesus de Valverde ou os frades eram anjos ou os anjos eram os frades.
A história das terras da Nossa Senhora da Tourega continua continua, com seus altos e baixos, sombras e claridades, e, agora, mais despida da lenda, mais conhecida de todos nós.
Hoje, como diria o poeta, “os monges da serra já lá vão”, e, em sua substituição, aqui como em muitas partes, temos estudantes mais ou menos desatentos como convém à sua feliz idade das despreocupações. (…)