domingo, 2 de setembro de 2018


Uma nova vida para a Gruta do Escoural?


Após quase meio século de trabalho arqueológico, não é fácil cortar o cordão umbilical...

Assim este fim de semana resolvi fazer uma visita aos trabalhos que, persistentemente, o Rui Mataloto  teima continuar no Escoural, apesar dos meios escassos que vai conseguindo, até ver, exclusivamente da parte da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo.

As novas escavações em curso no "povoado exterior" do Escoural, promovidas e dirigidas por Rui Mataloto (2017/2018) com o apoio da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo. 

Com efeito, quando se aproximava a idade da reforma, entre outras preocupações que me ocorriam pelo inevitável afastamento profissional que tal circunstancia implicaria, avultavam naturalmente as interrogações sobre o futuro do conjunto arqueológico do Escoural. Trata-se de um sítio a que estou ligado há três décadas e cuja situação fui acompanhado em várias fases. Aliás, nos últimos anos de serviço, nomeadamente a partir de 2011, tive oportunidade de coordenar um ambicioso e complexo projecto de renovação das estruturas de visita que, nas suas linhas gerais, correu de acordo com os objectivos. As minhas preocupações, no entanto, tinham e têm razão para existir, dada a conhecida atrofia de meios humanos e financeiros que nos últimos anos têm praticamente reduzido os serviços regionais de cultura, a meras estruturas burocráticas esvaziadas de toda e qualquer capacidade de intervenção prática. Dois exemplos apenas no que se refere ao Escoural, um monumento nacional propriedade do Estado e afecto à responsabilidade da Direção Regional de Cultura do Alentejo: a falta de manutenção regular é já visível nas estruturas instaladas há meia dúzia de anos, em particular no que respeita à iluminação; por outro lado, as escavações promovidas por Rui Mataloto desde o ano passado (que, para além do interesse científico poderão contribuir para a valorização o de novas vertentes de interesse patrimonial do conjunto visitável) não têm qualquer apoio financeiro ou logístico da parte daquela entidade.

De qualquer modo, coincidindo com a minha aposentação (formalizada finalmente em 31 de Dezembro de 2017), um conjunto de circunstâncias positivas acabaria por amenizar os habituais sentimentos pessimistas que lhe estão normalmente associados e que, quase sempre, são um subproduto do peso dos anos. Desde logo, o interesse demonstrado pelo Laboratório HERCULES da Universidade de Évora, em experimentar na "arte rupestre do Escoural" alguns dos seus moderníssimos equipamentos e que acabaria por me proporcionar a colaboração numa derradeira comunicação científica, presente ao II Congresso da Associação de Arqueólogos Portugueses, que teve lugar no Outono de 2017.



Figura 2 (Artigo o II Congresso da AAP) – Exemplos de aplicação do DStretch a alguns motivos pictóricos do Escoural, incluindo a pintura inédita (a – cabeça de auroque vermelha) descoberta em 2011


Mas, seria na confirmação do interesse científico que o conjunto arqueológico do Escoural continuava a despertar em vários colegas, que residiria a minha maior esperança no futuro. E de facto nos últimos tempos, tinha sido contactado por vários colegas, de várias faculdades e instituições, manifestando interesse e vontade em desenvolver novas linhas de investigação relacionadas directa ou indirectamente com a Gruta do Escoural. Naturalmente, em todos os casos, o avanço dos projectos estava condicionado à confirmação de indispensáveis apoios financeiros, desde logo a obter através dos concursos da FCT.

Para além do projecto proposto pelo Rui Mataloto e que se foca preferencialmente no estudo do Povoado Calcolítico reconhecido sobre a Gruta e parcialmente escavado nos anos 80/90 por Mário Varela Gomes e Farinha dos Santos, surgiram propostas da Universidade do Algarve, sugerindo a retoma dos estudos junto da entrada dita "primitiva" onde se reconhecera uma importante ocupação do Paleolítico Médio no âmbito do projecto Luso/Belga, coordenado por mim e por Marcel Otte. Pretendem os colegas da Universidade do Algarve, avaliar o potencial do Escoural para o estudo da problemática da transição Neanderthal/Sapiens. Infelizmente o projecto não viria a ser selecionado para financiamento por parte da FCT, tal como aconteceria aliás com dois outros projectos universitários que também partiam da realidade do Escoural.

Ainda que quase exclusivamente com base no espólio antropológico conservado no Museu Nacional de Arqueologia, uma equipa da Faculdade de Letras de Lisboa, propunha-se realizar novos estudos sobre a população neolítica alentejana, tirando partido do numeroso conjunto osteológico recolhido nos anos 60 na Gruta do Escoural e na altura apenas objecto de estudo muito sumário.

Por fim, na sequência dos últimos estudos analíticos realizados em colaboração com o Laboratório HERCULES, uma equipa do Instituto Politécnico de Tomar e do Museu de Arte Pré-histórica de Mação, propunha-se retomar os estudos da arte rupestre do Escoural, realizando para tal e com recurso às novas tecnologias, um novo "corpus integral" dos motivos rupestres (gravura e pintura) da cavidade. Infelizmente, nenhum destes três projectos, seria selecionado pela FCT no seu último e arrastado concurso...

Resta-nos por ora (ainda que tenhamos esperança que os promotores dos projectos não financiados venham a insistir na sua futura aprovação pela FCT), a boa vontade e teimosia do Rui Mataloto e sua equipa para manterem a chama da investigação bem acesa no Escoural. É que, na minha modesta opinião, um sítio arqueológico que deixe de suscitar "curiosidade" aos arqueólogos, é um sítio condenado a muito curto prazo.

Filha e netas, a companhia de mais uma visita ao Escoural. Para a Raquel foi um regresso ao seu próprio passado. Há quase trinta anos, ainda adolescente, foi a diligente "ajudante" de iluminação da arqueóloga belga Marilise Lejeune, durante os trabalhos de desenho rupestre para o seu "corpus" da Arte Rupestre do Escoural, que apesar de desactualizado continua a ser o único disponível (editado em francês pela Universidade de Liége -ERAUL 65- e em português pelo IPPAR- Trabalhos de Arqueologia, nº8)

segunda-feira, 9 de julho de 2018

DER RÖMISCHE TEMPEL IN ÉVORA



Em Outubro de 2014, num dos primeiros posts deste blog, ver aqui se dava conta de visita a Évora de Theodor Haushild, o arqueólogo alemão, antigo director da extinta delegação de Lisboa do DAI (Instituto Arqueológico Alemão). Já então se anunciava para breve a publicação da monografia há muito esperada nos meios arqueológicos sobre o seu grande projecto de investigação sobre o Templo Romano de Évora, que implicou extensas e produtivas escavações na respectiva envolvente no final dos anos 80 e início dos anos 90. Realizadas com a colaboração do antigo Serviço Regional de Arqueologia do Sul e da Câmara Municipal, estas foram ainda iniciadas no tempo da direcção de Caetano Mello Beirão. Seria no entanto no período em que assumi funções naquele Serviço que aqueles trabalhos ganhariam maior expressão, com escavações em larga escala que puseram a descoberto parte dos "tanques" originais e do lajeado do "forum".

Vem tudo isto a propósito, porque no passado dia 26 de Junho, foi finalmente apresentada em Portugal a monografia Der Römische Tempel in Évora (Portugal), Bauaufnahme, Ausgrabung, wertung (O Templo Romano de Évora (Portugal), levantamento arquitectónico, escavação e classificação), no âmbito de uma conferencia organizada pela Direcção Regional de Cultura do Alentejo que abordou também os importantes trabalhos de conservação realizados neste monumento em 2017 e que oportunamente aqui destaquei: O templpo romano em obras

A obra agora apresentada (um grosso volume de 500 páginas, fora o "envelope" de plantas grande formato típico nas publicações do DAI, ) não sendo definitiva é, certamente, um marco fundamental no estudo e conhecimento deste monumento que detém uma posição de destaque excepcional, quer no perfil arquitectónico da cidade Património da Humanidade, quer no imaginário dos eborenses e de todos os que a visitam.

Por razões pessoais não pude aceder ao convite para estar presente no evento em causa, o que muito me penalizou pelo respeito e simpatia que há muito nutro por Theodor Haushild e Felix Teichner que co-assina a obra, dado a sua importante participação nas escavações e no estudo das cerâmicas. Aqui fica, por isso mesmo, este pequeno apontamento, lamentando apenas a minha ignorância do Alemão, o que me impede apreciar e tirar outro proveito do exemplar que, certamente por indicação dos autores, me foi oferecido pelo DAI. Naturalmente, e sei que isso já terá sido equacionado pelos serviços competentes, este é um caso em que a tradução para português se impõe, por todos os motivos.

Foto de Theodor Haushild no Templo de Évora que ilustra a obra agora editada

O frontispício da obra em causa

O retomar de um desenho do Professor e arquitecto Pedro Fialho de Sousa (professor de geometria descritiva e desenho na Faculdade de Arquitectura de Lisboa, falecido em 2008, e habitual colaborador nos trabalhos de T.Haushild em Évora, cidade de onde era natural). Pedro Fialho, como referi nalguns posts deste blog, foi um activo membro da Comissão Científica que acompanhou os trabalhos arqueológicos no Alqueva.


A proposta final de reconstituição de Haushild, retomando a "escadaria frontal" que a certa altura parecia não encaixar nos resultados das escavações (como se reflecte no desenho de Pedro Fialho de 1990.



segunda-feira, 2 de julho de 2018

OS ALMENDRES, de novo no PÚBLICO
1992-2018

Um quarto de século separa os dois "recortes" de página inteira do Público que aqui apresentamos. O mais antigo, de 15 de Setembro de 1992, é assinado pelo meu velho amigo, o professor liceal Marcial Rodrigues, então "correspondente" em Évora daquele ainda jovem diário; o segundo é da responsabilidade do jornalista profissional Carlos Dias. Curiosamente, enquanto o primeiro regista os primeiros esforços organizados ao nível da Câmara Municipal de Évora, no âmbito da divulgação e promoção do megalitismo local como factor de desenvolvimento turístico, o segundo avalia os impactos negativos sobre esse mesmo património, uma vez que o desejado incremento desse potencial, não foi acompanhado pelas medidas de gestão e salvaguarda que já então se assinalavam como indispensáveis. Em ambas as notícias quer nas imagens quer no conteúdo, todo o destaque vai naturalmente para o CROMELEQUE DOS ALMENDRES, verdadeiro ex-libris do Megalitismo Alentejano. Mas não deixa de ser sintomático que a medida já preconizada em 1992 pelo escultor João Cutileiro e referida no artigo de Marcial Rodrigues (criação de um parque de estacionamento afastado do monumento) só tenha sido concretizada 20 anos depois (2012).

Três pequenas notas apenas ao texto do Carlos Dias, uma peça que de forma impecável e irrepreensível, sintetiza toda a problemática para a qual temos tenho vindo a chamar a atenção, não apenas neste "blog" mas em todos os fóruns possíveis e imaginários (incluindo a  Assembleia da República, sem qualquer efeito, diga-se de passagem... ver aqui por exemplo).

Em primeiro lugar assinalamos com agrado que a informação que temos vindo a acumular quer neste blog quer no grupo do Facebook "Guadalupe em defesa do Cromeleque dos Almendres" , tem utilidade pública, como se comprova no trabalho do Carlos Dias.

Em segundo lugar, comentando as declarações transcritas de Carla Rufino (filha do proprietário dos Almendres, sr. José Rufino), recordar que o estradão de acesso já existia, talvez há séculos, e pela tradição regional de uso dos caminhos rurais, sempre fora uma serventia pública. O que a Câmara Municipal fez na década de oitenta (numa altura em que a Herdade dos Almendres se encontrava ainda intervencionada no âmbito da Reforma Agrária) foi proceder às custas do orçamento camarário, a extensas obras de melhoria do mesmo, entre Guadalupe e o monumento classificado (então Imóvel de Interesse Público, hoje Monumento Nacional). Essa estradão (apesar dos problemas de conservação que a autarquia vai resolvendo como pode) hoje serve não apenas os visitantes do Cromeleque mas os vários proprietários da zona, incluindo um empreendimento turístico hoteleiro, promovido por um conhecido apresentador de televisão.

Finalmente uma terceira e última ressalva, para a minha afirmação transcrita de que os "operadores turísticos utilizam o Cromeleque de borla"... Embora reconhecendo atitudes diversas da parte destes, desde os que se limitam a "despejar" os turistas no local, até aos que acompanham e ajudam de facto à descoberta do sítio, não posso deixar de aceitar o reparo de amigos que há muito se dedicam a essa legítima e útil actividade, recordando que eles próprios, com a sua presença regular, vão contribuindo para uma vigilância e atenção ao monumento que deveria estar assegurada pelas entidades competentes...





segunda-feira, 4 de junho de 2018

NOTÍCIAS DA TOUREGA, DE 1954

Um funcionário da Junta de Freguesia (actual União de Freguesias de Nª Sª da Tourega e Nª Sª de Guadalupe) sabendo do meu interesse pelas "coisas antigas", trouxe-me a fotocópia de um velho número do jornal A Defesa, mais concretamente do exemplar de sexta-feira, 7 de Maio de 1954. Jornal católico, propriedade da Arquidiocese de Évora, "A Defesa" ainda hoje existe mas como semanário. À época era um diário vespertino (havia outros diários em Évora, como a "Democracia do Sul, que no ano de 1963 acompanhou todos os incidentes relacionados com a descoberta da Gruta do Escoural) e a sua orientação ideológica estava bem expressa em frase destacada no respectivo frontispício "Dar Deus a Portugal, e Portugal a Deus". Era seu director nesta data o Cónego Dr. José Filipe Mendeiros", uma espécie de "alter ego" conservador de Mestre Túlio Espanca, personalidades que ainda acompanhei nos anos 80, na Comissão de Arte e Arqueologia do Município de Évora, então presidido pelo Dr. Abílio Fernandes. ( ver aqui )


Ora o que este número tem de particular, é que ele dedica as suas 8 páginas à Freguesia de Nossa Senhora da Tourega, por ocasião e a pretexto da visita da "Imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima" que aconteceria, segundo o programa então divulgado entre 9 e 16 de Maio desse "Ano Mariano" de 1954. Para além do seu interesse para a história e sociologia local, chamaram-me a atenção dois artigos que aproveito para transcrever, por maior facilidade de leitura e acesso a eventuais interessados. Um do já referido Túlio Espanca sob o título de "O Paço-Quinta e Convento de Bom Jesus de Valverde- Notas Histórico-Artísticas", um tema especialmente caro àquele historiador que a ele voltaria inúmeras vezes. O outro é um texto de José Fernandes Ventura, sob o título pouco sugestivo "Nossa Senhora de Fátima em terras de Nossa Senhora da Tourega", mas no qual se aborda também o passado pré-histórico e romano do território da freguesia. Fernandes Ventura era à época professor na Escola Agrária de Valverde (Mitra) e arqueólogo amador que ficou ligado à divulgação de alguns povoados pré-históricos da zona, como o Castelo do Giraldo (onde chegou a escavar com o Arqueólogo Afonso do Paço) ou a Corôa do Frade. O seu nome aparece ainda associado a algumas polémicas com outros arqueólogos, nomeadamente Farinha dos Santos por ocasião da descoberta da Gruta do Escoural, ou mesmo Henrique Leonor de Pina, a propósito da primazia no reconhecimento do interesse arqueológico dos Almendres (ver a esse propósito:
http://pedrastalhas.blogspot.com/2015/04/monfurado-mui-ignorada-serra-do-sul-de.html )

A seguir se transcrevem na íntegra, o texto de Túlio Espanca e, parcialmente, o de José Fernandes Ventura:


O PAÇO-QUINTA E CONVENTO DE BOM JESUS DE VALVERDE
Notas histórico-artísticas, por Túlio Espanca
(Diário "A Defesa", Évora)
7 de Maio de 1954

O paço-quinhentista de Valverde, instituído em terras arborizadas do vale do mesmo nome, na encosta da Provença de Montemuro e a par do agreste morro onde a tradição localiza o histórico CASTELO DO GIRALDO, o bravo conquistador da cidade, pertença da Mitra de Évora, teve como primeiros habitantes o bispo muito ilustre D. Afonso, II do nome, cardeal-infante, filho do rei D. Manuel, e a sua douta câmara, considerada em seu tempo, a fina flor do clero português.
Em 1544 o prelado sucessor e seu irmão. O Cardeal D. Henrique dotou aos Capuchos portugueses terras anexas ao paço gótico e concedeu amplas rendas para fundação de uma casa religiosa.
Construída logo após, verificou-se anos depois a insalubridade do sítio por prisão de águas pantanosas no verão, originando o finamento de vários monges e doenças sezonáticas noutros.
Apiedou-se o arcebispo D. Henrique das necessidades do convento e autorizou a transferência dos religiosos doentes para a cidade, na qual fundou segunda casa da Ordem, no cabeço fronteiro ao demolido convento do Carmo e a par do Aqueduto, ao qual se deu a designação de Santo António da Piedade (1576). Apesar da protecção e assistência dos antístites seguintes, a comunidade não teve a serenidade suficiente para suportar a desventura de tantas mortes e, no capítulo geral da Ordem celebrado em Coimbra em 1607, a consentimento de D. Alexandre de Bragança, abandonou-se a clausura do mosteiro e transferiu-se toda a habitação para a cidade.
Com a extinção do convento em Maio de 1834 embora quanto a fábrica de arquitectura não sofresse perda irreparável, o mesmo não aconteceu ao recheio cultural e artístico da antiga casa religiosa. A igreja foi profanada e as várias capelas da cerca, então recheadas de esculturas de barro policromado, de mestres de Estremoz e Évora, viram-se despojadas de tantas delicadas figurinhas saídas de anónimas mãos de coroplastas dos séculos XVII e XVIII e, infelizmente, na sua maioria destruída! O retábulo da igreja, um belo tríptico do CALVÁRIO, da escola de pintura portuguesa, datável de cª 1540, de tipo oficinal de Gregório Lopes, ao presente depositado no Museu Regional de Évora, esteve desmontado e prestes a ser reduzido a acha de fogueira, salvando-se da maneira mais providencial que se possa conceber.
Os restantes pertences do culto, na sua maioria delicadas peças da época do rei. D. Henrique, sofreram descaminho e ignora-se presentemente, os locais da sua existência.
                                                                      ***
Dois arquitectos eborenses dirigiram as obras do paço e mosteiro de Bom Jesus de Valverde, em 1538 e 1564, em datas respectivamente documentadas segundo elementos históricos da Biblioteca Pública de Évora. São eles Pero Anes, a quem se devem atribuir as construções góticas disseminadas pela quinta, e Manuel Pires, mestre das obras da Comarca e do cardeal-infante, que dirigiu, senão desenhou o belíssimo templete, nas mais puras linhas da Renascença.
O Dr. Reinaldo dos Santos inclina-se para um debuxo original do arquitecto Diogo de Torralva, mestre também da Casa Real e espírito mais integrado nas formas clássicas, que dirigiu a construção dos claustros monumentais dos conventos de Cristo e da Graça de Évora.
Este notável templo, de planta circular, é sobrepujado no corpo da rotunda por uma cúpula assente em colunas de mármore de Estremoz, da ordem toscana, com friso e arquitrave de desenho muito correcto, envolvido por quatro capelas semelhantes, sob lanternins de proporções quase miniaturais mas obedecendo às regras formais da arquitectura renascentista.
No extinto convento são curiosos os elementos de Arte: o corpo principal, de galeria de sete arcos de colonéis toscanos, de época do arcebispo D. Simão da Gama (1706); o claustrim clássico, de pilastras graníticas, de c.ª 1570, ricos azulejos de relevo do tipo árabe, quinhentistas e, na cerca, o vasto lago circular, decorado com figuras de mármore e tendo ao centro a estátua de MOISÉS, da 2ª metade do século XVIII; a sala da cisterna, gótica, coberta por um tecto de ogivas e outros pormenores coetâneos e mesmo manuelinos, dispersos pela quinta.
No antigo paço arquiepiscopal, de merecimento, subsistem a Casa do Despacho, com o seu frontão pintado a fresco e inúmeros restos quinhentistas, com destaque para a loggia de colunelos manuelinos e o curioso portal encimado por grelha de elos e calabres e rematado nos extremos por pitorescas torrinhas de secção cónica, tanto do apreço da primeira metade do séc. XVI em Évora.


NOSSA SENHORA DE FÁTIMA EM TERRAS DE NOSSA SENHORA DA TOUREGA

por José Fernandes Ventura
(Diário "A Defesa", Évora)
7 de Maio de 1954

(…) Conheceis a Tourega? É uma parcela do concelho de Évora, com a da Boa Fé, a que mais avança pelo Ocidente. Bastante variados são os aspectos da sua configuração orogénica. São aqui as lombas boleantes de pequenas elevações com azinhais de maior ou menor densidade; é além a campina chã, extensa, preponderante, com a moderna marca antropogeográfica da via férrea de Évora e da estrada das Alcáçovas; são acolá, a deslado, em plano mais baixo, as várzeas ribeirinhas prestes a desentranhar-se com a água da sua represa, em caudais de prosperidade; e o cavaleiro de toda a área é a Serra de Montemuro, pelos naturais também chamada de Monfurado, até há pouco escalvada e cinzenta e agora toda ela verde floresta num arremedo de revestimento florestal alpino ou de país do Norte europeu.
Há sítios que têm o condão de nos fazer romper o contacto com o presente para nos reconduzir ao passado e nos desvendar os segredos desse passado. A região da Tourega é um desses sítios privilegiados.
Ali encontramos sobrepostas camadas culturais diversas, níveis de civilização diferentes. Não há dúvida que pelo menos desde o alvorecer dos tempos neolíticos, ao trocar as actividades de caçador e pescador nómada pelas actividades agrícolas da vida sedentária, o homem arrastava a sua existência por estas paragens. É o homem da civilização dolménica, largamente documentada por grande número de construções sepulcrais: antas, antelas, arcas, orcas, mamoas…
Ainda adentro dos quadros da pré-história mas a níveis mais altos do que os da civilização megalítica, depara-se-nos a civilização castrense iniludivelmente representada pelo “Castelo do Giraldo”, castelo que do Giraldo apenas possui o nome, pois se trata de construção defensiva pré-giraldina, podendo mesmo com segurança afirmar-se ser pré-romana.
Representada e largamente representada se encontra a civilização que teve por berço o Lácio. Numa área de muitos hectares, tendo por centro a Matriz da freguesia, dificilmente o ferro da enxada ou do arado penetram no solo sem toparmos com seus vestígios. São restos de construções murais, tijolos, lateres e laterculi, telhas, tegulae e ímbrices, mosaicos policromos, mármores, tanques, possivelmente balneários, canalizações, opus signinum; etc…
Se não o cristófobo Daciano, outros qualificados da Roma imperial ali teriam assento.
Mundo de esplendores foi essa, que então se estendia desde a Síria à Lusitânia! Mas, minado na sua saúde social pela vermina de uma imoralidade escancarada, entrou com ele gangrena que o levou a enterrar.
Tout une splendeur évannuie, tout un monde enseveli, diria Gebhart.
E, na Tourega, soterrado e bem soterrado ficou aquele mundo, como se supremos desígnios decidissem apagar da superfície da terra a lembrança de tantas iniquidades a implantar em sua substituição um novo mundo, o Mundo Cristão.
Eu bem sei que a lenda e a história andam ali muito enlaçadas, sendo impossível averiguar o que a uma e a outra compete, mas também sei que o chamar-se ao governo de Diocleciano e Maximiano, a “era dos mártires” é afirmação de historicidade inconcussa. E assim, podemos admitir que muitos dos primitivos cristãos ali teriam pago com a vida a admirável constância na confissão da sua fé; ali está, contra a opinião de A. de Resende, a Cova dos Mártires; ali se vê borbulhar a FONTE Santa, sangue de Santa Anónima transformado em cristalina ninfa de notórias propriedades terapêuticas oculares; ali está, em ruinas, a capela de Santa Comba…
A dominar este cenário, ergue-se a igreja Matriz, que não exibe pergaminhos romanos, embora o aparelho de algumas pedras, incrustadas aqui e além, insinuem mais alta antiguidade do que a do actual traçado.
Sucessivamente dominados pelos Romanos, Germanos e Maometanos, duramente batidos pelos fluxos e refluxos alternados de Reconquista cristã, aqueles palmos de terra foram por certo teatro de grandes convulsões sociais. E deste modo é de admitir a reconstrução ou reconstruções do velho templo da Tourega.
Dos tempos medievo-feudais ficou ali também muita coisa: não na campina, na sede da freguesia, mas sim, no Valverde.
A vila romana, que sucedera à estação castreja, viu por sua vez suceder-lhe o couto eclesiástico, que foi a origem da ridente povoação de Valverde e é hoje cenário de gravidade da freguesia. Dos tempos medievais, ali nos falam os pórticos da Casa do Despacho e de outras edificações, os tectos artesoados da Casa da Água e da capela primitiva.
Da época áurea temos: o curioso templozinho de planta circular, com cinco cúpulas: uma central e quatro laterais; o conventinho do Bom Jesus de cujo risco arquitectural o Rei-Cardeal foi autor e do qual o autor da Évora Gloriosa havia de dizer que tinha tanto de limitado como de engraçado e lindo; a porta manuelina com motivos florais da primitiva ermida; o pórtico maior do pátio com sua grelha sobrepujante, qual renda delicada em argolas e calabres, com a franja em borla das torretas laterais; o Palácio dos Arcebispos com suas delicadas colunas de mármore, etc…
Nota particularmente interessante é a da rigorosa observância da regra por parte daquela colónia de monges Capuchos, instalada no conventinho imediatamente após a sua construção em 1544, e com a qual D. Henrique muito folgava em praticar.
Muitas foram as liberalidades do Cardeal e dos seus sucessores na Mitra eborense aos Capuchos de Valverde sem que, todavia, o rigor da disciplina desse mostra de relaxar-se. Porém, volvido meio século, a pestilência dos ares, as febres palustres entraram a matar e tal foi a carnificina que a Comunidade houve que abandonar o conventinho.
Era em 1607. Ocorreu então, segundo o testemunho de velhas crónicas, coisa de maravilha:
Durante a noite, por mão invisível, o sino tangia e ao dealbar, fosse de anjos ou fosse de religiosos defuntos, ouvia-se o salmodear das matinas. Nisto se viu desígnios do Alto em ordem a que os religiosos regressassem às suas celas. E, depois de convenientemente saneado o ambiente, após três anos de ausência, os frades voltaram, continuando a viver na mesma atmosfera rescendente de santidade. E daí o passar-se a dizer que no convento do Bom Jesus de Valverde ou os frades eram anjos ou os anjos eram os frades.
A história das terras da Nossa Senhora da Tourega continua continua, com seus altos e baixos, sombras e claridades, e, agora, mais despida da lenda, mais conhecida de todos nós.
Hoje, como diria o poeta, “os monges da serra já lá vão”, e, em sua substituição, aqui como em muitas partes, temos estudantes mais ou menos desatentos como convém à sua feliz idade das despreocupações. (…)













quarta-feira, 30 de maio de 2018

ALMENDRES_ na rota do desastre ?


Almendres_ 30 de Maio de 2018: imagens que se repetem diariamente nos últimos tempos. Um parque de estacionamento precário, a abarrotar; um "recinto megalítico" permanentemente "ocupado" sem qualquer vigilância.

Afinal, não são apenas os grandes centros históricos ou os monumentos ícones que sofrem riscos com a massificação turística. De forma paulatina mas regular, o Recinto Megalítico dos ALMENDRES, outrora um exemplo de tranquilidade e equilíbrio entre a acção humana e a Natureza, está a revelar-se um caso complexo de difícil relação entre as suas qualidades intrínsecas e a crescente pressão turística.  Inesperadamente, aqueles que nos temos interessado pela salvaguarda do monumento e pela sua divulgação e valorização, somos ingenuamente confrontados com os resultados perversos da nossa própria acção. Seria inevitável esse efeito "boomerang"? De facto, como não há livros sem leitores, não haverá património ou cultura, sem pessoas. Mas nas situações, como parece estar a tornar-se este caso, em que a procura parece crescer exponencialmente, torna-se imperioso precaver e instalar filtros que minimizem os inevitáveis impactos decorrentes, por vezes da intensiva e sistemática presença humana. Mas para tanto, haverá primeiro que resolver a magna questão: quem de facto gere o Cromeleque dos Almendres?

As circunstancias que neste momento se congregam nos Almendres são a receita certa para o desastre:

- grande atractividade da sua fortíssima imagem, muito divulgada pelos media e redes sociais; 
- facilidade de acesso a qualquer hora do dia ou da noite, 365 dias por ano; 
- gratuitidade garantida que torna o local uma mais valia para operadores turísticos, locais, nacionais e internacionais... (oferta de um "produto" -até ver- de qualidade, a custo zero!);
- ausência absoluta de qualquer tipo de vigilância ou de controle, apesar da presença diária de centenas de visitantes...

Naturalmente, a resposta a estes problemas, passa antes de mais por um "plano de gestão" para o sítio que, avalie a sua capacidade de carga e, instale as "barreiras" físicas ou administrativas que permitam ordenar, condicionar e, se necessário, limitar a sua visita. A Junta de freguesia local, sem sucesso, tentou oportunamente assumir essa responsabilidade. Para tal seria indispensável obter o acordo dos proprietários da Herdade e do próprio Monumento Nacional que, infelizmente demonstraram ter outros interesses e prioridades. O Estado, que em situação normal e face à gravidade da situação deveria assumir a expropriação e a gestão do sítio, está hoje como se sabe interessado em passar para as autarquias ou até para os privados a responsabilidade do seu próprio património histórico-arqueológico. Resta ainda a possibilidade da Câmara Municipal de Évora negociar com os proprietários a gestão do sítio, até porque foi a autarquia nos anos 80 e 90, que criou as condições de restauro do monumento e de construção de acessos, que colocam hoje este sítio no mapa das visitas obrigatórias de tantos turistas. Infelizmente, e apesar de tal objectivo constar do programa  da actual maioria na Câmara, parece que se está ainda longe de uma qualquer solução, também neste caso dependente do consenso com os proprietários.

Mas, até que finalmente, se encontre uma qualquer solução que permita instalar um modelo de gestão, resta aguardar que a divina providência, a sensibilidade cultural dos visitantes, ou o bom senso de responsáveis, evite situações como a que acaba de ocorrer nos Almendres. A realização de um espectáculo na noite de 29 de Maio, no âmbito de um festival cultural promovido pela Casa Cadaval, sem que tivessem sido tomadas as medidas que, apesar de tudo, se impõem num Monumento Nacional, nomeadamente o parecer prévio da Direcção Regional de Cultura ou a autorização dos próprios proprietários.

Não temos uma visão "sagrada" ou "elitista" do património, e através de associações locais, nós próprios promovemos no passado, também em colaboração com a Câmara Municipal, actividades culturais que atraíram, de forma ordeira e controlada, muitas pessoas ao Cromeleque (nomeadamente no âmbito das chamadas festas do solstício). Mas, previamente houve o cuidado de informar os proprietários (até por razões de segurança) e avaliar com a tutela do património, as condicionantes patrimoniais em causa. Aparentemente, face às indagações que efectuámos, nada disso aconteceu nos preparativos do evento de ontem. Felizmente, apesar de terem estado presentes nos Almendres na noite de ontem algumas centenas de pessoas (as estimativas variam), desta vez tudo terá corrido bem e sem incidentes. 


Hoje! Ritual Máscaras da Lua às 21h no Cromeleque dos Almendres. Autocarros a partir do Palácio Cadaval às 20h30. Experiência gratuita, não é necessário reservar.
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Tonight! Ritual Maks of the Moon at 9pm in Cromlech of the Almendres. Buses will be leaving at 8:30pm from Cadaval Palace. Free experience, no reservations needed.





https://www.publico.pt/2018/05/22/culturaipsilon/noticia/henrique-leonor-de-pina-o-homem-dos-almendres-1831194


http://pedrastalhas.blogspot.com/2018/05/henrique-leonor-de-pina-1930-2018.html

domingo, 27 de maio de 2018

Os 40 anos do CAMPO ARQUEOLÓGICO DE MÉRTOLA

Um dos primeiros trabalhos de arqueologia publicados pelo CAM  (1987- catálogo de exposição, apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian)

Não pude estar presente no colóquio que celebrou este fim de semana (25 e 26 de Maio de 2018) os 40 anos do CAM_ Campo Arqueológico de Mértola. Mas, graças ao texto (e fotos) que o Santiago Macias acaba de divulgar no seu blog (Avenida da Salúquia, 34), senti-me comungar do espírito que se terá vivido em Mértola ( ver aqui ). Com efeito, o projecto de Mértola, graças à personalidade e à cultura do Cláudio Torres, apesar de ter acompanhado as transformações da arqueologia portuguesa no último quartel do Século XX (ou seja no pós 25 de Abril), foi sempre muito mais do que um projecto de Arqueologia ou de investigação arqueológica. Daí que, naturalmente, na breve resenha histórica que o Santiago traça no seu texto, praticamente não haja referencia às questões institucionais que, a componente de escavação presente em Mértola (e teoricamente, a primeira razão de ser do próprio Campo) levantava perante as entidades da tutela (como hoje se diz) e que à época eram o IPPC e os respectivos Departamento de Arqueologia e Serviço Regional de Arqueologia do  Sul. A essas relações, nem sempre fáceis, dada a natureza desalinhada do próprio projecto de arqueologia e a personalidade e posicionamento político do Cláudio, já me referi ocasionalmente em alguns dos posts deste blog e cujos links aqui deixo. Graças sobretudo à teia de amigos que o Cláudio, como ninguém sabia cativar (desde os mais humildes funcionários administrativos até aos Secretários de Estado, como a Teresa Patrício Gouveia, recebida nos anos 80 em Mértola com abraços e beijinhos...) lá íamos no velho Departamento de Arqueologia do IPPC, ultrapassando as dificuldades burocrático-administrativas provocadas pela irreverência ou, simplesmente, pela falta de "pachorra" do Cláudio para tudo quanto eram "papéis"... E verdade seja dita, até aos projectos da JNICT que aparecem apenas no final da década de 80, o CAM subsistia financeiramente graças a duas entidades: em primeiro lugar a Câmara Municipal de Mértola e em segundo lugar, os subsídios atribuídos pelo IPPC através do Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos. Só que estes, dependentes do parecer do Director do Serviço Regional de Arqueologia do Sul e da Comissão Nacional Provisória de Arqueologia (depois Conselho Consultivo do IPPC), por vezes só com muita persistência do Departamento de Arqueologia se conseguiam fazer aprovar, dada a conhecida resistência de um certo "establishment " académico e institucional que sempre consideraram o CAM mais como um projecto político (de "agitpropo") do que científico, E talvez tivessem razão: daí a celebração dos respectivos 40 anos.


http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/11/novidades-de-mertola-como-arqueologo.html

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segunda-feira, 21 de maio de 2018


Henrique Leonor de Pina (1930-2018)

Henrique Leonor de Pina nos Almendres, em reportagem da RTP de 29 de Agosto de 1970
(A reportagem pode ser vista na íntegra aqui: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/achado-arqueologico-em-almendres/#sthash.ixML1PB8.dpbs )


Graças ao Prof. Galopim de Carvalho, soubemos ontem (20 de Maio) do falecimento de Henrique Leonor de Pina, o homem a quem se deve nos longínquos anos 60 a identificação e estudo da Anta Grande do Zambujeiro e do Cromeleque dos Almendres, dois dos mais importantes monumentos megalíticos do território português, e hoje verdadeiros ex-libris (ainda que praticamente abandonados à sua sorte) da arqueologia pré-histórica alentejana. Apesar de já por várias vezes neste blog (que foi buscar à simbologia das "pedras talhas" dos Almendres o seu próprio nome) termos evocado a figura de Henrique Leonor de Pina, há muito retirado das lides arqueológicas, não podíamos deixar de, neste momento de tristeza, realçar de novo o muito que o Alentejo e em particular estas terras de Montemuro, ficam a dever a Leonor de Pina. Por triste coincidência, alguém recordava ontem que passavam precisamente 3 anos sobre o desaparecimento de outra figura, bastante mais jovem, que nos últimos anos de vida tanto dedicara ao estudo dos menires dos Almendres, o malogrado Pedro Alvim (1970-2015).

Para memória futura, aqui se registam alguns testemunhos e documentos, sobre o arqueólogo e o homem agora desaparecido.


O testemunho do Prof. Galopim de Carvalho:

1. Em memória de HENRIQUE LEONOR PINA (1930-2018)
Faleceu hoje, em Santarém, o arqueólogo amador que descobriu, identificou e o que primeiro descreveu o Cromeleque dos Almendres.
Com mais três anos do que eu, o Henrique Leonor Pina, aos dezassete anos, quando o conheci, a meados dos anos 40, era um jovem adulto, pleno de entusiasmo e energia, nos seus oitenta a noventa quilos de ossos e músculos. Meu condiscípulo no Liceu Nacional André de Gouveia, em Évora, viera de Montemor para continuar os estudos no antigo 6º ano (actual 10º), entrara eu no 4º. Nesse tempo, o Latim, associado à disciplina de Português, tinha lugar de relevo no ensino ao longo de três anos lectivos, entre os 4º e 6º anos. 
Tornámo-nos amigos. Fazíamos o mesmo percurso, por São Mamede e Buraco dos Colegiais, a caminho do liceu, ele vindo das Portas de Alconchel, eu dos arredores da Porta Nova. Nos meus verdes anos de adolescente, ainda mantinha o ar de rapaz miúdo ao lado de um adulto que já fazia a barba. Nesse contraste, ele via-me como aquilo mesmo que eu era e eu olhava-o como um crescido, capaz de me ensinar coisas e dar protecção.
Foi nesta medida que, numa das caminhadas matinais em demanda das aulas , ele, já então detentor de uma cultura invulgar num jovem da sua idade, muito bom aluno em todas as disciplinas, sabedor de tudo e mais alguma coisa, me perguntou:
- E o Latim? Estás a gostar?
- Sinceramente, não. – Respondi, meio envergonhado. – A professora é uma chata e as aulas são uma seca.
- E a História?
- Gosto mais. O professor é bom. É surdo como uma porta, mas consegue prender a atenção da malta. Está sempre de mão em concha atrás da orelha ou, então, a molhar o dedo mendinho na boca e a enfiá-lo, ouvido adentro, como que a querer desentupi-lo. – Comentei, num jeito de quem goza com a desgraça alheia.
A partir de então, os minutos da nossa caminhada conjunta passaram a ser as minhas aulas da, então para mim ainda estranha, língua de Virgílio, ocupadas com dozes maciças de nominativo, acusativo, genitivo, dativo, ablativo, vocativo e textos incapazes de despertar o interesse dos alunos. Foi com ele e com outros jovens conterrâneos da mesma geração (em especial, com Mário Ruivo, Lima de Freitas, Marcolino Gramacho, Júlio Roberto, Fernando e David Bragança Gil), não na escola, que aprendi a gostar de saber.
O Pina foi um dos meus companheiros de adolescência no campismo selvagem que fizemos nos campos do concelho de Évora. Mais tarde tornámo-nos compadres, tendo sido padrinho de baptizado do meu filho Nuno.
Corria o ano de 1964, juntámo-nos de novo em Évora, eu como geólogo, ele como arqueólogo. Eu iniciava ali a orientação de um grupo de alunos finalistas de Geologia, empenhados no trabalho de campo conducente à execução da folha nº 40-A (Évora), da Carta Geológica de Portugal, na escala de 1:50 000, numa frutuosa colaboração da Faculdade de Ciências de Lisboa com os Serviços Geológicos de Portugal e a Junta Distrital de Évora. O Pina voltava ali como arqueólogo, em trabalho de escavação da Anta Grande do Zambujeiro, na vizinhança da herdade da Mitra (Valverde, freguesia de Nossa Senhora da Tourega), onde funcionava a Escola de Regentes Agrícolas de Évora. 
Como amador que era, este meu compadre, licenciado em História e Filosofia, fazia as suas campanhas arqueológicas por conta própria com o suporte da referida Junta Distrital, que assumia o pagamento das jornas da meia dúzia de homens e mulheres que, anos a fio, integraram o seu grupo de trabalho. Trabalhadores rurais, inteligentes e hábeis no terreno, como um qualquer aluno universitário em trabalho de estágio, eram alegres e brejeiros no convívio, eles e elas, resistentes ao cansaço, ao sol e ao calor do estio.
Num belo dia de Agosto, um pastor, homem de meia idade, conhecedor de tudo o que eram terras em redor, passando por ali, esteve que tempos a observar o trabalho dos camaradas na dita escavação e, de vez em quando, a dar a sua opinião. Dirigindo-se ao Pina, perguntou-lhe se já tinha ido ao Alto das Pedras Talhas, a poucos quilómetros dali, explicando que as grandes pedras ali reunidas tinham a forma ovóide dos grandes recipientes de barro em que, no Alentejo, se fermentava o mosto e guardava o vinho, oferecendo-se para o conduzir até lá.
Particularmente sensível à perfeita e sugestiva descrição feita pelo pastor, o Pina aceitou, de imediato, a oferta e lá foram no dia seguinte, a caminho da descoberta (em termos arqueológicos) do recinto megalítico dos Almendres. 
Foi o deslumbramento! O sítio arqueológico que se guindou à condição de maior conjunto de menhires da península ibérica e um dos mais importantes da Europa, estava à vista de quem o quisesse ver, na freguesia de Nossa Senhora de Guadalupe, com fácil acesso a partir da estrada nacional de Évora para Lisboa, ao km 10. Uma pérola, em que nunca ninguém tinha reparado
Deste monumento restam cerca de noventa monólitos (desde pequenos blocos, pouco ou quase nada afeiçoados, a outros maiores lembrando as ditas talhas), num estado de conservação ainda muito bom, uns com pequenas covas centimétricas e outros decorados, exibindo relevos ou gravuras.
Numa história recente, este local foi usado como pedreira de onde se retiraram e destruíram vários destes grandes blocos, todos eles de rocha granitóide (granodiorito e quartzodiorito de várias proveniências, alguns transportados de distâncias superiores a 2 km). 
Têm sido muitos e importantes os estudos realizados por diversos autores sobre esta relíquia neolítica, testemunho de várias idades, ao longo dos V e IV milénios antes de Cristo, aceitando-se hoje que “formaram dois recintos erguidos em épocas distintas, geminados e orientados segundo as direcções equinociais”.

No dia seguinte, o Pina levou-me a admirar este magnífico património que pôs o Alentejo e Portugal na rota de especialistas e de cidadãos interessados neste domínio do saber. Vi no pormenor e ouvi as primeiras explicações de um estudioso que, sendo amador, ficou na história de um dos mais importantes achados arqueológicos de Portugal.
(20 de Maio de 2018- 15h)

2. Dados biográficos de Henrique Leonor de Pina, segundo o jornal "O Almeiriense" de 3 de Abril de 2014, por ocasião da inauguração de uma exposição de pintura, actividade artística a que HLP se dedicaria no Outono da vida:


Nasceu em Almeirim 1930, onde passou parte da sua infância pois acompanhou os seus pais em trabalho por Montemor-o-Novo e Évora. Foi nesta cidade que terminou o ensino secundário e o Magistério Primário, aí casou e com 20 anos regressou à sua terra natal como professor primário.A necessidade de emprego não invalidou a sua vontade inquebrantável de prosseguir os estudos no ensino universitário que concretizou como trabalhador estudante: matriculou-se em Direito mas, logo depois, o seu gosto pela História falou mais alto vindo a licenciar-se em Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi chefe de departamento de Recursos Humanos na empresa “Efacec” em Estarreja/Porto transferindo-se depois para Santiago do Cacém e Lisboa. Nas suas férias, passadas em Évora, dedicou-se com paixão à descoberta, estudo e escavações de monumentos megalíticos da pré-História (Antas, menhires e Cromleques) da região alentejana, em trabalhos de campo que implicavam a constituição de equipas e estreitos contactos com pastores e trabalhadores rurais.Nos anos 70 voltou a lecionar no ensino secundário em Lisboa, na Escola Técnica Machado de Castro e Liceu MªAmália Vaz de Carvalho.
Homem de cultura, democrata e cidadão interveniente-Desde jovem foi leitor compulsivo e sedento de conhecimentos,sensível às desigualdades e injustiças sociais. Com um elevado sentido cívico foi oposicionista e resistente à ditadura salazarista. Enquanto professor em Almeirim deixou nos seus alunos uma abertura de ideias inovadoras e pouco habituais. Em 1957 quando decorria a campanha eleitoral para a Presidência da República convidou os seus alunos a saudarem o Gen.Humberto Delgado, candidato da oposição à ditadura, quando este passou por Almeirim sabendo que os resultados eleitorais viriam a ser falsificados pelo regime da opinião única. Foi um momento de grande euforia e esperança popular que perpassou por todas as gerações até aos mais jovens.
Homem criativo de letras e artes Pelo outono da idade mostrou a sua jovialidade intelectual e criativa escrevendo “Os Papéis de S.Roque”, romance histórico passado em Almeirim cuja edição(2005), apoiada pelos seus antigos, alunos esgotou em pouco tempo. E agora surpreende-nos com a sua pintura, faceta criativa de artista plástico, guardada na sua intimidade e desconhecida de todos. Dir-se-ia que “nunca é tarde…” e temos agora a possibilidade de apreciarmos a sua Pintura na exposição patente na Galeria Municipal de Almeirim entre 12 Abril e 3 Maio 2014.
3. Reportagem sobre as escavações de HLPina, publicada por Mário Ventura Henriques, no Diário Popular de 13 de Outubro de 1967:  (http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/01/a-mais-bela-maquina-de-viajar-no-tempo.html


4. Entrevista a Henrique Leonor de Pina, conduzida por António Alegria (actual Director do Museu de Évora) e Carla Magra, e publicada no Boletim Cenáculo, nº 1, publicação on-line daquele Museu que, inexplicavelmente se encontra "of-line", tal como o próprio SITE do Museu. Recorde-se que parte do importante espólio arqueológico da ANTA GRANDE DO ZAMBUJEIRO se encontra actualmente exposto naquele Museu (após ter sido religiosamente guardado por HLP que apenas o entregou ao extinto Servioço Regional do Sul, uma vez dadas garantias de que o mesmo viria a ser exposto publicamente, como veio a acontecer após as obras de remodelação do Museu de Évora):

Nos anos 60, o arqueológo Henrique Leonor Pina, na companhia do Galopim de Carvalho e de José Pires Gonçalves, entre outros, protagonizou uma série de achados arqueológicos que enfatizaram a importância e extensão da cultura megalítica no território do Alentejo Central.
O ponto culminante da sua acção foi, sem dúvida, em 1964, a descoberta e as escavações arqueológicas realizadas na Anta Grande do Zambujeiro, um dos maiores monumentos funerários da Península Ibérica. Esse trabalho deu origem a um importante espólio – a colecção Henrique Leonor Pina -, que hoje integra as colecções do Museu de Évora, num inventário que abrange cerca de duas mil entradas.
Do seu trabalho faz parte, ainda, a identificação de um importante conjunto de menires, cromeleques e monumentos funerários, só possível pela estreita ligação do arqueólogo com a população local, que Leonor Pina entendia como verdadeiros interlocutores. Com os pastores, agricultores e caçadores criou uma rede de prospectores do território, entre os quais recrutou os auxiliares para participar nas escavações e com quem, numa perspectiva antropológica universalista, discutia as interpretações simbólicas dos achados arqueológicos.
Ao contrário do que é comum pensar-se, a Anta Grande do Zambujeiro sofrera um longo processo de alterações, e a escavação arqueológica, realizada com escassos meios, defrontou problemas complexos não só devido as dimensões do monumento, mas também pela imediata necessidade de intervir para conservar a sua coerência estrutural.
Com o seu cunho muito pessoal e emotivo, Henrique Leonor Pina reconstitui nessa entrevista, sempre a volta da Anta Grande do Zambujeiro, a memória desses anos, permitindo nos vivenciar o contexto no qual as escavações foram realizadas, num tempo em que a acção do arqueólogo passava muito pelo empenhamento individual, mas que também estava aberto a uma utopia comunitária. Como muitas vezes defendeu, havia uma estreita ligação entre os diversos monumentos megalíticos, numa ocupação estruturada e simbólica da paisagem, e só uma forte ligação da população local com esse património disperso é que se poderia pensar no conhecimento e preservação desse conjunto, intimamente ligado a ocupação do território.

 Podemos deixar de lado o suspense e ir directo ao assunto. Como é que o Henrique Leonor Pina descobre a Anta Grande do Zambujeiro?
Em Março de 1964, a Anta do Barrocal, na freguesia da Nossa Senhora da Tourega, em Évora, está numa situação crítica, ameaçando ruir, por causa de umas chuvadas muito intensas que tinha havido, e eu vim aqui fazer o trabalho de consolidação para impedir a sua queda. Levantaram-se um pouco os esteios, veio um homem das pedreiras ensinar como se fazia aquilo, e consolidou-se a estrutura. A Anta havia sido estudada no tempo do Leite de Vasconcelos (1898) e já estava classificada como Monumento Nacional. De maneira que fiz ali uma primeira sondagem, apareceram muitos fragmentos de ídolos-placa. A escavação foi realizada em condições muito adversas, porque chovia muito, estava tudo enlameado.
Foi nessa altura, no dia 24 ou 25 de Março, que me aparece o guarda da Mitra, o Sr. António Rebocho, mais conhecido como o “ti” António Gadunhas, um verdadeiro camponês arqueólogo, que veio me dizer: senhor fulano, ainda bem que aqui está. Se viesse cá no Verão, eu poderia lhe mostrar algumas coisas. Chovia que Deus a mandava. Esperar pelo Verão? Não, vamos já a isso. Eu tinha um dois cavalos, fomos com o dois cavalos. A primeira coisa que vamos fazer, disse-me ele, chamam-lhe o cabeço da Anta, mas não é anta nenhuma, há um chapéu, mas não vejo nenhuma anta. Eu, quando cheguei lá, fiquei com os olhos em bico. Passámos a ribeirinha de Valverde, subimos, fomos ver aquilo, depois viemos atrás, ver a entradinha. Aqui está uma Anta, sim, mas tem… dez metros de altura!
 E teve a certeza, desde o início, que era uma Anta?
Tive a certeza. Primeiro, aquilo era um monte artificial. Passados alguns dias, eu pedi ao Galopim de Carvalho que passasse por lá e identificasse qual daqueles montes não era um monte natural. Ele chegou aí a uns cinquenta metros e confirmou logo aquele como um monte artificial.
Antes de contar-nos como se realizaram as escavações arqueológicas, podemos recuar um pouco no tempo. Quando é que começa a interessar-se pela arqueologia?
Muitos dizem: nasci arqueólogo, o que não é mais que um mito. Quando fiz o sexto ano do liceu, em Montemor, vim para Évora, morar no princípio da Rua dos Penedos. Ainda fiz exame de admissão para Direito em Lisboa, mas não me adaptei aquilo, e preferi seguir o Magistério Primário. Lembro que uma vez fui ao Alto de São Bento e, aí sim, admito que fosse um certo fado, encontrei um machado neolítico, fragmentado, que esteve muito tempo em cima da mesa, até que a minha mulher o deitou fora. Talvez tenha sido o meu primeiro contacto, mas isso não foi de nascença.
E os primeiros trabalhos em arqueologia?
Exactamente, quando é que eu vou fazer o meu primeiro trabalho? Cinco ou seis anos mais tarde, quando a minha filha já era nascida, por volta de 1955, é quando eu faço o estudo da Anta da Herdade do Duque, em Reguengos de Monsaraz. Pedi uma carta ao Manuel Heleno, que era director do Museu Nacional de Arqueologia, pensei que deveria ser o responsável por aquilo… e portanto esse foi o meu verdadeiro início na arqueologia, que depois é publicado na Revista de Guimarães (Pina: 1961a). Escavei em companhia do meu amigo Manuel Sapatarra, e depois entregamos os achados ao padre Júlio de Monsaraz.
Trabalhei depois com o Galopim de Carvalho na foz do Leça, no Porto de Leixões (Pina, 1961b). Estávamos a trabalhar por grupos, um constituído por biólogos, estudavam os materiais que diziam respeito a micro flora e a micro fauna; um outro grupo estudava a parte física da geologia; e o Galopim de Carvalho que estudava, digamos assim, a parte “móvel” da geologia, o movimento das areias e do lodo; e eu que ia a procura das pedras. Tive a sorte de encontrar, mesmo ao lado do mercado de Matosinhos havia umas barreiras, e encontrei umas pedras roladas que serviriam para pesos de rede, sobretudo para poderem ser lançadas. Desse trabalho fiz um estudo com um sistema de classificação identificando as variantes segundo o peso e tamanho.
Depois foi a Anta da Velada das Éguas, da Herdade do barrocal, na Freguesia da Tourega, no concelho de Évora, com o Galopim de Carvalho, publicada no Boletim da Junta Distrital, em 1962. Aquilo está muito bem publicado porque o Galopim de Carvalho desenhou aquelas placas todas, por um sistema que ele inventou, realizando os desenhos a partir dos negativos.
Com o é que surgiu o projecto de escavar a Anta Grande do Zambujeiro? Foi um projecto pessoal, ou foi decidido pela junta Distrital…
Foi um projecto pessoal apoiado pela Junta Distrital, que só pagava aos trabalhadores e a gasolina do dois cavalos. Eu fui lá com o Armando Perdigão, presidente da Junta Distrital e da Câmara Municipal de Évora, mostrei-lhe aquilo, depois o fotógrafo da Câmara, o David de Freitas fotografou-a.
E quem era a equipa, onde é que foi recrutar a equipa?
A equipa era constituída exclusivamente por camponeses. O Galopim de Carvalho não podia, estava em França, realizando o doutoramento, e esteve ausente três, quase quatro anos. Foram cinco anos, cinco campanhas, e foi num desses anos em que participou o Bragança Gil, não me recordo exactamente, acho que foi no terceiro. Alguns eram parentes daqueles que tinham escavado comigo a Anta da Velada das Éguas (Pina e Carvalho, 1962). Eram muito novos, e alguns deles morreram em combate na Guiné, outros dispersaram. Havia ainda parentes do Augusto Machado, que passou a funcionar como o chefe da equipa, ele está vivo, e a Joaquina, que está um pouco doente.
Os trabalhadores são recrutados em Valverde. E quanto tempo durava as campanhas? Eram as suas férias…
Três semanas, eu só tinha quatro semanas de férias no Verão. O material era requisitado previamente. Eu escrevia ao presidente da Junta Distrital, o Armando Perdigão: preciso de tantos carrinhos, tantas pás, picaretas, picolas, etc. Fazia uma lista dessas coisas, e ele, por sua vez, requisitava à Junta Autónoma das Estradas. Trabalhavam homens e mulheres, porque as mulheres eram importantes, até para fazer a comida, para buscar a água, e para estar a peneirar, e é por isso que uma delas encontra os fragmentos da jóia de ouro e as esconde no avental: Ah, julgava que isso fossem cápsulas (risos).
E como é que evolui o processo de escavação? Só para lembrarmos da situação inicial, a anta encontrava-se completamente coberta dentro de uma mamoa com cerca de 50 metros de diâmetro, e só os topos dos esteios da câmara funerária estavam visíveis.
No primeiro ano foi limpar a área, aquilo era extenso, no princípio eu não tinha tempo, e então pedi que viessem com uma máquina para remover a terra, a parte de cima que tinha sido lavrada, havia muito mato. Eu fiz ali sondagens, não havia espólio nenhum, nada.
Só depois desses trabalhos é que começa a aparecer o chapéu, antes só umas pontas dos esteios que durante muito tempo apresentavam uma coloração diferente, porque apanhavam sol.
Logo abaixo desse nível começam a aparecer coisas que eu julgo que já são da Idade do Ferro. A certa altura aparece um fragmento de vidro fenício, talvez proveniente de trocas comerciais.
Eu digo, bom, isso vai ser uma coisa notável, e depois vamos continuar, continuar, continuar, de maneira que no segundo ano, já se começa ver a hipótese de entrar no corredor, tirando-lhe o miolo, porque uma parte de cima era escorrimento das águas, quer dizer, as águas iam se infiltrando, e a parte de cima era sobretudo um composto de areias lavadas, numa camada com cerca de trinta centímetros.
Então, no terceiro ano a escavação avança lentamente pelo corredor, que tem cerca de 12 metros de comprimento, um metro e meio de largura por dois de altura, coberto pelas, comparativamente, pequenas lajes que se uniam umas às outras.
Isso. A lâmina de bronze foi encontrada na parte superior, mesmo sobre as pedras da cobertura do corredor, foi uma das primeiras coisas que encontrei. Aliás, o corredor estava dividido em dois. Um deles estava completamente tapado pelo lado Sul, entulhado, porque aquilo tinha desabado. Em algum momento deixou de estar funcional, e ali praticamente não encontrei espólio. E havia uma parte, ainda lá está, com aqueles esteiozinhos a sustentar as pedras do corredor. Mas, quando chegámos lá a frente, próximo da padieira, eu vejo que nós não podemos avançar mais, havia o risco de ficarmos soterrados.
Como sabem, a câmara funerária é formada por sete esteios, com cerca de 8 metros a partir da superfície do solo, coberta por uma única pedra.
Mas a pedra de cobertura da câmara, o chapéu, estava partido desde o início das escavações?
O chapéu estava partido, aliás pode-se ver, os fragmentos estão lá sem nenhum prejuízo, porque a única coisa que fizemos foi desloca-lo para o lado de fora, porque a partir de uma certa altura eu tinha receio que aquilo caísse. Escoramos, levantamos aquilo tudo, tanto que as coisas estão lá. As varas de aço de furar para por dinamite que se usavam nas pedreiras ali ao lado, foram introduzidas nos esteios para servir de escoras.
Mas quem dinamitou? Tinha sido dinamitado antes?
Não, não, ninguém dinamitou. Havia uma pedreira da GRAEL ao lado, e havia um senhor que já faleceu, o Francisco Mendes, que dirigia o corte das pedras, era canteiro de profissão. Então, ele foi lá com um guincho mecânico, e com outros dois manuais e fizemos as movimentações das pedras.
O chapéu estava fragmentado e abateu, o que, na minha opinião, deve ter sido causado por um terramoto, porque para uma estrutura daquelas enterrada fragmentar-se, é preciso um abalo sísmico enormíssimo. Bom, a certa altura aquilo abate-se e passa a haver enterramentos em cima, porque não se podia entrar pela parte debaixo, porque um dos esteios, o quarto, havia colapsado para o interior.
A pedra de cobertura da câmara estava deslocada e fragmentada, havia necessidade de intervenção na estrutura do monumento a medida que se escavava. O processo era muito complexo…
Nós, antes de fazermos os levantamentos, fizemos, pela parte de fora, o que eu chamava escavar a raiz, quer dizer, a base do esteio, que estava quebrado, e encontro por baixo cerca de dois metros e tal, três metros, de brita e areia, e eu me lembro de ficar emocionado, ao pensar que essa terra desde que foi posta aqui, há cinco mil anos, nunca mais ninguém lhe mexeu.
Houve ainda necessidade de fazer uma outra modificação, um esteio do corredor, ou melhor, onde encostava a pedra padieira. Havia uma pedra que estava numa posição instável, que eu chamo a pedra de padieira. Era a pedra que tapava a diferença entre a altura do corredor e a altura da câmara. Sendo assim aliviou-se esse esteio para esse lado e levantou-se, puxou-se esse que estava inteiro, para garantir um paralelismo em relação ao outro.
Bom, uma vez, eu estava muito entusiasmado, quando começamos a levantar a pedra, eu estava muito entusiasmado ao lado do guincho, quando um dos cabos se rompeu e a pedra abateu cinquenta centímetros. Se me caísse em cima, tinha sido morto no campo de batalha, não é, enterrado com todas as honras dos ladrões de túmulos (risos).
De todos os materiais que encontrou qual foi aquele que o mais surpreendeu na Anta Grande do Zambujeiro?
Um deles foi o ídolo de cerâmica com olhos da idade do ferro, outra, a taça ou vaso com decoração simbólica (ME 3816). Quando se encontrou o primeiro fragmento… eu discutia os achados com os meus homens, homens e mulheres, não é, porque o senso comum é útil para a interpretação simbólica. O que é que vêem? E eles me disseram: Isto é um sol. Todas as pessoas estavam apontando para um símbolo, é natural que fosse assim. Eu disse: isto é um olho. Quando, no ano seguinte, aparece o segundo fragmento da peça, vieram logo dizer: Olhe, está cá, o senhor dizia e era verdade, cá está o outro fragmento com a representação do olho. As duas partes fazem um olhar.
Eu conhecia materiais já escavados, encontrados pelo Veiga Ferreira, vasos com aquelas formas, com o nariz, no fundo uma representação humana. Hoje discute-se se aquele triângulo-nariz não seria a representação do ser feminino, o púbis, o que é possível porque uma coisa é pensar-se no vaso como a representação de uma face e outra coisa é pensar-se na representação de um corpo. Portanto, eu tinha uma interpretação diferente, a minha interpretação era mais cultural que o das outras pessoas. E para quê eram os olhos? Para ver, como acontece com os barcos que tem um olho de um lado e do outro, que é para verem o caminho. As pessoas continuam a por o São Cristóvão para ajudar no caminho, continuam a fazer as mesmas coisas. Essas eram as nossas conversas e isso era importante.
Não há nenhuma ossada completa no espólio da Anta Grande do Zambujeiro?
Havia o problema da recolha e de levantamento dos ossos. Nós levantamos o que foi possível. Nós embrulhamos os fragmentos de ossos que iam se desfazendo. Mas não há propriamente nenhum conjunto, uma ossada. Havia tíbias, costelas…
E o Marcelino?
Chamavam-lhe o Marcelino, porque era o mais próximo de um indivíduo, via-se que estava ali, sei que ele tinha a cabeça caída, muito próxima da bacia, mas era sobre as coxas. Sim, há na colecção restos de dentes, maxilares, e algumas costelas. O Marcelino não tinha placa. A mandíbula estava caída sobre as coxas, o que dava a ideia de ele estar encostado, talvez tenha sofrido um processo de mumificação, com ervas e salitre, um pouco a semelhança das práticas da América do Sul. Mas o Marcelino estava com pedras à volta, o que significava que o corpo não se segurava, não havia rigidez cadavérica, porque não foi feito assim. É a única coisa que eu posso concluir, porque desapareceram as articulações, etc. Também pode acontecer que houvessem mumificações fora da Anta, e que colocassem os ossos em colecções, porque houve forma de inumações em que o corpo era representado somente pelas partes mais duráveis.
E como é que organizava as suas pesquisas de campo, que incluem a identificação de muitas antas e menires? Além do Cromeleque dos Almendres que é concomitante a Anta Grande do Zambujeiro, podemos mencionar a descoberta, em 1966, do Cromeleque da Portela de Mogos, em 1967, o menir da Herdade das Reboladas, em 1969 o menir da Herdade da Correia, etc., ao ponto de ficar conhecido como o “pai dos menires”?
Foi o Otávio Veiga Ferreira, do Museu dos Serviços Geológicos que brincava: aqui está o homem que inventou os menires, o homem descobridor dos menires. Encontrei, encontrei como as pessoas encontram as coisas, têm o olho orientado em determinado sentido. Além disso, eu tenho uma rede enorme de colaboradores. Esses colaboradores são os caçadores, os guardas rurais, os pastores, são as pessoas com que eu ando. Eu contei o caso da Anta Grande do Zambujeiro, mas depois eu fazia passagens de slides, nas aldeias, e vinha tudo, os gaiatos a correr, eu a Maria de Jesus Zorrinho a passar aquilo, era preciso que eles vissem aquilo, e depois aparecia um homem e dizia: ah, eu estive a trabalhar num olival… Um homem que estava a trabalhar me disse que havia uma quantidade de coisas como estas… uns cilindros, estavam uns cilindros ao pé da horta, foi quem me mostrou o menir da Herdade do Pinheiro.
Foi a primeira pessoa a tomar atenção aos menires, a sua localização e ver que havia um padrão para o seu levantamento.
É como eu costumo dizer, às vezes, a gente olha mas não vê. Quando o senhor António Gadunhas veio me indicar o que era um dólmen enterrado, e outra coisa que era o Cromeleque dos Almendres, eu chorei, fiquei muito comovido, mais com o cromeleque do que com a própria Anta Grande do Zambujeiro. Porque com a Anta era uma espécie de proposta que eu havia de encontrar coisas em condições diferentes. E foi, eu fiquei convencido que, nos grandes dólmens, a maior parte da riqueza pode estar na parte exterior da mamoa…
…No átrio.
Se eles já desapareceram, como aconteceu com as antas menir, desapareceu com ela essa informação. Não é na parte de dentro que está a arca das libras. Aí podem estar os últimos enterramentos, e há dados que podem ser fundamentais para uma datação. O que pode acontecer com a Anta Grande do Zambujeiro, que pode datar o sismo que eu julgo que afectou, e muito, o monumento…
A escavação da Anta Grande foi o seu último trabalho de campo?
Foi. Nos dias da escavação, havia ao fim da tarde uma exposição do material que tinha aparecido. As pessoas de Valverde, o Augusto Farjado, a Joaquina, o António Sabina, o Daniel Garrinho, toda a gente da comunidade, os homens, as mulheres, os gaiatos, toda a gente vinha ver o que estava a acontecer nas escavações. E eu depois disse ao Armando Perdigão que o que havia a fazer era dar a guarda do monumento à comunidade de Valverde. Era a única forma de manter a salvaguarda do monumento. O presidente do Instituto de Agronomia, o Aires de Azevedo, me disse que a melhor coisa a fazer era uma espécie de cobertura, e fazer uma exposição local com réplicas de peças encontradas e uns painéis explicativos. Houve mesmo, nessa época, uma exposição em Évora, em que as peças foram apresentadas como “artesanato pré-histórico”, mas foi importante para a população da cidade, todos vieram ver a exposição.
E depois o material é depositado na sua casa…
Quando me entregaram o material em casa, eu estava de mudança para o Porto. Os materiais estiveram então na minha casa no Porto, depois vieram comigo de novo para o Sul, mas eu não tinha condições de empreender uma investigação daquela envergadura, nem sequer de espaço, eu trabalhava como professor, e era preciso a formação de uma equipa universitária. Em 1988, mais uma vez respondendo as solicitações das entidades púbicas, deposito, ou melhor, o espólio da Anta Grande do Zambujeiro é transferido para aos Serviços de Arqueologia do Sul, e logo de seguida fica em depósito no Museu de Évora.

5. Bibliografia arqueológica de Henrique Leonor de Pina:
Pina (1961a), Henrique Leonor, “A Anta da Herdade do Duque em Reguengos de Monsaraz” in Revista de Guimarães, volume LXXI, n.ºs 1-2. Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 1961.
Pina (1961b), Henrique Leonor, “Nota sobre as indústrias líticas da foz do Leça, Leixões” in Boletim do Museu e Laboratório Mineralógico e Geológico da Faculdade de Ciências de Lisboa, n.º 9, Lisboa: Faculdade de Ciências de Lisboa, 1961.
Pina(1962), Henrique Leonor, “A Anta da Azinheira em Reguengos de Monsaraz” in Trabalhos de Antropologia e Etnografia, volume XIX, fascículo 1. Porto: Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnografia e Faculdade de Ciências do Porto, 1962.
Pina, Henrique Leonor, e Carvalho, Galopim de (1962), “A Anta da Velada das Éguas, Barrocal, Évora in Boletim da Junta Distrital de Évora, n.º 2, Évora: Junta Distrital de Évora, 1962.
Pina (1971), Henrique Leonor, “Novos Monumentos Megalíticos do Distrito de Évora” in Actas do II Congresso Nacional de Arqueologia. Coimbra, 1971.
Pina (1976), Henrique Leonor, “Cromlechs und Menhire bei Évora in Portugal” in Madrider Mitteilungen n.º 17. Heidelberg: F. H. Kerle Verlag, 1976.