Património, morrer pela doença ou pela cura?
O exemplo da Fortaleza de Juromenha
Raramente as opiniões técnicas que emitimos, enquanto “especialistas
do património”, são lineares ou óbvias. Por vezes confrontamo-nos mesmo com opções
complexas do género, “será que ao inviabilizar uma proposta de intervenção em
património, ainda que a mesma contrarie alguns princípios metodológicos que consideramos
essenciais, não estaremos a contribuir, por omissão ou inacção, para antecipar a inevitável perda do bem
em causa, ou pelo contrário, concordando com a proposta supostamente destinada
à salvaguarda do bem, mas excessivamente interventiva, não estaremos a ser coniventes
com a sua irremediável adulteração pela perda da autenticidade que fundamenta a sua identificação como "património"?
Todos os que trabalhamos na área já lidámos com estas situações, mas recordo em particular um projecto de há uma década atrás que previa a “reconstrução
integral” da Vila de Juromenha (intra-muros) e a sua reutilização para fins turísticos. Por um lado tinha alguma estima pelos proponentes e estava ciente das suas "boas intenções". Por outro conhecia bem o estado de abandono a que chegara a Fortaleza. Tal projecto, do ponto de vista urbanístico, parecia juridicamente viável, uma vez que o Estado, através das Finanças, desafectava o “miolo” da Fortaleza (não considerado por aquela entidade como classificado e portanto não pertencente ao "domínio público") e entregava-o à autarquia do Alandroal que por sua vez se associava com os privados interessados na promoção do projecto. Em última instância, uma vez “restaurado todo o sistema amuralhado e reconstruídas as antigas “casas” da vila de Juromenha (a partir de documentação gráfica existente no Arquivo Histórico Militar), essas mesmas casas poderiam ser alugadas ou mesmo vendidas para fins turísticos. Tudo dependia, no entanto de um Plano de Pormenor de Reabilitação urbana, sobre o qual enquanto arqueólogo, tive oportunidade de emitir um parecer desfavorável, dadas as suas graves implicações arqueológicas. Não terá sido
apenas por razões patrimoniais que o projecto acabou por ser abandonado mas também
não poderemos escamotear o facto de, uma década depois o conjunto da Fortaleza
de Juromenha, continuar a aguardar uma qualquer solução de salvaguarda, que a resgate da situação de abandono e desmazelo em que vegeta, nem que
seja a simples consolidação como ruína romântica, recordando o seu papel
estratégico na formação e defesa da fronteira da nossa nacionalidade.
A Fortaleza de Juromenha, no Google |
Maquete do "Plano de Pormenor de Reabilitação" de meados da década passada |
O "miolo" da Fortaleza de Juromenha que se pretendia "reconstruir" |
A título de registo,
transcrevo parte do extenso “parecer” que redigi há exactamente
sete anos, sobre este projecto, e que terminava com uma proposta de Não Aprovação:
(citação)
“Deve evitar-se a reconstrução no “estilo do
edifício” de partes inteiras do mesmo. A reconstrução de partes muito limitadas
com significado arquitectónico pode ser excepcionalmente aceite, na condição de
que se fundamente em documentação precisa e irrefutável. Se for necessário para
o adequado uso do edifício, incorporar partes espaciais e funcionais mais
extensas, deve reflectir-se nelas a linguagem da arquitectura actual. A
reconstrução de um edifício na sua totalidade, destruído por um conflito armado
ou por desastres naturais, só é aceitável se existirem motivos sociais ou
culturais excepcionais, que estejam relacionados com a identidade própria de
toda a comunidade”- Artigo 4º da Carta de Cracóvia –2000 (Princípios para a
Conservação e Restauro do Património Construído) que retoma os princípios do
Artigo 9º da célebre Carta de Veneza de 1964 que acrescenta ainda que “La
restauration sera toujours précedée d’une étude archéologique et historique du monument.”
- Ainda que fosse possível
congregar outras citações elucidativas, estas só por si são suficientes para
mostrar que a proposta de intervenção para a Fortaleza da Juromenha vai contra
todas as regras e princípios defendidos internacionalmente, a partir da 2ª
metade do Século XX. Com efeito, pretendem os promotores privados, em
associação com a autarquia (para quem o Estado acaba de transferir a posse do
Artigo 88, ou seja de todo o “miolo” da Fortificação, cf. em Anexo a Portaria
de 17/11/2007, para efeitos da sua “recuperação e conversão”) promover uma
intervenção urbanística com fins turísticos envolvendo as seguintes
componentes:
- restauro
das muralhas e outras estruturas fortificadas, que continuarão a pertencer ao
Estado;
-
reabilitação de alguns edifícios ainda conservados no interior da Fortaleza e
sua adequação a novos usos;
-
construção/reconstrução, praticamente de raiz, de vários edifícios, ao “estilo
da época”, com base nas plantas do Século XVIII.
Citemos de novo o próprio
Plano: “ o empreendimento em questão consiste na
recuperação/reabilitação” da Fortaleza da Juromenha (...) para que essa
recuperação/reabilitação seja o mais real possível e crie o ambiente de uma
urbe fortificada, conciliando a arquitectura tradicional com a arquitectura
militar da segunda metade do Século XVIII.”
- Apesar de “tão contra a corrente” é evidente
que a presente proposta não resulta, de um lapso ou de uma abordagem
precipitada por parte dos promotores ou do arquitecto. Admitimos mesmo que
estes estão plenamente conscientes de (quase) todas as questões e reservas que
uma tal estratégia de recuperação hoje obrigatoriamente coloca. Sendo certo
que, cada vez mais, se aceita e impõe como solução para a salvaguarda e
valorização sustentável do património cultural, a sua reutilização para fins
sócio-económicos, nomeadamente turísticos, também é verdade que é habitual
contrabalançar essa reutilização com um conjunto de princípios que salvaguardem
a essência do bem que se pretende proteger, sob pena da “cura poder matar o
doente”. No caso em apreço, parte-se do princípio que a garantia da
preservação do essencial, o conjunto das Fortificações monumentais, passa pela
rentabilização económica do seu espaço livre interior, tirando partido da sua
excepcional situação e adaptando-o a usos turísticos. Não sendo situação
inédita em Portugal, a novidade parece estar essencialmente no “conceito de
reconstrução cenográfica” que é proposto e que, de algum modo se aproxima do
conceito do “parque temático”, cada vez mais em voga numa sociedade dominada
pela realidade virtual. Com uma diferença substancial, é certo. É que neste
caso, compensando a assumida falta de autenticidade (“pastiche”?)da
intervenção com a evidente mais valia do imponente significado histórico e
paisagístico do próprio lugar.
- Compreendida a motivação da
proposta, cabe à tutela do património cultural avaliar se a pretensão é
legítima, isto é, se o fim que em última análise se persegue com a
classificação do conjunto (a salvaguarda do património cultural para as
gerações futuras) não é posto em causa pelo projecto. Por outro lado, convém
ainda ter presente nessa avaliação a situação institucional do próprio bem.
Propriedade do Estado até há pouco tempo, que pouco ou nada foi fazendo pela
respectiva conservação, parte do conjunto classificado acabou por de ser transferido
recentemente para a posse do município do Alandroal, com a condição de este,
através de uma empresa municipal de capitais mistos assegurar “a recuperação
e reconversão do interior da Fortaleza de Juromenha, pela restauração das
muralhas, hornaveque, fortim e fortaleza que continuarão a pertencer ao Estado”.
(Portaria 1172/2007 de 17 de Novembro)
Uma abordagem conservacionista,
tratando o conjunto monumental de Juromenha como uma “ruína romântica” a
consolidadar, de enquadramento à reabilitação e reutilização do reedificado
existente, eventualmente complementado por algumas intervenções em linguagem
contemporânea, seria de certo patrimonialmente mais “correcto”. No entanto cabe
aos investidores avaliarem da viabilidade (sustentabilidade) dos seus investimentos.
Em contrapartida é responsabilidade da tutela do património, impôr as
condicionantes e exigir as garantias de que a solução que venha a ser adoptada,
independentemente de uma avaliação necessariamente subjectiva da respectiva
imagem conceptual, não ponha em causa o essencial do bem. E, a nosso ver, isso
passa pelos seguintes aspectos:
- garantia
de que são minimizados, através de um estreito e permanente acompanhamento
arqueológico, desde a fase de projecto até à da execução, os inevitáveis impactos
no subsolo do interior da Fortaleza, dada a sua óbvia importância
histórico-documental, se não mesmo patrimonial;
- garantia
de que a metodologia de recuperação e reabilitação do edificado existente
(muralhas e edifícios) obedece aos princípios e técnicas adequados aos valores
patrimoniais em presença e se fundamenta num diagnóstico e num projecto de
intervenção a ser submetido à apreciação das entidades de tutela;
- por fim, e
seja qual for a opção que venha a ser proposta para o “desenho” da construção/reconstrução,
que sejam claramente
identificados e fundamentados os respectivos critérios e opções, a serem
submetidos em fase de licenciamento às entidades da tutela.
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