sexta-feira, 16 de janeiro de 2015


Património, morrer pela doença ou pela cura? 
O exemplo da Fortaleza de Juromenha 



Raramente as opiniões técnicas que emitimos, enquanto “especialistas do património”, são lineares ou óbvias. Por vezes confrontamo-nos mesmo com opções complexas do género, “será que ao inviabilizar uma proposta de intervenção em património, ainda que a mesma contrarie alguns princípios metodológicos que consideramos essenciais, não estaremos a contribuir, por omissão ou inacção, para antecipar a inevitável perda do bem em causa, ou pelo contrário, concordando com a proposta supostamente destinada à salvaguarda do bem, mas excessivamente interventiva, não estaremos a ser coniventes com a sua irremediável adulteração pela perda da autenticidade que fundamenta a sua identificação como "património"? 

Todos os que trabalhamos na área  já lidámos com estas situações, mas recordo em particular um projecto de há uma década atrás que previa a “reconstrução integral” da Vila de Juromenha (intra-muros) e a sua reutilização para fins turísticos. Por um lado tinha alguma estima pelos proponentes e estava ciente das suas "boas intenções". Por outro conhecia bem o estado de abandono a que chegara a Fortaleza. Tal projecto, do ponto de vista urbanístico, parecia juridicamente viável, uma vez que o Estado, através das Finanças, desafectava o “miolo” da Fortaleza (não considerado por aquela entidade como classificado e portanto não pertencente ao "domínio público") e entregava-o à autarquia do Alandroal que por sua vez se associava com os privados interessados na promoção do projecto. Em última instância, uma vez “restaurado todo o sistema amuralhado e reconstruídas as antigas “casas” da vila de Juromenha (a partir de documentação gráfica existente no Arquivo Histórico Militar), essas mesmas casas poderiam ser alugadas ou mesmo vendidas para fins turísticos. Tudo dependia, no entanto de um Plano de Pormenor de Reabilitação urbana, sobre o qual enquanto arqueólogo, tive oportunidade de emitir um parecer desfavorável, dadas as suas graves implicações arqueológicas. Não terá sido apenas por razões patrimoniais que o projecto acabou por ser abandonado mas também não poderemos escamotear o facto de, uma década depois o conjunto da Fortaleza de Juromenha, continuar a aguardar uma qualquer solução de salvaguarda, que a resgate da situação de abandono e desmazelo em que vegeta, nem que seja a simples consolidação como ruína romântica, recordando o seu papel estratégico na formação e defesa da fronteira da nossa nacionalidade.
A Fortaleza de Juromenha, no Google

Maquete do "Plano de Pormenor de Reabilitação" de meados da década passada

O "miolo" da Fortaleza de Juromenha que se pretendia "reconstruir"

A título de registo, transcrevo parte do extenso “parecer” que redigi há exactamente sete anos, sobre este projecto, e que terminava com uma proposta de Não Aprovação:




 (citação)
“Deve evitar-se a reconstrução no “estilo do edifício” de partes inteiras do mesmo. A reconstrução de partes muito limitadas com significado arquitectónico pode ser excepcionalmente aceite, na condição de que se fundamente em documentação precisa e irrefutável. Se for necessário para o adequado uso do edifício, incorporar partes espaciais e funcionais mais extensas, deve reflectir-se nelas a linguagem da arquitectura actual. A reconstrução de um edifício na sua totalidade, destruído por um conflito armado ou por desastres naturais, só é aceitável se existirem motivos sociais ou culturais excepcionais, que estejam relacionados com a identidade própria de toda a comunidade”- Artigo 4º da Carta de Cracóvia –2000 (Princípios para a Conservação e Restauro do Património Construído) que retoma os princípios do Artigo 9º da célebre Carta de Veneza de 1964 que acrescenta ainda que “La restauration sera toujours  précedée  d’une étude archéologique et historique du monument.”

- Ainda que fosse possível congregar outras citações elucidativas, estas só por si são suficientes para mostrar que a proposta de intervenção para a Fortaleza da Juromenha vai contra todas as regras e princípios defendidos internacionalmente, a partir da 2ª metade do Século XX. Com efeito, pretendem os promotores privados, em associação com a autarquia (para quem o Estado acaba de transferir a posse do Artigo 88, ou seja de todo o “miolo” da Fortificação, cf. em Anexo a Portaria de 17/11/2007, para efeitos da sua “recuperação e conversão”) promover uma intervenção urbanística com fins turísticos envolvendo as seguintes componentes:

- restauro das muralhas e outras estruturas fortificadas, que continuarão a pertencer ao Estado;
- reabilitação de alguns edifícios ainda conservados no interior da Fortaleza e sua adequação a novos usos;
- construção/reconstrução, praticamente de raiz, de vários edifícios, ao “estilo da época”, com base nas plantas do Século XVIII.

Citemos de novo o próprio Plano: “ o empreendimento em questão consiste na recuperação/reabilitação” da Fortaleza da Juromenha (...) para que essa recuperação/reabilitação seja o mais real possível e crie o ambiente de uma urbe fortificada, conciliando a arquitectura tradicional com a arquitectura militar da segunda metade do Século XVIII.” 

-  Apesar de “tão contra a corrente” é evidente que a presente proposta não resulta, de um lapso ou de uma abordagem precipitada por parte dos promotores ou do arquitecto. Admitimos mesmo que estes estão plenamente conscientes de (quase) todas as questões e reservas que uma tal estratégia de recuperação hoje obrigatoriamente coloca. Sendo certo que, cada vez mais, se aceita e impõe como solução para a salvaguarda e valorização sustentável do património cultural, a sua reutilização para fins sócio-económicos, nomeadamente turísticos, também é verdade que é habitual contrabalançar essa reutilização com um conjunto de princípios que salvaguardem a essência do bem que se pretende proteger, sob pena da “cura poder matar o doente”. No caso em apreço, parte-se do princípio que a garantia da preservação do essencial, o conjunto das Fortificações monumentais, passa pela rentabilização económica do seu espaço livre interior, tirando partido da sua excepcional situação e adaptando-o a usos turísticos. Não sendo situação inédita em Portugal, a novidade parece estar essencialmente no “conceito de reconstrução cenográfica” que é proposto e que, de algum modo se aproxima do conceito do “parque temático”, cada vez mais em voga numa sociedade dominada pela realidade virtual. Com uma diferença substancial, é certo. É que neste caso, compensando a assumida falta de autenticidade (“pastiche”?)da intervenção com a evidente mais valia do imponente significado histórico e paisagístico do próprio lugar.

- Compreendida a motivação da proposta, cabe à tutela do património cultural avaliar se a pretensão é legítima, isto é, se o fim que em última análise se persegue com a classificação do conjunto (a salvaguarda do património cultural para as gerações futuras) não é posto em causa pelo projecto. Por outro lado, convém ainda ter presente nessa avaliação a situação institucional do próprio bem. Propriedade do Estado até há pouco tempo, que pouco ou nada foi fazendo pela respectiva conservação, parte do conjunto classificado acabou por de ser transferido recentemente para a posse do município do Alandroal, com a condição de este, através de uma empresa municipal de capitais mistos assegurar “a recuperação e reconversão do interior da Fortaleza de Juromenha, pela restauração das muralhas, hornaveque, fortim e fortaleza que continuarão a pertencer ao Estado”. (Portaria 1172/2007 de 17 de Novembro)

Uma abordagem conservacionista, tratando o conjunto monumental de Juromenha como uma “ruína romântica” a consolidadar, de enquadramento à reabilitação e reutilização do reedificado existente, eventualmente complementado por algumas intervenções em linguagem contemporânea, seria de certo patrimonialmente mais “correcto”. No entanto cabe aos investidores avaliarem da viabilidade (sustentabilidade) dos seus investimentos. Em contrapartida é responsabilidade da tutela do património, impôr as condicionantes e exigir as garantias de que a solução que venha a ser adoptada, independentemente de uma avaliação necessariamente subjectiva da respectiva imagem conceptual, não ponha em causa o essencial do bem. E, a nosso ver, isso passa pelos seguintes aspectos:

- garantia de que são minimizados, através de um estreito e permanente acompanhamento arqueológico, desde a fase de projecto até à da execução, os inevitáveis impactos no subsolo do interior da Fortaleza, dada a sua óbvia importância histórico-documental, se não mesmo patrimonial;

- garantia de que a metodologia de recuperação e reabilitação do edificado existente (muralhas e edifícios) obedece aos princípios e técnicas adequados aos valores patrimoniais em presença e se fundamenta num diagnóstico e num projecto de intervenção a ser submetido à apreciação das entidades de tutela;

- por fim, e seja qual for a opção que venha a ser proposta para o “desenho” da construção/reconstrução, que sejam claramente identificados e fundamentados os respectivos critérios e opções, a serem submetidos em fase de licenciamento às entidades da tutela.

(Janeiro de 2007)


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