Do projecto da Carta Arqueológica de Portugal ao “ENDOVÉLICO”, passando
pela “messe” dos cadetes de Mafra
Há momentos que, por uma qualquer razão especial, perduram
indelevelmente na nossa memória. O exemplo clássico, para a geração dos
cinquenta ou mais, está definitivamente retratado na célebre pergunta do jornalista Baptista –
Bastos, “onde é que você estava no 25 de Abril?” Ontem, ao consultar um velho
processo da “primeira” Direcção Geral do Património Cultural (primeira, porque
após um longo périplo de 3 décadas, temos hoje de novo uma DGPC!), deparei com
um Relatório de 1976, assinado pelo saudoso Dr. Nunes de Oliveira, que dava
conta das conclusões de uma reunião da Comissão para a CAP (Carta Arqueológica
de Portugal) de que faziam parte, entre outros os Drs. Bairrão Oleiro e Jorge
de Alarcão, com a Fundação Calouste Gulbenkian, representada pelo Dr. Artur
Nobre de Gusmão, então director do respectivo serviço de Belas-Artes. Ainda que
aquele ambicioso projecto contasse essencialmente com o apoio financeiro da
Fundação, resulta da leitura deste documento que aquela entidade, esperava que
o Estado, através da DGPC, reforçasse a respectiva participação com meios
humanos e técnicos. Previa-se então, segundo consta do referido relatório, a formação de quatro equipas de campo que
seriam dirigidas pelos arqueólogos Vitor Oliveira Jorge, já então na
Universidade do Porto, Victor Gonçalves e José Morais Arnaud, da Universidade de Lisboa
e ainda de António Cavaleiro Paixão. A participação deste último, acabado de chegar de
Moçambique onde lecionara na Universidade de Lourenço Marques, estava, no
entanto, dependente da respectiva contratação pela DGPC, o que viria a acontecer
ainda em Julho desse mesmo ano de 1976. Naturalmente, seria necessário congregar
novos elementos para constituir as quatro equipas de campo e, nessa reunião,
falava-se já da organização de um curso para jovens prospectores com esse
objectivo o qual, no entanto apenas viria a concretizar-se no ano seguinte. É aí que a memória selectiva funcionou no meu caso: recordo
exactamente o sítio onde estava há quase quarenta anos, quando por mero acaso, deparei
com o anúncio de jornal que publicitava as inscrições para participação no
curso. Terá sido num fim de tarde de Setembro ou Outubro de 77, no Convento de
Mafra, frente a uma "mini" ao balcão da “messe” dos cadetes do curso de oficiais milicianos
de infantaria, um tugúrio localizado no nível térreo do gigantesco e
labiríntico convento, ao lado de um corredor tão largo que nele ainda circulavam os velhos Jeeps
retornados da guerra colonial, a caminho da armaria para montar ou desmontar os
canhões sem recuo de 120mm (?). Em termos objectivos, aquela que parecia ser a
primeira oportunidade que se me deparava de poder afinal seguir uma carreira
profissional ligada à arqueologia, coisa que até então parecia impossível em
Portugal, surgia no momento mais inoportuno que poderia imaginar: em pleno
serviço militar obrigatório, que pese embora os recentes 25 de Abril e de
Novembro, continuava a ser um “intervalo” muito concreto na vida dos jovens
portugueses. É portanto, fácil imaginar a frustração sentida.
O anunciado curso de “prospectores” acabou por realizar-se
ainda que com muitas peripécias pelo meio que outros meus contemporâneos que
nele participaram poderão um dia relatar, o que não impediu que o projecto da
CAP apoiado pela Fundação Gulbenkian viesse a revelar-se um tremendo fiasco. De
facto, pese embora o voluntarismo e a competência dos envolvidos, bem como
algum dinheiro da Gulbenkian ainda investido, a inexistência de um adequado enquadramento
institucional, revelava-se fatal para responder às complexas questões técnicas
e logísticas que um empreendimento nacional daquela natureza, implicava. Em
termos práticos, o projecto CAP apoiado pela Gulbenkian não foi além de algumas
semanas de trabalho, de um reduzido número de arqueólogos, concretizado entre Oriola e
Alvito (local escolhido porque estava em construção a respectiva Barragem) e o
próprio conceito de uma Carta Arqueológica, assumida como um projecto de âmbito
nacional, ainda que inscrito no programa inicial do Departamento de Arqueologia
do IPPC criado no Outono de 1980 (e com o qual deparei com a segunda e
definitiva oportunidade de me profissionalizar) viria a ser
abandonado e substituído pelo conceito de um inventário nacional dinâmico, hoje
materializado na base de dados informática do ENDOVÉLICO.
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