quinta-feira, 1 de setembro de 2016

A Torre de Vilharigues (Vouzela)

ou como um mau "programa" pode inquinar um bom "projecto"




As férias também servem para redescobrir o nosso património. Por vezes com agradáveis surpresas a pedirem um próximo regresso, se possível programado, (por exemplo para seguir de fio a pavio a "rota do românico dos Vales do Sousa, Tâmega e Douro", muito mais afinal,como pude verificar nalguns sítios que visitei, do que uma mera operação de "marketing" como acontece com a maioria das "rotas e roteiros" deste país...) Outras vezes com surpresas "agri-doces" ou "semi-frias", como é o caso da Torre de Vilharigues, no concelho de Vouzela. 

Visitada por acaso (graças à chamada de atenção do proprietário de um turismo de habitação próximo, onde pernoitei...) fiquei deveras impressionado com a qualidade e modernidade do "projecto arquitectónico", inesperado face ao contexto rural onde o monumento se insere. Visitei pois a Torre, sem qualquer preconceito, até porque desconhecia a situação anterior à recente obra municipal, (a placa de inauguração remete para 2013), ainda que com alguma sensação de que havia ali algo não batia certo. E não era apenas o recurso aos materiais modernos (aço corten, vidro, madeira) ou a introdução de elementos não pré-existentes (como a rampa de acesso ou o deck/palanque). Havia ali qualquer coisa que não jogava e que, ao aproximar-me, a "porta", já vandalizada e trancada com uma corrente, parecia confirmar. Ou seja, aparentemente o projecto fora encomendado sem "programa" ou, quanto muito, com um programa irrealista ou insustentável. Por entre as paredes de vidro pude observar que a "torre" recuperada, estaria a ter uma utilização meramente ocasional. 


Procurei pois na INTERNET (hoje está lá quase tudo) alguma informação sobre os respectivos antecedentes. Comecei por encontrar uma nota do jornal "Público" de 2004 em que, ainda em fase de projecto, se anunciava a obra logo que conseguido o respectivo financiamento. Afinal havia um programa para ocupação dos 3 pisos da torre: criação de um espaço museológico e de um centro multimédia de apresentação do "roteiro de torres medievais de Vouzela". Não duvidamos da bondade da intenção, parece-nos é que ninguém se deu ao trabalho de reflectir sobre o real interesse de uma estrutura desse tipo (estimar por exemplo o potencial de atractividade em nº de visitantes) ou sobre as condições mínimas necessárias (sobretudo humanas) para manter em funcionamento uma estrutura dessas.



A Torre de Vilharigues, antes das obras de 2013 (imagem recuperada graças ao Google earth)

INICIATIVA DA AUTARQUIA LOCAL
Vouzela vai criar roteiro de torres medievais
26/02/2004 - 13:54

A Câmara Municipal de Vouzela vai criar um roteiro das torres medievais do concelho, faltando apenas iniciar as obras de recuperação na de Vilharigues, um projecto hoje entregue na Direcção Regional de Agricultura da Beira Litoral (DRABL).

Depois de concluídas as obras de requalificação na torre de Alcofra e de a intervenção na torre de Cambra ter começado há dois meses, a autarquia aguarda agora o financiamento do programa Agris (Medida Agricultura e Desenvolvimento Rural) para o projecto de Vilharigues.

"Falta apenas a aprovação do projecto, que entreguei hoje na DRABL. Logo que seja dada luz verde, arrancamos com a obra", disse à Lusa o presidente da autarquia de Vouzela, Telmo Antunes, que está confiante que o financiamento do Agris será conseguido, como aconteceu no caso da torre de Alcofra.

A intervenção para consolidar a torre de Vilharigues — que se encontra muito danificada, com apenas duas paredes de pé — está orçada em mais de 170 mil euros.

Segundo o autarca social-democrata, será feita uma espécie de caixa em vidro que encaixará nas paredes de pedra existentes e colocados três pisos que servirão para espaço museológico, exposições e zona multimédia. No exterior ficará uma casa de banho e "um palco, muito pequeno, para não interferir com a torre".

"As pedras que faltam já foram retiradas há muitos anos. O nosso objectivo não é reconstruir a torre, mas, através de materiais modernos como o vidro, fazer uma intervenção que pode ser removida se, por exemplo, daqui a cem anos alguém chegar à conclusão que é de mau gosto", explicou.

A autarquia pretende também melhorar o espaço envolvente da torre, uma intervenção orçada em 250 mil euros, que irá candidatar ao Piter (Programa Integrado de Turismo Estruturante de Base Regional).

Em Alcofra, a zona da torre foi igualmente valorizada, tendo a Câmara comprado as casas e os currais que a rodeavam. Alguns dos edifícios foram demolidos e outros aproveitados para actividades da população.

Já a recuperação da torre de Cambra integra-se no contrato de aldeia financiado pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro, que tem previstas intervenções para todo o centro da freguesia.

O autarca disse ainda que gostaria também de integrar no roteiro de torres medievais uma quarta que existiu no concelho, em Bandavizes (Fataunços), mas da qual já nada resta.

Depois de um longo período sem qualquer utilização, a autarquia quer devolver as torres à população, para aí realizar actividades culturais, e também atrair turistas ao concelho.

"Não temos castelos como outros pontos do país, mas com as torres podemos potenciar o turismo", afirmou, lembrando que Vouzela fica muito próximo de dois importantes pólos turísticos da região: as termas de S. Pedro do Sul e a Serra do Caramulo.

Em todo o caso, pelo estado em que a Torre actualmente se encontra, incluindo o bloco anexo de WC (tudo fechado a cadeado e já com alguns sinais de vandalismo) parece óbvio que o programa, apesar de rigorosamente respeitado pelo projecto, não está a ser cumprido. E de facto, por elementos também recolhidos na Internet, percebe-se que a comunidade local terá tido consciência dos problemas e terá entretanto tomado as suas medidas:




Torre de Vilharigues (Maio de 2013)
 A Junta de Freguesia, Sociedade Musical Cultura e Recreio, e Liga dos Amigos de Vilharigues, são as três entidades envolvidas numa estratégia de promoção conjunta da Torre Medieval de Paços de Vilharigues. Para o efeito, constituíram a Associação «Pa(ç)ssos» – que terá na Câmara Municipal “um parceiro activo” -, especificamente para estimular a utilização deste espaço emblemático da localidade e do concelho de Vouzela. O projecto deverá arrancar já no primeiro fim-de-semana de junho.De entre as várias iniciativas que integram o plano de dinamização da Torre de Vilharigues, já apresentado, destacam-se a criação de uma rota pedestre, promoção da história de D. Duarte de Almeida e da Batalha de Toro, edição de postais e venda de produtos, dinamização da rota das torres em conjunto com Cambra e Alcofra, e promoção do intercâmbio com as unidades hoteleiras e turísticas da região.O primeiro piso da torre estará reservado a uma exposição alusiva a D. Duarte de Almeida, o segundo à história local, e o terceiro à leitura, escrita, inspiração e arte, numa espécie de mini – biblioteca. Paralelamente haverá ainda exposições temporárias, recitais, música, provas gastronómicas, palestras, filmes, direitos desportivos, serviço de cafetaria / bar / mesa e atividades culturais no palco.A torre abre durante os meses de primavera e verão, aos sábados e domingos, das 15h às 20h. Já o serviço de esplanada abrirá das 19h às 22h durante os dias da semana e às sextas, sábados e domingos das 14h às 24h. Os visitantes terão ainda acesso à rede wireless em todo o espaço.

Indícios de vandalismo (ou desadequação dos "materiais" às condições climatéricas?), revelando um espaço pouco ou nada utilizado



Apesar de ainda algo exigente e condicionada "à posteriori" pelo projecto de arquitectura já executado, este "programa", tem uma vantagem inegável. Nasce da vontade e do interesse da população local, afinal os primeiros interessados na valorização do seu próprio património. Mas infelizmente, por aquilo que me foi dado observar no local, nem este programa parece estar a ser cumprido.
 





Pelo que chegamos à questão que mais me impressionou na Torre de Vilharigues e que infelizmente é mais comum em Portugal do que poderão imaginar os leigos na matéria. Não é raro assistirmos a intervenções, nomeadamente ao nível da recuperação patrimonial, (umas melhores outras piores) em que as questões programáticas são secundarizadas ou mesmo inexistentes. Recupera-se o património "porque sim"...ou pior ainda, para se mostrar "obra"...

A culpa, obviamente não está do lado dos arquitectos que, como acontece neste exemplo, respondem antes de mais às exigências e condicionantes de quem os contrata. Certamente, a resposta seria outra (e seguramente bem mais económica) se neste caso o programa exigisse apenas a consolidação das estruturas remanescentes, com a eventual criação de condições que permitissem para além da recuperação volumétrica dos pisos desaparecidos, o acesso dos visitantes (independentemente de complexos sistemas de "guardaria" ou "musealização") ao topo da estrutura para daí, em segurança e em liberdade, redescobrirem toda a extraordinária grandeza da paisagem envolvente. 




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