Ainda os "Coches e a Arqueologia"
Como era de esperar, a polémica em torno do novo Museu dos Coches, está para durar, e provavelmente irá renascer sempre que estiver em cima da mesa a discussão dos magros Orçamentos para a Cultura... E entretanto, falando com um amigo que trabalha no Museu do Côa, vim a saber que em Maio (agora já Junho), o Museu e a Fundação que inventaram para o gerir (?), continuava sem orçamento para 2015 e que os salários dos poucos trabalhadores que asseguram o seu funcionamento estão sempre atrasados e em risco. Mas Foz Côa é bem longe da Ajuda-Belém...
Já depois do lapidar artigo da Raquel Henriques da Silva:
www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-rei-nu-na-cultura-em-portugal-e-uma-proposta-para-fazer-diferente-1696375
coube agora a Luis Raposo, com a ironia certeira que caracterizam as suas intervenções cívicas, de se pronunciar:
www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/coches-corporacoes-e-ma-politica-1697279?frm=opi
Aproveitando o balanço, aqui deixo mais em jeito de registo, um texto que escrevi em 2009 e que se intitulava
SALVEMOS OS ARQUIVOS DA ARQUEOLOGIA PORTUGUESA
Ainda que com risco de ser acusado de falta de isenção, dada
a minha formação e interesse profissional, não tenho dúvidas em afirmar que é
no domínio do património arqueológico que se podem identificar os maiores
prejuízos, se não mesmo os mais graves retrocessos, associados à recente e
desastrada reestruturação do Ministério da Cultura (ver a recente tomada de
posição do ICOMOS Portugal, divulgada pelo “Público” em 24 de Abril passado).
Entre os efeitos perversos, o mais óbvio é desde logo a extinção do Instituto
Português de Arqueologia (IPA), uma estrutura recente, criada em 1997 pelo
Governo Guterres na sequência da polémica em torno da Arte Rupestre do Côa.
Ainda que partilhando tal sorte com o também extinto IPPAR, o que de facto é
marcante no processo de extinção/fusão daquele jovem serviço público de
Arqueologia no novo “IGESPAR”, é a drástica redução a simples “Divisão”,
apelidada de “Arqueologia Preventiva e de Acompanhamento”, da componente de
intervenção territorial, que marcara a diferença com o passado. Infelizmente,
os cortes não se reduziriam apenas às componentes estruturais, até porque estas
estavam longe de ver preenchidos os respectivos quadros. Num processo herdado
de anteriores governos e que se arrastava há longos meses, o IPA vinha a sofrer
um processo de emagrecimento técnico forçado, pondo em causa a sua eficiência.
No final do ano passado, como foi então largamente noticiado, apenas o receio
do vazio absoluto, terá evitado (ou adiado) o golpe final na capacidade
técnico-arqueológica do novo IGESPAR, com o impedimento “in extremis” do
despedimento de duas dúzias de arqueólogos “avençados”. Com efeito, após uma
década de precariedade, são ainda os “avençados” que continuam, quase em
exclusivo, a assegurar de Norte a Sul, as funções e responsabilidades técnicas
cometidas nesta matéria ao Estado pela legislação nacional ou mesmo, pelas
convenções internacionais. Esses princípios, hoje comuns a todos os Estados
modernos, obrigam os projectos que interferem de forma significativa com o
subsolo urbano ou rural a ser acompanhados das medidas preventivas capazes de
precaverem ou minimizarem a perda ou a destruição de vestígios materiais do
passado, seja através dos Estudos de Impacte Ambiental, seja através dos
mecanismos de gestão e planeamento territorial, aos seus diferentes níveis de
execução. Tais princípios, associados à eficácia que o IPA demonstrara perante
as solicitações e desafios da sociedade, complementada por alguma capacidade
reguladora e fiscalizadora, viriam a estar na origem de um crescimento quase
explosivo da actividade arqueológica de iniciativa privada, respondendo às
novas exigências legais rapidamente integradas pela própria estrutura
económica.
Um ano após a extinção do IPA, como era previsível, são cada
vez mais evidentes as dificuldades da esforçada “Divisão de Arqueologia
Preventiva e de Acompanhamento” do IGESPAR, em manter os mesmos níveis de
eficiência. A perda de meios humanos qualificados, a inesperada complicação dos
circuitos burocráticos e administrativos (o IGESPAR continua repartido por
diferentes instalações) ou mesmo a incompatibilidade dos sistemas informáticos,
reflectem-se no alargamento dos prazos de resposta, ou mais grave ainda, na
incapacidade de regulação e fiscalização, o que, numa actividade hoje muito
dependente do mercado, se está a revelar particularmente grave (como vêm
alertando os próprios operadores privados). Infelizmente, novas e inesperadas
ameaças se perfilam no horizonte, algumas das quais de efeitos irrecuperáveis,
se concretizadas. Em 1997 o IPA instalou os seus serviços nos devolutos
edifícios militares, vizinhos do Palácio de Belém e do Museu dos Coches. Ainda
que muito degradadas, tais instalações acabaram por responder às significativas
necessidades de espaço do novo Instituto, confrontado com a necessidade de
armazenar numerosos materiais arqueológicos e acomodar laboratórios ou mesmo
equipamentos pesados, nomeadamente da Arqueologia Subaquática. Entre os meios e
recursos herdados pelo IPA e instalados em Belém após execução de obras de
adaptação, ganharam especial importância, no contexto das suas atribuições
territoriais, a valiosa Biblioteca (antiga Biblioteca da delegação de Lisboa do
Instituto Arqueológico Alemão) e o Arquivo da Arqueologia Portuguesa. Se a
biblioteca é considerada a melhor e mais completa biblioteca arqueológica do
país, o Arquivo é único, porque conserva desde que há registos até hoje, toda a
documentação produzida pelos arqueólogos sobre os sítios e monumentos
arqueológicos intervencionados, muitos dos quais já nem sequer existem. É certo
que, existem lacunas importantes, até porque parte da documentação mais antiga,
proveniente dos arquivos do antigo Ministério da Educação Nacional, se terá
perdido. Sucessivas reestruturações também se terão traduzido no extravio de
alguns processos, mas o essencial foi preservado e o Arquivo, em permanente
actualização e articulação com o Sistema Informático “Endovélico”, tem-se
revelado um instrumento de trabalho essencial não apenas para os arqueólogos
dos serviços, mas em particular para os arqueólogos das empresas responsáveis
pelos estudos e avaliações de impacto. A real ameaça de despejo a curto prazo
que pesa sobre os serviços de Arqueologia em geral, mas em particular sobre o
Arquivo e a Biblioteca, sem que se anunciem ou vislumbrem alternativas
credíveis para a sua reinstalação, pode representar a machadada final na
herança extremamente positiva do IPA, com consequências graves para a
salvaguarda do património e, mesmo para a actividade económica de dezenas de
empresas e centenas de profissionais do sector. Mesmo evitando entrar na
discussão do polémico projecto onde vão ser investidos “os milhões” do Casino
de Lisboa - um “novo Museu dos Coches” anunciado precisamente para o local onde
durante a última década funcionou o IPA- haverá que exigir do Ministério da
Cultura, a garantia da integridade e da operacionalidade de um fundo documental
único que encaixotado, disperso ou simplesmente inacessível, estará condenado a
desaparecer, o que a acontecer, seria um verdadeiro crime de “lesa património”.
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