terça-feira, 16 de junho de 2015

Glandes plumbeae


Para os não especialistas em arqueologia romana (incluo-me obviamente na categoria) este título significa simplesmente, "projécteis de funda em chumbo" e aprendi (com algum embaraço) que podem ser elementos muito interessantes da cultura material romana ligados à vida militar, dada a sua mais valia como indicadores histórico-cronológicos. Dois factos recentes e praticamente coincidentes, fizeram-me recordar como aprendi a reconhecer estes artefactos. No dia em que o Rui Mataloto me enviou um dos seus últimos trabalhos (A propósito de um conjunto de glandes plumbeae: o Castelo dasJuntas (Moura) no contexto do episódio Sertoriano das Guerras Civis na margem esquerda do Guadiana - http://www.museumunicipalvfxira.pt/files/3/documentos/20150506172145722916.pdf) tinha acabado de estar no Museu de Évora frente à vitrine com materiais do Castelo da Lousa, uma parte do conjunto resultante das escavações que Afonso do Paço aí realizou nos anos 60. A razão de tal visita feita com o Arquitecto Pedro Pacheco e a responsável pelo Museu da Luz, Maria João Lança, relaciona-se com um projecto ainda em embrião de realização de uma exposição sobre o afundado Castelo da Lousa e, lá tive de explicar ao Pedro Pacheco, que artefactos eram aqueles pequenos "chumbos".

A vitrine do Castelo da Lousa no Museu de Évora e as três glandes plumbeae do Castelo da Lousa (escavações de Afonso do Paço)



Julgo que terá sido numa das primeiras campanhas na Foz do Enxarrique, dirigidas pelo Luis Raposo e por mim nas margens do Tejo em Ródão, um sítio do Paleolítico Médio identificado no final dos anos 70 pelo nosso amigo Francisco Henriques, que após meticulosa escavação do que parecia uma lareira paleolítica, semelhante à que escaváramos em Vilas Ruivas anos antes, se descobriram em directa associação com a dita lareira, três objectos de chumbo que deitaram por terra a hipótese de estarmos perante estruturas da idade da pedra. De facto ao contrário de Vilas Ruivas, sítio paleolítico "contemporâneo" do Enxarrique, em que encontrámos estruturas de habitat e combustão, estando ausentes os vestígios de fauna, neste caso a fauna era abundantíssima (incluindo um raro fragmento de antepassado do elefante) mas não havia sinais de estruturas. E perante o achado de "chumbadas de pesca", precipitadamente classificadas como tal pelos "especialistas paleolíticos", a lareira foi imediatamente classificada de "moderna". Mais tarde pudémos mesmo confirmar essa diferenciação com uma leitura mais atenta da própria estratigrafia do local. Assim deveriamos estar perante os vestígios de uma pescaria, até porque o sítio era desde sempre procurado para esse efeito. Meses mais tarde, por mero acaso, tivémos a sorte do Amílcar Guerra, na altura a escavar com Carlos Fabião um acampamento militar romano em Arganil, a "Lomba do Canho", identificado nos anos 50 por João de Castro Nunes, ter reparado nas "chumbadas" esquecidas em cima da secretária do Luis Raposo no primeiro andar do Museu de Arqueologia, em Belém. Algum tempo depois num artigo que Amilcar Guerra preparou para O Arqueólogo Português (Vol. 5 da S. IV) as três "glandes plumbeae" do Enxarrique seriam devidamente publicadas, correspondendo aos últimos nºs de catálogo do inventário geral das glandes encontradas até então no território português, num total de 28, ao lado dos conjuntos de Mértola (3) Casal da Cascalheira, Chamusca (9) do Castelo da Lousa (3), hoje expostos em Évora, de Carviçais, Moncorvo (1) e da Lomba do Canho (9).
 
As glandes do Castelo da Lousa (14,15 e 16) e da Foz do Enxarrique (26,27 e 28), publicadas por Amilcar Guerra

De referir que este catálogo está claramente desactualizado, tendo em conta a informação disponibilizada entretanto por Rui Mataloto no artigo acima citado. Com efeito, provenientes do Castelo das Juntas, um sítio nas margens da Ribeira do Alcarrache (Moura) identificado por Fragoso de Lima nos anos 30 e estudado no âmbito do Alqueva, Mataloto publica cerca de seis dezenas de projécteis ainda que, quase todos associados a um antigo achado ocasional, provavelmente com o apoio (hoje legalmente de uso muito restrito) de um detector de metais. No âmbito daquele estudo Rui Mataloto publica ainda 4 novos achados nas escavações do Alqueva, 3 das Juntas e um da Lousa.

Gravura publicada por Rui Mataloto: A- projécteis encontrados nas escavações do Alqueva, no Castelo das Juntas; 67- novo projéctil das escavações do Alqueva no Castelo da Lousa que se vem acrescentar aos 3 do Museu de Évora

Em resumo, e ainda para os mais leigos que eu nesta matéria, donde vem a importância destes pequenos objectos? Antes de mais o seu tempo de uso parece ter sido algo limitado e no território português parecem sempre associados a sítios atribuídos à época republicana, ou seja aos séculos II e I a.C.Sabemos que os romanos também usavam outros projectos manuais, com recurso ou não à funda,as glandes latericiae, ou seja, em pedra, mais ou menos afeiçoada para o efeito. Aparentemente, o uso do chumbo, por razões económicos deverá ter sido abandonado em época imperial. Depois, vem sempre a informação funcional destes objectos "militares". O seu aparecimento pode ou não servir de indicador da presença de militar ou até de actividade bélica? No caso do Castelo da Lousa, o seu aparecimento foi um dos argumentos básicos para o arqueólogo (antigo militar, com o posto de Coronel) Afonso do Paço considerar estar na presença de um pequeno forte, suficiente para abrigar um destacamento de controle do Guadiana, tese hoje afastada pelos resultados das campanhas de escavação, já publicadas, realizadas no contexto do Alqueva. E no que se refere ao Enxarrique, sítio nas margens do Tejo fronteiro às estratégicas Portas do Ródão, local de passagem do Tejo, como aconteceu com a primeira invasão francesa de Junot em 1807 (retratada em numerosas gravuras da época)? Eu e o Luis Raposo, graças à ajuda do Amílcar Guerra sempre gostámos de imaginar que afinal, a tal fogueira que inicialmente atribuiramos a caçadores do Paleolítico Médio (o que lhe daria a bonita idade de pelo menos 30 000 anos), servira afinal para aquecer a noite a um pequeno destacamento ao serviço das tropas do General Junio Bruto que algures no século II a C (há uns míseros 2 000 anos) escolhera aquele local, de inegável beleza e espectacular enquadramento, para acampar. As glandes plumbeae ali esquecidas, acabaram por ser o elo perdido com a memória desse acaso.


A Foz do Enxarrique (junto á tomada de água) vistas das Portas do Ródão. Escavações no sítio do Paleolítico Médio da Foz do Enxarrique, nos anos 80.

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