sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018


Os Neanderthais nas origens da "Arte"?




Com um dia de atraso relativamente ao “El Pais”, os diários de referencia portugueses (Público e Diário de Notícias) não deixaram de dar hoje (23 de Fevereiro) o devido destaque à notícia da publicação pela Science, com direito a destaque e foto de capa, de um recente artigo em que se defende que, afinal os Neanderthais já tinham “capacidades artísticas”. A chamada da capa da revista refere-se a “Minds at work. Oldest dated cave art, pointed to Neanderthal symbolic behaviour”. O título do “El Pais” realça a antecipação cronológica das origens da arte que recuam cerca de duas dezenas de milhares de anos, mas não deixa de destacar que a essa revelação foi feita em "três grutas espanholas". Já o DN dá prioridade à circunstancia de um português (João Zilhão) coordenar a equipa responsável pela investigação. O Público, mais sóbrio, fica-se no seu destaque de capa pela descoberta de que afinal os Neanderthais já faziam arte.



Mas que significa esta “descoberta” que tal como vários arqueólogos se apressaram a comentar, apesar da sua importância e significado, não é de todo inesperada face ao que hoje se conhece sobre esta espécie humana (Homo Neanderthalensis), parcialmente nossa contemporânea mas extinta (segundo alguns), ou uma espécie que, afinal, faz parte da nossa própria linhagem ("contributiva líquida" do nosso genoma)  segundo outros?

O articulista do El Pais, com evidente exagero jornalístico, fala em "revolução", equiparando-a mesmo à futura descoberta de uma qualquer espécie alienígena inteligente… Mas, como o Luis Raposo  lembrou hoje mesmo, através do Facebook, “ Nenhum dado arqueológico nos autorizava a considerar os Neanderthais, intelectual ou evolucionariamente inferiores aos humanos modernos (...)” 

Para quem não saiba, o Luis Raposo, reputado arqueólogo e museólogo, integrava a equipa que há quase quarenta anos escavou um "acampamento Neanderthal" no Vale do Tejo (Vilas Ruivas, Vila Velha de Ródão)  a que, por coincidência, me referi há dias neste blog  ver aqui . Estas escavações, em que  João Zilhão, ainda estudante, também participou, revelaram um conjunto de estruturas complexas para abrigo e aquecimento, que sem qualquer novidade, mostravam cadeias operatórias próprias de uma capacidade cognitiva e intelectual de cariz humano. Por acaso, Vilas Ruivas, situa-se, a poucas dezenas de quilómetros da Gruta de Maltravieso (Caceres), um dos locais onde agora foram obtidas estas extraordinárias datações. Os caçadores "artistas" de Maltravieso, frequentavam certamente o Vale do Tejo...

A confirmarem-se as datações agora reveladas e esclarecidas eventuais questões de contexto (o método em causa não data directamente os pigmentos mas as camadas de calcite que servem de suporte ou que cobrem as pinturas…), é todo um novo capítulo que se abre à investigação da arte rupestre a nível mundial (mais um salto científico, equiparável ao que representou há vinte anos a descoberta do Complexo Rupestre do Côa, no que respeita aos ambientes e significados da arte rupestre paleolítica, como serenamente recordou hoje o António Martinho Baptista nos comentários a esta notícia feitos a pedido do Público.

E, já agora, talvez venha a ser necessário olhar sob esta nova perspectiva para a única cavidade portuguesa onde, até hoje, estão identificados vestígios de pintura paleolítica, a Gruta do Escoural (Montemor-o-Novo), cuja arte foi também objecto de amostragem no âmbito do projecto responsável pelas actuais revelações. Com efeito, em 2011, a equipa coordenada por João Zilhão, Alistair W. Pike e Dirk Hoffmann, procedeu à recolha de duas dezenas de amostras de calcite associadas a uma dezena motivos selecionados (pintura e gravura) nesta cavidade portuguesa. Infelizmente, por insuficiência de financiamento (o projecto que dura há uma dezena de anos, tem sido apoiado pela CE), a maioria das amostras do Escoural ainda aguarda tratamento laboratorial. 

Recolha de calcite associada a uma das pinturas da Gruta do Escoural (Janeiro de 2011)

Mas haverá alguma possibilidade de no contexto da cerca de uma centena de grafismos conhecidos nesta Gruta, haver vestígios que possam vir a ser atribuídos aos Neanderthais? Alguns dados podem vir a favorecer essa hipótese. Desde logo, junto à abertura que sempre se considerou como entrada natural da gruta (virada da Nascente, no lado oposto à fenda aberta pela exploração da pedreira em 1963, hoje utilizada pelos visitantes), foi reconhecida nas escavações luso-belgas dos anos 90, a presença de uma importante ocupação Neanderthal (instrumentos líticos e restos de fauna de grandes mamíferos) inequivocamente datada pelo Carbono 14 (cerca de 50 000 aC). Naturalmente, à luz dos dados tradicionais, nunca foi até hoje estabelecida qualquer conexão entre esta ocupação e a arte rupestre identificada no interior da cavidade. Um outro factor a ter em conta numa eventual reavaliação, decorre da própria natureza formal dos vestígios rupestres em presença. André Glory, o estudioso de Lascaux que em 1965 visitou o Escoural no âmbito de uma missão apoiada pela Fundação Gulbenkian e pelo mecenas MaximeVaultier ( ver aqui ), defendeu desde logo para os vestígios rupestres do Escoural, onde a par de alguns motivos zoomórficos naturalistas mas muito singelos, abundam os signos esquemáticos, uma cronologia muito recuada (aurignacense) nas origens do Paleolítico Superior. Tal reconhecimento valeu também na época alguns títulos hiperbólicos por parte da imprensa, como "Escoural mais antigo do que Lascaux".... Obviamente, estamos a especular pois sem o tratamento das amostras rcolhidas, não se poderão tirar conclusões. De facto até a selecção dos motivos a datar, hoje seria diferente de há sete anos atrás. Não apenas porque as perspectivas são diversas face aos dados agora divulgados mas também porque hoje, graças a novas metodologias de observação e registo, temos novas leituras dos próprios motivos. Por exemplo, pela primeira vez, decorrente do tratamento informático das imagens fotográficas, temos provas da existência de motivos digitados  no Escoural. Ora, no caso de Maltravieso (a cavidade rupestre mais próxima do Escoural, como já aqui lembrámos  ), conhecida pelos seus motivos  pintados de mãos em negativo ou positivo, foi a partir da calcite depositada sobre alguns destes motivos que se obtiveram as datas mais antigas agora divulgadas.

Uma das mãos em negativo de Maltravieso (Foto de Hopolito Collado)


Gruta do Escoural: motivo "digitado". Foto sem tratamento à esquerda. Ao centro e à direita, a mesma imagem manipulada digitalmente.
Um outro dado que nos poderá obrigar a rever as representações gráficas presentes no Escoural, decorre das conclusões dos recentes estudos analíticos realizados sobre a arte do Escoural pelo Laboratório HERCULES da Universidade de Évora, nomeadamente sobre os pigmentos vermelhos e negros usados nas pinturas. A sua grande variabilidade, parece apontar para momentos cronológicos bem distintos, que já eram perceptíveis do ponto de vista formal ou estilístico. Falta agora comprovar se alguns desses vestígios poderão ser atribuídos aos caçadores Neanderthais que, ocasionalmente se instalavam junto à sua entrada, no âmbito das suas expedições de caça bem documentadas pelos restos faunísticos (cavalo e auroque em especial) aí abandonados.




ADENDA (26/2/2018)

Nota de Imprensa divulgada a este propósito

Nota de Imprensa
INSTITUTO TERRA E MEMÓRIA – INSTITUTO POLITÉCNICO DE TOMAR – CENTRO DE GEOCIENCIAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

A ARTE NÃO É SOMENTE OBRA DOS HOMO SAPIENS: OS NEANDERTAIS PINTAVAM GRUTAS

Novas datações realizadas em pinturas rupestres paleolíticas em três grutas em Espanha (Maltravieso - Cáceres, Extremadura -, La Pasiega - Puente Viesgo, Santander -, e Ardales – Ardales, Málaga) mostram que estas foram realizadas há mais de 66 mil anos num período de tempo em que apenas os Neandertais ocupavam a Europa.
Usando o método de datação por Urânio-Tório, uma técnica de datação de ponta, num estudo publicado na revista Science por uma equipa internacional coordenada pelo Dr. Chris Standish, Dr. Andy Milton e pelo Professor Alistair Pike da Universidade de Southampton e com o qual o ITM/CENTRO DE GEOCIÊNCIAS participou através dos seu investigador Hipólito Collado, mostrou que as pinturas das cavernas datam de mais de 20.000 anos antes da nossa espécie ter surgido na Europa.

Os resultados, publicados ontem na revista Science, são significativos porque fornecem evidências muito fortes de como os Neandertais se comportavam simbolicamente e demonstram que, nesse domínio, eles estavam muito próximos dos nossos próprios comportamentos.

Alistair Pike, da Universidade de Southampton, que co-dirigiu o estudo, diz o seguinte: “Logo após a descoberta do primeiro fóssil no século XIX, os Neandertais foram retratados como brutais e incultos, incapazes de produzir arte e de ter um comportamento simbólico, e alguns aspetos desse ponto de vista persistem até hoje. A questão do comportamento “humano” dos Neandertais é um assunto muito debatido atualmente.”

A cultura material simbólica, uma coleção de conquistas culturais e intelectuais transmitidas de geração a geração, até agora foi atribuída de forma convincente apenas à nossa própria espécie, o Homo sapiens. “O surgimento da cultura material simbólica representa um limiar fundamental na evolução da humanidade. É um dos pilares do que nos torna humanos” afirma um dos autores principais Dr. Dirk Hoffman do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva (MPI-EVA) na Alemanha. “Os artefactos cujo valor funcional não é medidos pela sua função, mas sim pelo seu simbolismo, são proxies para os aspectos fundamentais da cognição humana como a conhecemos ".

Os primeiros artefactos simbólicos, como as conchas com restos de pigmentos usadas como ornamento corporal, estão documentados para o Paleolítico Médio da África do Norte e Sul desde há 100.000 anos atrás, mas estão associadas aos primeiros membros da nossa própria espécie. Há evidências na Europa de arte das grutas, figuras esculpidas, ferramentas em osso decoradas e jóias feitas de osso, dentes, marfim, conchas ou pedra que remontam à "Revolução do Paleolítico Superior" após 40.000 anos atrás.
Esses artefactos, segundo os investigadores, foram criados por populações pioneiras de humanos modernos enquanto se espalham pela Europa ao chegarem de África e do Próximo Oriente.
Mesmo quando há evidências do uso de ornamentos corporais por parte dos Neandertais na forma de dentes e ossos de animais perfurados, que datam da cultura Chatelperronense do sudoeste da Europa há cerca de 40.000 a 45.000 anos atrás, muitos investigadores sugeriram que esta não era uma inovação Neandertal independente, mas que terá sido inspirada pelo contacto com os humanos modernos recém-chegados.

A arte das cavernas é um exemplo muito mais claro e convincente do comportamento simbólico. Até agora, no entanto, foi atribuída inteiramente aos humanos modernos e a reivindicação de uma possível origem Neandertal (uma linha de investigação que tem sido apoiada por um pequeno grupo de investigadores, incluindo Hipólito Collado) foi prejudicada por falta de métodos de datação precisos. As tentativas de datação das pinturas rupestres pelo radiocarbono têm sido problemáticas, por vários motivos: as amostras de radiocarbono de pigmentos são propensas à contaminação e podem fornecer estimativas falsas sobre a sua antiguidade; a remoção de amostras de carvão necessárias para este método também é visivelmente destrutiva para a arte rupestre. Além disso, muitas das pinturas são feitas com pigmentos minerais, como ocre, que não contêm material orgânico datável.

Em vez desse método, a equipa usou o método de datação por urânio-tório. O principal autor do estudo, Chris Standish, da Universidade de Southampton, diz: "Nós estamos a datar depósitos de carbonato semelhantes a pequenas estalagmites que se formaram em cima das pinturas rupestres. Estes contêm vestígios de urânio radioativo e tório, que nos dizem quando estes depósitos se formaram. Uma vez que os depósitos estão no topo, eles nos dão idades mínimas para as pinturas".

Os investigadores do Reino Unido, Alemanha, Espanha, Portugal e França analisaram mais de 60 amostras de carbonato de três grutas diferentes de Espanha: a gruta de La Pasiega, no Nordeste, a gruta de Matravieso no Oeste e a gruta de Ardales no sul de Espanha. Todos os três sítios contêm pinturas principalmente em vermelho (ocre), e ocasionalmente em preto, que mostram grupos de animais, pontos e sinais geométricos, silhuetas de mãos, impressões de dígitos e gravuras. Standish afirma: “Estes resultados das datações mostram que estas são as pinturas em gruta mais antigas de qualquer lugar em pelo menos 20 mil anos, realizadas antes da chegada dos humanos modernos à Europa. A arte das grutas deve, portanto, ter sido criada por Neandertais”. Esta primeira fase de pinturas rupestres agora conhecida, foi criada exclusivamente com pigmentos vermelhos, e compreende linhas, pontos, discos e silhuetas de mãos, todos aparentemente realizadas diretamente com as mãos. De acordo com os investigadores, a criação destas pinturas rupestres envolveu o planeamento de uma fonte de luz, a mistura de pigmentos para colorir as paredes e a escolha de uma localização adequada. “Os Neandertais estavam claramente a criar símbolos com significado em lugares com significado. Esta arte rupestre não é foi acidente nem um graffiti aleatório” afirma Paul Pettitt, da Universidade de Durham, também membro da esquipa e especialista em arte de grutas. “Nós temos exemplos de três grutas que estão a 700km de distância umas das outras e evidenciamos que esta era uma tradição de longa duração na qual os Neandertais foram os primeiros humanos a deixar marcas significativas e permanentes nas profundidades das grutas. É possível que em outras grutas da Europa Ocidental com arte rupestre semelhante e, por tanto tempo assumida como o trabalho da nossa espécie, também tenha sido criação dos Neandertais.” 
Finalmente, Hipólito Collado, membro do ITM e do Centro de Geociências, e docente convidado do IPT,  afirma: “De acordo com os resultados obtidos, o comportamento simbólico não pode ser considerado apenas e exclusivamente do Homo Sapiens. Em Maltravieso, gruta que preserva um dos melhores grupos de silhuetas de mãos da Península Ibérica, algumas destas foram datadas de há mais de 70.000 anos. Isto implica admitir que as silhuetas de mãos mais antigas do mundo foram encontradas nesta pequena gruta da província de Cáceres. Aqui, há mais de 66 mil e 700 anos atrás, os Neandertais aperceberam-se da sua própria identidade e deixaram nas paredes de Matravieso aquilo que mais nos identifica como humanos: a impressão da nossa própria mão.”

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