segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018



"1973"


Numa altura em que acabo de passar à situação de "aposentado" (1 de Janeiro de 2018) sinto-me particularmente sensível a determinados eventos ou datas. Ainda que para várias gerações de portugueses, incluindo a minha, por razões compreensíveis, 1974 seja um marco indelével (há sempre um antes e um depois do 25 de Abril desse ano) no meu caso posso afirmar que também 1973 acabaria por ter uma importância muito especial.

Nesse ano atingi a maioridade pelos padrões da época (21 anos), acabei o bacharelato em História na Faculdade de Letras (o que me abriu as portas do ensino tendo em Outubro começado a leccionar no novo curso nocturno do Liceu da Amadora). No Verão de 1973 saí pela primeira vez de Portugal para participar como estudante voluntário nas escavações arqueológicas de Pincevent (França) e de Pinedo (Espanha) viagens que acabaram por ser determinantes para um futuro profissional que então mal podia sonhar. De facto, embora participasse desde 1972 nas campanhas arqueológicas do Ródão, foi em especial o contacto com o Professor André Leroi-Gourhan (1911-1986) e a sua equipa que influenciou decisivamente a minha orientação para a Arqueologia, embora esse objectivo fosse na época, algo utópico...

Foi pois com muita curiosidade que acedi na INTERNET a um novo "link" dos Arquivos RTP que me fizeram chegar recentemente e que "anunciava" uma excursão arqueológica de 1973. É verdade que já conhecia este excelente serviço da televisão pública, onde estão disponíveis para visualização "on line" antigas reportagens sobre temas arqueológicos (nomeadamente uma muito informativa, datada de 1971, sobre os trabalhos de Henrique Leonor de Pina nos Almendres), mas não conhecia ainda esta "visita de estudo do curso de iniciação à arqueologia", datada precisamente de 1973.

Da respectiva sinopse consta apenas o seguinte:

Reportagem sobre a visita de estudo efectuada pelos alunos do Curso de Iniciação à Arqueologia e pelo seu director Fernando Nunes Ribeiro a um conjunto de locais de interesse arqueológico: Grutas do Escoural e dólmen da Herdade da Mitra em Montemor-o Novo, Museu e Templo de Diana em Évora, e Cromeleque do Xerez em Reguengos de Monsaraz.


https://arquivos.rtp.pt/conteudos/visita-de-estudo-do-curso-de-iniciacao-a-arqueologia/#sthash.IT6XDbkJ.dpbs


Infelizmente, não tenho qualquer informação sobre o "curso" em causa. Aparentemente, e uma vez que este seria dirigido pelo arqueólogo Fernando Nunes Ribeiro  (veterinário de Beja, cidade de que chegou a ser Presidente da Câmara, mas também arqueólogo amador, conhecido sobretudo pela descoberta da villa romana dos Pisões) poderemos imaginar que se trata de uma iniciativa de cariz regional (?). De qualquer modo, mais que o contexto factual e objectivo do evento, interessou-me neste caso apreciar quer a situação dos monumentos ou sítios visitados há quase meio século quer a própria atitude dos "visitantes" (um grupo aparentemente muito heterogéneo, nomeadamente no que respeita a "idades", o que aponta para o carácter informal do "curso"). De recordar aos mais novos, que à época não existia na universidade portuguesa qualquer formação específica em Arqueologia, sendo esta temática, então dita "auxiliar", abordada apenas em 2 ou 3 disciplinas da Licenciatura em História.

A visita de 1973 iniciou-se pela Gruta do Escoural. A cavidade havia sido descoberta uma década antes no âmbito de exploração de uma pedreira e os trabalhos arqueológicos de Farinha dos Santos já estariam terminados por esta época. Não temos data precisa para a instalação das primeiras estruturas de visita (renovadas em 2010) mas calcula-se que terão sido construídas no final dos anos 60. Exteriormente a Gruta apresentava em 1973 o aspecto e condições da pedreira original, conforme imagem de arquivo que se anexa para comparação.






Exterior da Gruta do Escoural pouco tempo após a descoberta (Foto de Arquivo, s/data)


Por cima da Gruta, os afloramentos onde Mário Varela Gomes identificaria em 1978, gravuras rupestres neolíticas, sobrepostas por vestígios de um povoado da Idade do Cobre


Após a visita à Gruta do Escoural, seguiu-se a visita à "Anta Grande do Zambujeiro", impropriamente designada na reportagem como "Anta Herdade da Mitra" e erroneamente localizada em Montemor-o-Novo. Com efeito, o acesso normal a esta gigantesca Anta é feito através da Herdade da Mitra, Valverde (afecta à Escola Agrícola, hoje à Universidade de Évora) mas situa-se já fora dos respectivos limites desta e em propriedade privada. Ao contrário do que se observa no caso da Gruta do Escoural (entretanto adquirida pelo Estado e objecto de várias intervenções de requalificação), a Anta Grande do Zambujeiro apresentava-se à época em melhores condições do que no presente. Escavada no final dos anos 60 por Henrique Leonor de Pina, a sua estrutura até então protegida pela enorme mamôa de terra (ainda bem visível nas imagens da RTP) entraria depois em processo de progressiva degradação. Uma cobertura provisória instalada nos anos 80 bem como algumas medidas pontuais de consolidação, não alteraram no essencial a lamentável situação deste "monumento nacional", hoje uma chaga incompreensível da arqueologia nacional. (com temos recordado neste blog)

A Anta Grande do Zambujeiro, aspecto geral em 1973




Adicionar legenda
Não deixa de ser também curiosa, a atitude revelada na reportagem por parte dos "iniciados" à Arqueologia...na imagem, sobre uma das lajes da cobertura do corredor, entretanto desmontada nos anos 80, por ameaçar ruína.

Hoje parecerá estranho que os excursionistas não tenham visitado também o vizinho o Cromeleque dos Almendres, monumento que em 1973 era já relativamente conhecido (graças sobretudo às fotos de José Justo, na "Pré-história de Portugal" de M. Farinha dos Santos, editado pela Verbo em 1972). Mas a explicação é simples. Em 1973, por mais ousado que fosse o motorista (e este não hesitou em conduzir o autocarro até à Anta Grande do Zambujeiro, atravessando inclusive a "Ribeira da Peramanca") não havia qualquer acesso praticável ao Cromeleque, sobretudo a partir do Monte dos Almendres. O estradão que hoje é percorrido pelos milhares de turistas que ali se dirigem, foi construído no final dos anos 80 pela Câmara Municipal de Évora.



A "excursão arqueológica" dirigiu-se depois para a cidade de Évora, com a inevitável visita ao "Templo Romano", a cujo pódio era então "normal" subir (no início do século XX o acesso estava vedado por uma grade, tal como viria a acontecer de novo desde os anos 90, por razões de conservação). Seguiu-se a visita ao Museu de Évora que apresentava na cave recentemente construída, uma pequena exposição de arqueologia inaugurada em 1970 e na qual se mostravam já alguns materiais da Gruta do Escoural (uma pequena amostragem, uma vez que a maioria, com grande escândalo local, havia sido depositada no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa).





A excursão terminaria nas proximidades de Monsaraz, junto ao "Cromeleque do Xerez", um monumento que havia sido recentemente estudado e "restaurado" pelo médico e arqueólogo amador de Reguengos, Dr. José Pires Gonçalves, numa intervenção não isenta de alguma controvérsia.

Como é sabido, após novas escavações promovidas pela EDIA em 1997 e concretizadas por Mário Varela Gomes, este monumento megalítico, por se encontrar em cota de inundação da Barragem do Alqueva, acabaria por ser desmontado e reerguido nas proximidades do Convento da Orada (também nas proximidades de Monsaraz) no contexto de um projecto de recuperação patrimonial que, infelizmente, ficou muito aquém dos objectivos preconizados...



Quarenta e cinco anos após a recolha destas imagens e chegado ao fim de uma carreira profissional que dava então nesse ano os primeiros passos, não posso deixar de sentir alguma nostalgia ao rever esta curiosa reportagem. 

Cerca de década e meia depois iniciava novos trabalhos de arqueologia na Gruta do Escoural que culminariam já neste século com um decisivo projecto de requalificação. 

Apoiei em 1989, enquanto responsável pelo Serviço Regional de Arqueologia do Sul, o projecto do Museu de Beja de divulgação pública da colecção arqueológica de Fernando Nunes Ribeiro, oferecida por este àquele Museu em 1987.

Pese embora a situação lamentável a que chegou a Anta Grande do Zambujeiro, fui intervindo no respectivo processo, mesmo antes de me mudar para Évora, em função das capacidades e competencias de cada momento. Actualmente, enquanto membro da Assembleia de Freguesia local (Tourega e Guadalupe), na falta de outros meios, continuarei a alertar para a sua escandalosa situação. 

Por fim, enquanto coordenador dos trabalhos de arqueologia da Barragem do Alqueva (1996-2002), fui o directo responsável pelas novas investigações sobre o Cromeleque do Xerez e pela respectiva reinstalação. Pena é que o monumento, pese embora o investimento feito pela EDIA, esteja hoje praticamente ao abandono por desinteresse local. conforme já aqui chamei a atenção

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