sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

GRUTA DA FETEIRA

Histórias de galinhas e dinossauros na Lourinhã


Reabriu por estes dias, após remodelações, o Museu da Lourinhã. Mas a grande novidade que nos chega do Oeste passa pela inauguração e abertura ao público (hoje mesmo, 9 de Fevereiro) do DINOPARQUE, anunciado como a maior estrutura museológica ao ar livre do país e, como o nome indica, uma espécie de "Parque Jurássico" à portuguesa. Infelizmente já não assistirá a estes tão significativos eventos para a Lourinhã, o Horácio Mateus (1950-2013) justamente considerado o fundador do Museu e o seu principal impulsionador, nas palavras do filho, Octávio Mateus (actualmente um dos mais conhecidos paleontólogos portugueses) deixadas no seu blog ("Lusodinos") após o desaparecimento do pai: 

Morreu ontem, aos 62 anos de idade, Horácio Mateus, fundador do Museu da Lourinhã  Nascido na Lourinhã em 1950, Horácio Mateus esteve envolvido, com outros lourinhanenses, na origem do GEAL, Grupo de Etnografia e Arqueologia da Lourinhã. Nesse seio, o Horácio foi, sem dúvida, o principal promotor do que seria a realização mais óbvia desta associação: o Museu, no qual empenhou o seu tempo e devoção e dedicou o seu espírito. 
Apesar de uma criação conjunta e imprescindível de muitos, Horácio Mateus merece o título do Fundador do Museu da Lourinhã.
Com a esposa, Isabel Mateus, foram os descobridores do famoso ninho de dinossauros de Paimogo, com embriões, o que lhes valeu, a nomeação de Figuras Nacionais do Ano em 1997, pela Revista Expresso. Foi um animado museógrafo e co-autor de três artigos científicos. Ocupou o cargo de Conservador do Museu da Lourinhã durante muitos anos. Apesar da visibilidade pública da temática dos dinossauros, a parte etnográfica e arqueológica era a sua grande paixão.
Adeus pai


Conheci o Horácio e a Isabel Mateus no final de 1981, quando estes procuraram apoio no Museu Nacional de Arqueologia para uma situação de emergência arqueológica que haviam detectado no âmbito das actividades de campo do GEAL, uma associação local de estudo e defesa do património cultural (etnográfico e arqueológico) que eles próprios haviam fundado, como tantas outras que com maior ou menor sucesso, surgiram um pouco por todo o país na sequência do abalo cívico provocado pelo 25 de Abril. Encaminhados para os serviços do Departamento de Arqueologia do IPPC acabado de instalar no próprio Museu de Belém, coube-me a mim (enquanto braço direito do Francisco Alves que acumulava então a direcção do Museu e do Departamento) receber o casal lourinhanense que informava da descoberta de uma pequena cavidade com interesse arqueológico durante as obras de construção de um aviário, próximo da localidade da Feteira, concelho da Lourinhã. 

O processo de intervenção que se seguiu e cujos detalhes recordamos mais adiante, terá representado um dos primeiros passos que conduziria, pouco tempo depois (1984) à constituição do Museu da Lourinhã, em resultado de uma iniciativa conjunta do próprio GEAL e da Câmara Municipal. Instalado provisoriamente no edifício devoluto do antigo tribunal, o pequeno conjunto arqueológico descoberto na Feteira (por causa das "galinhas") a par de outras recolhas do casal Mateus, ganhava assim especial destaque fundacional. Estava-se longe das descobertas paleontológicas que acabariam por alterar os planos iniciais de Horácio Mateus, especialmente interessado na etnografia e na arqueologia. Com efeito, datam de 1991 as primeiras descobertas significativas de vestígios de dinossauros na região mas foi com a descoberta em 1993 do célebre "ninho de dinossauros" por Isabel Mateus que a Lourinhã entrou definitivamente nos "trilhos" do Jurássico. 



Espólio neolítico da Feteira, exposto no Museu da Lourinhã


O aviário da Feteira em construção. Em primeiro plano à direita, o abrigo improvisado que permitiu realizar a escavação durante o Inverno de 1982
A escavação da Gruta da Feteira

A região da Feteira integra-se no planalto da Cesareda, zona cársica conhecida desde meados do século XIX pelo seu interesse geológico e arqueológico, pelo que a notícia da descoberta de ossadas humanas associadas a espólio neolítico não foi propriamente uma novidade. O que era especial e exigia medidas urgentes, era a circunstancia da cavidade ter sido descoberta durante a abertura das fundações de uma sapata de um aviário industrial em construção. Estávamos ainda longe daquilo que hoje chamamos de "arqueologia preventiva" e que permite (nem sempre com grande eficácia) impor algumas condicionantes em determinados projectos. Mas à época a Lei permitia, pelo menos interromper obras durante algum tempo para que "fossem tomadas pelas autoridades as medidas consideradas necessárias". E foi exactamente o que aconteceu neste caso, graças à previdência de uma associação local, à indispensável colaboração municipal e até, como se recorda na posterior publicação, ao apoio da imprensa que deu o devido destaque à descoberta. O Departamento de Arqueologia, apesar de meios muito reduzidos (como se poderá imaginar), promoveria com a urgência que o caso requeria a realização de uma escavação, contratando para o efeito os serviços do jovem arqueólogo João Zilhão, então recém-licenciado mas já com grande experiência de trabalho de campo (nas regiões do Ródão e Tomar).



A abertura da cavidade descoberta nas fundações de um dos pilares do aviário


As dificuldades da intervenção agravadas por um Inverno rigoroso

 Perante carências logísticas de toda a espécie, só supridas com o apoio total da família Mateus que se constitui em equipa de apoio local (incluindo o Octávio Mateus, então com sete anos como o próprio refere em entrevista 
que pode ser lida aqui  ) e condições climatéricas muito adversas, a escavação da pequena gruta, realizar-se-ia entre Fevereiro e Maio de 1982, confirmando os seus resultados, tratar-se de uma pequena necrópole ou ossário, cobrindo cronologicamente todo o Neolítico. Posteriormente, mais pela exemplaridade de todo o processo, do que pela excepcionalidade da descoberta (relativamente comum na região), o Departamento de Arqueologia decidiria editar o excelente relatório entretanto produzido por Zilhão. Perante a falta de um meio adequado à edição de "monografias arqueológicas", no contexto das várias iniciativas editoriais com que procurávamos combater a endémica ausência de divulgação dos resultados da arqueologia portuguesa, criámos então uma colecção a que chamámos "Trabalhos de Arqueologia" (de algum modo plagiando os "Trabajos de Prehistoria", série monográfica criada em 1960 em Espanha pelo Prof. Martin Almagro Basch), e da qual a "Gruta da Feteira" seria o nº 1 (ed. 1984). Enquanto Director do Departamento de Arqueologia (até 1988) ainda seria responsável pela edição dos primeiros 6 volumes mas felizmente, a colecção, com altos e baixos, manteve-se até hoje (desconheço no entanto quais as intenções da DGPC a esse respeito uma vez que não há novas edições desde 2011), tendo sido entretanto editadas mais de cinquenta monografias (Mais precisamente 53, de acordo com o SITE da Loja da DGPC ) . Curiosamente, seria na fase IPA (Instituto Português de Arqueologia, 1997-2007) dirigido precisamente por João Zilhão e Fernando Real (que enquanto geólogo e sedimentólogo também colaborou neste 1º volume) que a colecção ganharia maior relevância no contexto da edição arqueológica portuguesa, pese embora a importância que então assumida pela Revista Portuguesa de Arqueologia (virada para artigos de menor fôlego) também criada no contexto do IPA. Infelizmente poucos volumes dos "Trabalhos de Arqueologia" estão disponíveis em PDF, como é o caso deste 1º volume. Assim, para além da capa aqui deixamos cópia da respectiva "ficha técnica" bem como da Nota Prévia que então redigi (já como Director do Departamento de Arqueologia) e na qual apresento os objectivos da nova colecção. Como curiosidade, apresento também algumas fotos da escavação da Gruta da Feteira então publicadas.

De referir, em jeito de apontamento final, que em 1993, graças de novo à vigilância do GEAL, o então IPPAR foi alertado para a descoberta de uma segunda cavidade nas imediações deste mesmo aviário. Confirmado o interesse arqueológico, claramente relacionado com a primeira cavidade, foram então tomadas as primeiras medidas de salvaguarda da Gruta da Feteira II (também já muito afectada pela exploração aviária). Entre 1995 e 1997, a arqueóloga Ana Cristina Araújo (que já participara nas escavações de 1982) e a antropóloga Cidália Duarte, ali viriam a realizar para o IPPAR, escavações que comprovaram existir coerência cultural e cronológica entre os vestígios funerários das cavidades vizinhas.






A Gruta da Feteira, Lourinhã, 1984- ficha técnica





Um dos planos da escavação em que é possível observar um crânio humano e diversos osso longos associados 

Um dos cortes da escavação, mostrando que uma parte dos depósitos arqueológicos haviam já sido afectados pela betonagem das fundações do aviário

A situação final após a construção do aviário. A seta indica o alçapão de acesso à parte da gruta que foi possível conservar.




Sem comentários:

Enviar um comentário