sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018


Os Neanderthais nas origens da "Arte"?




Com um dia de atraso relativamente ao “El Pais”, os diários de referencia portugueses (Público e Diário de Notícias) não deixaram de dar hoje (23 de Fevereiro) o devido destaque à notícia da publicação pela Science, com direito a destaque e foto de capa, de um recente artigo em que se defende que, afinal os Neanderthais já tinham “capacidades artísticas”. A chamada da capa da revista refere-se a “Minds at work. Oldest dated cave art, pointed to Neanderthal symbolic behaviour”. O título do “El Pais” realça a antecipação cronológica das origens da arte que recuam cerca de duas dezenas de milhares de anos, mas não deixa de destacar que a essa revelação foi feita em "três grutas espanholas". Já o DN dá prioridade à circunstancia de um português (João Zilhão) coordenar a equipa responsável pela investigação. O Público, mais sóbrio, fica-se no seu destaque de capa pela descoberta de que afinal os Neanderthais já faziam arte.



Mas que significa esta “descoberta” que tal como vários arqueólogos se apressaram a comentar, apesar da sua importância e significado, não é de todo inesperada face ao que hoje se conhece sobre esta espécie humana (Homo Neanderthalensis), parcialmente nossa contemporânea mas extinta (segundo alguns), ou uma espécie que, afinal, faz parte da nossa própria linhagem ("contributiva líquida" do nosso genoma)  segundo outros?

O articulista do El Pais, com evidente exagero jornalístico, fala em "revolução", equiparando-a mesmo à futura descoberta de uma qualquer espécie alienígena inteligente… Mas, como o Luis Raposo  lembrou hoje mesmo, através do Facebook, “ Nenhum dado arqueológico nos autorizava a considerar os Neanderthais, intelectual ou evolucionariamente inferiores aos humanos modernos (...)” 

Para quem não saiba, o Luis Raposo, reputado arqueólogo e museólogo, integrava a equipa que há quase quarenta anos escavou um "acampamento Neanderthal" no Vale do Tejo (Vilas Ruivas, Vila Velha de Ródão)  a que, por coincidência, me referi há dias neste blog  ver aqui . Estas escavações, em que  João Zilhão, ainda estudante, também participou, revelaram um conjunto de estruturas complexas para abrigo e aquecimento, que sem qualquer novidade, mostravam cadeias operatórias próprias de uma capacidade cognitiva e intelectual de cariz humano. Por acaso, Vilas Ruivas, situa-se, a poucas dezenas de quilómetros da Gruta de Maltravieso (Caceres), um dos locais onde agora foram obtidas estas extraordinárias datações. Os caçadores "artistas" de Maltravieso, frequentavam certamente o Vale do Tejo...

A confirmarem-se as datações agora reveladas e esclarecidas eventuais questões de contexto (o método em causa não data directamente os pigmentos mas as camadas de calcite que servem de suporte ou que cobrem as pinturas…), é todo um novo capítulo que se abre à investigação da arte rupestre a nível mundial (mais um salto científico, equiparável ao que representou há vinte anos a descoberta do Complexo Rupestre do Côa, no que respeita aos ambientes e significados da arte rupestre paleolítica, como serenamente recordou hoje o António Martinho Baptista nos comentários a esta notícia feitos a pedido do Público.

E, já agora, talvez venha a ser necessário olhar sob esta nova perspectiva para a única cavidade portuguesa onde, até hoje, estão identificados vestígios de pintura paleolítica, a Gruta do Escoural (Montemor-o-Novo), cuja arte foi também objecto de amostragem no âmbito do projecto responsável pelas actuais revelações. Com efeito, em 2011, a equipa coordenada por João Zilhão, Alistair W. Pike e Dirk Hoffmann, procedeu à recolha de duas dezenas de amostras de calcite associadas a uma dezena motivos selecionados (pintura e gravura) nesta cavidade portuguesa. Infelizmente, por insuficiência de financiamento (o projecto que dura há uma dezena de anos, tem sido apoiado pela CE), a maioria das amostras do Escoural ainda aguarda tratamento laboratorial. 

Recolha de calcite associada a uma das pinturas da Gruta do Escoural (Janeiro de 2011)

Mas haverá alguma possibilidade de no contexto da cerca de uma centena de grafismos conhecidos nesta Gruta, haver vestígios que possam vir a ser atribuídos aos Neanderthais? Alguns dados podem vir a favorecer essa hipótese. Desde logo, junto à abertura que sempre se considerou como entrada natural da gruta (virada da Nascente, no lado oposto à fenda aberta pela exploração da pedreira em 1963, hoje utilizada pelos visitantes), foi reconhecida nas escavações luso-belgas dos anos 90, a presença de uma importante ocupação Neanderthal (instrumentos líticos e restos de fauna de grandes mamíferos) inequivocamente datada pelo Carbono 14 (cerca de 50 000 aC). Naturalmente, à luz dos dados tradicionais, nunca foi até hoje estabelecida qualquer conexão entre esta ocupação e a arte rupestre identificada no interior da cavidade. Um outro factor a ter em conta numa eventual reavaliação, decorre da própria natureza formal dos vestígios rupestres em presença. André Glory, o estudioso de Lascaux que em 1965 visitou o Escoural no âmbito de uma missão apoiada pela Fundação Gulbenkian e pelo mecenas MaximeVaultier ( ver aqui ), defendeu desde logo para os vestígios rupestres do Escoural, onde a par de alguns motivos zoomórficos naturalistas mas muito singelos, abundam os signos esquemáticos, uma cronologia muito recuada (aurignacense) nas origens do Paleolítico Superior. Tal reconhecimento valeu também na época alguns títulos hiperbólicos por parte da imprensa, como "Escoural mais antigo do que Lascaux".... Obviamente, estamos a especular pois sem o tratamento das amostras rcolhidas, não se poderão tirar conclusões. De facto até a selecção dos motivos a datar, hoje seria diferente de há sete anos atrás. Não apenas porque as perspectivas são diversas face aos dados agora divulgados mas também porque hoje, graças a novas metodologias de observação e registo, temos novas leituras dos próprios motivos. Por exemplo, pela primeira vez, decorrente do tratamento informático das imagens fotográficas, temos provas da existência de motivos digitados  no Escoural. Ora, no caso de Maltravieso (a cavidade rupestre mais próxima do Escoural, como já aqui lembrámos  ), conhecida pelos seus motivos  pintados de mãos em negativo ou positivo, foi a partir da calcite depositada sobre alguns destes motivos que se obtiveram as datas mais antigas agora divulgadas.

Uma das mãos em negativo de Maltravieso (Foto de Hopolito Collado)


Gruta do Escoural: motivo "digitado". Foto sem tratamento à esquerda. Ao centro e à direita, a mesma imagem manipulada digitalmente.
Um outro dado que nos poderá obrigar a rever as representações gráficas presentes no Escoural, decorre das conclusões dos recentes estudos analíticos realizados sobre a arte do Escoural pelo Laboratório HERCULES da Universidade de Évora, nomeadamente sobre os pigmentos vermelhos e negros usados nas pinturas. A sua grande variabilidade, parece apontar para momentos cronológicos bem distintos, que já eram perceptíveis do ponto de vista formal ou estilístico. Falta agora comprovar se alguns desses vestígios poderão ser atribuídos aos caçadores Neanderthais que, ocasionalmente se instalavam junto à sua entrada, no âmbito das suas expedições de caça bem documentadas pelos restos faunísticos (cavalo e auroque em especial) aí abandonados.




ADENDA (26/2/2018)

Nota de Imprensa divulgada a este propósito

Nota de Imprensa
INSTITUTO TERRA E MEMÓRIA – INSTITUTO POLITÉCNICO DE TOMAR – CENTRO DE GEOCIENCIAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

A ARTE NÃO É SOMENTE OBRA DOS HOMO SAPIENS: OS NEANDERTAIS PINTAVAM GRUTAS

Novas datações realizadas em pinturas rupestres paleolíticas em três grutas em Espanha (Maltravieso - Cáceres, Extremadura -, La Pasiega - Puente Viesgo, Santander -, e Ardales – Ardales, Málaga) mostram que estas foram realizadas há mais de 66 mil anos num período de tempo em que apenas os Neandertais ocupavam a Europa.
Usando o método de datação por Urânio-Tório, uma técnica de datação de ponta, num estudo publicado na revista Science por uma equipa internacional coordenada pelo Dr. Chris Standish, Dr. Andy Milton e pelo Professor Alistair Pike da Universidade de Southampton e com o qual o ITM/CENTRO DE GEOCIÊNCIAS participou através dos seu investigador Hipólito Collado, mostrou que as pinturas das cavernas datam de mais de 20.000 anos antes da nossa espécie ter surgido na Europa.

Os resultados, publicados ontem na revista Science, são significativos porque fornecem evidências muito fortes de como os Neandertais se comportavam simbolicamente e demonstram que, nesse domínio, eles estavam muito próximos dos nossos próprios comportamentos.

Alistair Pike, da Universidade de Southampton, que co-dirigiu o estudo, diz o seguinte: “Logo após a descoberta do primeiro fóssil no século XIX, os Neandertais foram retratados como brutais e incultos, incapazes de produzir arte e de ter um comportamento simbólico, e alguns aspetos desse ponto de vista persistem até hoje. A questão do comportamento “humano” dos Neandertais é um assunto muito debatido atualmente.”

A cultura material simbólica, uma coleção de conquistas culturais e intelectuais transmitidas de geração a geração, até agora foi atribuída de forma convincente apenas à nossa própria espécie, o Homo sapiens. “O surgimento da cultura material simbólica representa um limiar fundamental na evolução da humanidade. É um dos pilares do que nos torna humanos” afirma um dos autores principais Dr. Dirk Hoffman do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva (MPI-EVA) na Alemanha. “Os artefactos cujo valor funcional não é medidos pela sua função, mas sim pelo seu simbolismo, são proxies para os aspectos fundamentais da cognição humana como a conhecemos ".

Os primeiros artefactos simbólicos, como as conchas com restos de pigmentos usadas como ornamento corporal, estão documentados para o Paleolítico Médio da África do Norte e Sul desde há 100.000 anos atrás, mas estão associadas aos primeiros membros da nossa própria espécie. Há evidências na Europa de arte das grutas, figuras esculpidas, ferramentas em osso decoradas e jóias feitas de osso, dentes, marfim, conchas ou pedra que remontam à "Revolução do Paleolítico Superior" após 40.000 anos atrás.
Esses artefactos, segundo os investigadores, foram criados por populações pioneiras de humanos modernos enquanto se espalham pela Europa ao chegarem de África e do Próximo Oriente.
Mesmo quando há evidências do uso de ornamentos corporais por parte dos Neandertais na forma de dentes e ossos de animais perfurados, que datam da cultura Chatelperronense do sudoeste da Europa há cerca de 40.000 a 45.000 anos atrás, muitos investigadores sugeriram que esta não era uma inovação Neandertal independente, mas que terá sido inspirada pelo contacto com os humanos modernos recém-chegados.

A arte das cavernas é um exemplo muito mais claro e convincente do comportamento simbólico. Até agora, no entanto, foi atribuída inteiramente aos humanos modernos e a reivindicação de uma possível origem Neandertal (uma linha de investigação que tem sido apoiada por um pequeno grupo de investigadores, incluindo Hipólito Collado) foi prejudicada por falta de métodos de datação precisos. As tentativas de datação das pinturas rupestres pelo radiocarbono têm sido problemáticas, por vários motivos: as amostras de radiocarbono de pigmentos são propensas à contaminação e podem fornecer estimativas falsas sobre a sua antiguidade; a remoção de amostras de carvão necessárias para este método também é visivelmente destrutiva para a arte rupestre. Além disso, muitas das pinturas são feitas com pigmentos minerais, como ocre, que não contêm material orgânico datável.

Em vez desse método, a equipa usou o método de datação por urânio-tório. O principal autor do estudo, Chris Standish, da Universidade de Southampton, diz: "Nós estamos a datar depósitos de carbonato semelhantes a pequenas estalagmites que se formaram em cima das pinturas rupestres. Estes contêm vestígios de urânio radioativo e tório, que nos dizem quando estes depósitos se formaram. Uma vez que os depósitos estão no topo, eles nos dão idades mínimas para as pinturas".

Os investigadores do Reino Unido, Alemanha, Espanha, Portugal e França analisaram mais de 60 amostras de carbonato de três grutas diferentes de Espanha: a gruta de La Pasiega, no Nordeste, a gruta de Matravieso no Oeste e a gruta de Ardales no sul de Espanha. Todos os três sítios contêm pinturas principalmente em vermelho (ocre), e ocasionalmente em preto, que mostram grupos de animais, pontos e sinais geométricos, silhuetas de mãos, impressões de dígitos e gravuras. Standish afirma: “Estes resultados das datações mostram que estas são as pinturas em gruta mais antigas de qualquer lugar em pelo menos 20 mil anos, realizadas antes da chegada dos humanos modernos à Europa. A arte das grutas deve, portanto, ter sido criada por Neandertais”. Esta primeira fase de pinturas rupestres agora conhecida, foi criada exclusivamente com pigmentos vermelhos, e compreende linhas, pontos, discos e silhuetas de mãos, todos aparentemente realizadas diretamente com as mãos. De acordo com os investigadores, a criação destas pinturas rupestres envolveu o planeamento de uma fonte de luz, a mistura de pigmentos para colorir as paredes e a escolha de uma localização adequada. “Os Neandertais estavam claramente a criar símbolos com significado em lugares com significado. Esta arte rupestre não é foi acidente nem um graffiti aleatório” afirma Paul Pettitt, da Universidade de Durham, também membro da esquipa e especialista em arte de grutas. “Nós temos exemplos de três grutas que estão a 700km de distância umas das outras e evidenciamos que esta era uma tradição de longa duração na qual os Neandertais foram os primeiros humanos a deixar marcas significativas e permanentes nas profundidades das grutas. É possível que em outras grutas da Europa Ocidental com arte rupestre semelhante e, por tanto tempo assumida como o trabalho da nossa espécie, também tenha sido criação dos Neandertais.” 
Finalmente, Hipólito Collado, membro do ITM e do Centro de Geociências, e docente convidado do IPT,  afirma: “De acordo com os resultados obtidos, o comportamento simbólico não pode ser considerado apenas e exclusivamente do Homo Sapiens. Em Maltravieso, gruta que preserva um dos melhores grupos de silhuetas de mãos da Península Ibérica, algumas destas foram datadas de há mais de 70.000 anos. Isto implica admitir que as silhuetas de mãos mais antigas do mundo foram encontradas nesta pequena gruta da província de Cáceres. Aqui, há mais de 66 mil e 700 anos atrás, os Neandertais aperceberam-se da sua própria identidade e deixaram nas paredes de Matravieso aquilo que mais nos identifica como humanos: a impressão da nossa própria mão.”

Mais informações:




segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018


As mais antigas "estruturas de habitat" conhecidas do território português


No que respeita à comunicação e informação sobre Arqueologia, certamente reflectindo uma especial apetencia por parte do público, os "media" tendem por norma a sobrevalorizar o critério da "antiguidade". Seria pois expectável que, nessa lógica, um Museu tudo fizesse para conservar em exposição aquela que, provavelmente, ainda continua a ser a estrutura de habitat mais antiga identificada no território português, constituída pelos vestígios de duas lareiras e diversos buracos de poste associados aos restos de dois arcos de pedra, interpretados como bases de apoio de um "para vento" pré-histórico. Todo este conjunto se integrava, por sua vez, num solo pisado pelo homem do Paleolítico Médio (possivelmente do tipo Neanderthal), juncado de materiais de pedra talhada, classificados como Moustierenses. Esta classificação tipológica, entretanto confirmada por métodos de datação absoluta, aponta para uma antiguidade aproximada de 50 000 anos, o que lhe confere um cariz de extrema raridade mesmo a nível internacional. Estamos a falar, como é óbvio para a generalidade dos arqueólogos, pelo menos dos mais velhos, das "estruturas paleolíticas de Vilas Ruivas", identificadas e escavadas em 1978 e 1979, num terraço fluvial do Tejo, localizado imediatamente a jusante das Portas do Ródão, não muito longe da pequena aldeia (Vilas Ruivas) que lhe deu o nome.
As estruturas de Vilas Ruivas em primeira mão nas páginas da revista "HISTÓRIA", ed. O Jornal, Janeiro de 1980
https://www.academia.edu/35988140/Um_acampamento_do_Homem_de_Neanderthal_nas_margens_do_Tejo
O "terraço" de Vilas Ruivas, visto do Castelo do Rei Wamba, Portas do Ródão. Foto de ACS (anos 70)

Mas não é sobre o sítio arqueológico (hoje apenas um ponto numa fantástica paisagem que vale sobretudo pelo seu excepcional contexto geológico e panorâmico, pese embora o impacto dos recentes incêndios na região) que aqui queria deixar registo. Na verdade o tema proposto, visa recordar em particular a extraordinária operação logística (1980-1981) que um punhado de jovens arqueólogos (idealistas), tomaram em mãos, ao decidirem praticamente por sua conta e risco, "transpor" para Museu, a estrutura descoberta, pese embora a adversidade de todo o contexto.

À distância de quatro décadas, não consigo já ser rigoroso nos detalhes que conduziram à decisão de planear e executar a complexa operação museológica que está subjacente a este projecto. A descoberta e escavação das estruturas paleolíticas de Vilas Ruivas verifica-se entre 1978 e 1979 (em campanhas conduzidas nas férias grandes...), com o envolvimento geral da equipa do GEPP que mantivera a sua ligação ao Ródão, mesmo após o "afundamento da arte rupestre do Tejo", após a conclusão da Barragem do Fratel (1974- ver a este propósito ). Foi certamente após a campanha de 1979, na qual se revelara toda a complexidade e significado das estruturas de habitat, que a decisão de proceder à sua "musealização" (como hoje se diria) terá sido tomada. Para esse facto terá pesado a experiência adquirida por alguns de nós nas escavações de Pincevent, um acampamento de caçadores de renas (sic) paleolíticos  nas margens do Rio Sena, não muito longe de Paris, escavado por André Leroi-Gourhan no contexto de um grande projecto escola arqueológica ("chantier école"). Aí se procedia de forma quase sistemática, à moldagem das superfícies de ocupação humana postas a descoberto, com propósitos museolólgicos e científicos. Na campanha em que, como estudante estagiário, participei no Verão de 1973, para além da aprendizagem das mais evoluídas metodologias de escavação e registo (que poríamos em prática nos posteriores trabalhos do Ródão), tive a feliz oportunidade de acompanhar directamente todo o complexo processo de moldagem das estruturas expostas. De referir que este método não era para nós uma novidade absoluta. Já no salvamento da arte rupestre do Tejo, se recorrera à moldagem em "latex" da superfície decorada das rochas, metodologia que nos havia sido sugerida pelo assistente de Gourhan, Michel Brézillon, em contactos técnicos havidos em 1972 em Paris por Francisco Sande Lemos e Pinho Monteiro, entre outros. Mas, a obtenção de um molde de uma superfície praticamente plana (como eram as rochas gravadas do Tejo) estava longe dos desafios que representava a moldagem tridimensional de estruturas complexas. O assunto acabaria por me interessar de forma muito particular em Pincevent, tendo aí registado fotograficamente todas as suas fases, desde a preparação das áreas a moldar; passando pela aplicação  do latex para obtenção do "negativo"; e finalmente pela realização dos respectivos contra-moldes que uma vez invertidos sobre uma caixa de areia iriam servir de suporte à realização do positivo, o molde propriamente dito. Seguia-se a fase de acabamento (remontagem dos moldes e pintura) e de instalação museológica que, no caso, era feita emhangares anexos à própria escavação e que julgo ainda se conservarem localmente, pois o terreno havia sido adquirido pelo Estado francês. Regressado de França, prepararia ainda nesse ano de 1973, um "album técnico" com as provas fotográficas reveladas por mim num estágio informal que tive oportunidade de realizar com o fotógrafo José Pessoa, no laboratório do Instituto José de Figueiredo. Infelizmente esse "album" viria a perder-se, mas ficara o conhecimento e experiência que julgo terá sido determinante para a temerária decisão de 1979.

António Carlos Silva e João Ludgero, nas escavações de Pincevent (1973)

Moldagens em Pincevent. Aplicação directa do latex sobre a superfície a moldar. Neste caso ensaiava-se uma nova metodologia, visando a obtenção de áreas de maior dimensão. Neste caso o contra-molde recorreria a materiais resinosos, fibra de vidro e barras de alumínio, para evitar o peso do tradicional "gesso" (1973- foto de ACS)


Leroi-Gourhan, observa um molde positivo em gesso, acabado de destacar do contra-molde e antes da fase de acabamento (montagem e pintura). Foto de ACS, 1973.


André Leroi-Gourhan, (vestido de cossaco) e colaboradores num momento de descontração na campanha de 1973 em Pincevent. Foto de ACS



Aspectos das moldagens dos solos de habitat de Pincevent (imagens da NET)

Moldagem de lareira de Pincevent, exposta no Museu do Homem (Paris). Foto de ACS 1985.

O grande desafio que  há quatro décadas se nos colocava em Vilas Ruivas, era antes de mais de natureza logística. O acesso à escavação era sempre feito a pé (normalmente a partir da Fonte das Virtudes onde acampávamos e usando a linha de comboio da Beira Baixa que ali cruza em túnel a dupla crista quartzítica das Portas do Ródão). Para o transporte dos materiais pesados, contávamos com o apoio da câmara municipal de Vila Velha de Ródão e a destreza do seu motorista que por um estradão quase impossível descia com uma pequena camioneta, da aldeia mais próxima (onde terminava a "estrada"propriamente dita), até ao terraço fluvial de Vilas Ruivas, para numa primeira fase transportar todos os materiais indispensáveis: estruturas metálicas, madeiras de cofragem, bidons de latex, sacas de gesso. etc...Finalmente, naquela que terá sido a mais difícil operação no terreno, o transporte dos pesados mas frágeis contra-moldes em gesso, desde a escavação até ao Museu de Castelo Branco. Seria aliás este Museu (na época afecta ao IPPC) que, graças à visão do seu director de então (António Salvado), garantiu o apoio financeiro indispensável para a aquisição dos  materiais necessários para a concretização do projecto, todo ele executado em absoluto voluntariado, como era aliás normal na arqueologia da época.


Vilas Ruivas_ aspecto geral dos trabalhos de 1980, com a operação de moldagem em plena execução.
Sobre a metodologia de campo (obtenção dos negativos em latex e produção dos contra-moldes em gesso) ou mesmo sobre a execução dos moldes, seu acabamento e montagem museológica, não adiantaremos muito para além dos comentários às imagens com que ilustramos este post. Para quem se possa interessar mais sobre esses aspectos, aqui deixamos o link para o opúsculo  A transposição do solo de habitat de Vilas Ruivas (PDF)  da autoria conjunta de Luis Raposo e António Carlos Silva editado pelo Museu de Castelo Branco em 1981 na sequencia de todo este projecto.



Para facilitar o processo de moldadgem, optou-se por uma solução mista. Os blocos maiores seriam levantados previamente e devidamente marcados, moldando-se a respectiva base. Posteriormente seriam integrados na montagem final em museu. O conjunto da superfície a moldar foi por sua vez dividido em sectores de tamanho adequado à logística possível.

Preparação da superfície a moldar, já depois de retirados alguns dos blocos. 

Aplicação das primeiras camadas de latex, posteriormente reforçadas com tarlatana (rede têxtil).

Alguns dos "contra-moldes" de gesso em fase de secagem, ainda "in situ"

Já no Museu de Castelo Branco, montagem do puzzle de "contra-moldes" numa caixa de areia preparada para o efeito. Sobre esta superfície seriam aplicados os respectivos "negativos de latex".

Na execução do molde positivo, optou-se por produzir uma só peça. Essa opção implicou o uso de materiais diversos do tradicional gesso, nomeadamente resinas sintéticas, fibra de vidro e  espuma de poliuretano como base, um material que começava então a aparecer no mercado.

A delicada operação de inversão do molde positivo com a ajuda do pessoal do Museu, facilitada pelo recurso aos novos e mais leves materiais, 

A pintura e os retoques finais já com os calhaus originais repostos nos respectivos lugares.

A operação de moldagem e montagem das estruturas paleolíticas, passou por duas fases principais. A de campo na campanha do Verão de 1980 e a de Museu, concretizada já no início de 1981. A par da execução do molde propriamente dito, a peça central de todo o projecto, e uma vez decidida pelo director do Museu o local para a sua exposição pública, seria necessário planear o seu enquadramento museológico. Hoje seria inconcebível avançar para essa fase sem a cooperação de todo um conjunto de especialidades contratadas externamente pelo Museu. Mas neste caso, a habilidade e bom senso dos próprios arqueólogos, associada à própria mão de obra do museu seriam suficientes, seguindo o modelo, cada vez mais raro nas nossas instituições, de administração directa. E não se julgue por isso que a solução encontrada ou a sua execução fosse menos profissional, pelos parâmetros da época. Basta ler o opúsculo já citado para perceber que, ao contrário do que por vezes hoje acontece em projectos de milhões, por trás da solução museológica proposta havia o respectivo programa justificativo, cuidadosamente preparado. Aliás, não foi por acaso que o seu primeiro autor, o Luis Raposo, apesar do primado da sua formação em Arqueologia, viria posteriormente a ter uma carreira tão destacada na museologia portuguesa, sendo o actual Presidente do ICOM Europa. Naturalmente, a dimensão da estrutura e as características do espaço disponível (a Sala 1 destinada às colecções pré-históricas) acabariam por impôr uma solução quase definitiva (julgávamos nós então) o que condicionaria a utilização futura do espaço. Aceite essa circunstancia pelo Director do Museu, a exposição do solo de habitat de Vilas Ruivas, seria formalmente inaugurada em 11 de Abril de 1981. Refira-se aqui, em justificação do cumprimento de prazos tão apertados, que a fase final deste projecto coincide no tempo com uma circunstancia que acabou por ser decisiva para a sua eficácia. A realização dos trabalhos arqueológicos no Ródão em pleno Verão, não se explicava apenas por condições climatéricas (aliás pouco favoráveis nessa estação do ano) mas sobretudo pela disponibilidade da maior parte dos participantes, alguns já professores do ensino secundário (como era o meu caso e o do Luís Raposo) outros ainda estudantes. Em Outubro de 1980 (já após os trabalhos de campo de moldagem) eu e o Luís Raposo integraríamos a equipa que Francisco Alves conseguiu requisitar para o processo de renovação do Museu Nacional de Arqueologia. Essa circunstancia deu-nos a possibilidade de, pela primeira vez em quase uma década de trabalhos na arqueologia do Ródão, ali nos encontrarmos finalmente como "arqueólogos profissionais", durante as semanas do Inverno de 1981 em que preparámos e executámos toda a montagem expositiva.

Aspecto geral da solução museológica inaugurada em 11 de Abril de 1981
Fotos do dia da inauguração (11 de Abril de 1981)

Nota Final em jeito de desabafo:


Em data que desconheço mas que julgo ser bastante recuada (anos 90 do século passado?) e posterior à aposentação do Dr. António Salvado, o solo de habitat de Vilas Ruivas foi retirado do seu local de exposição e a respectiva exposição de enquadramento desmontada, certamente no âmbito de um justificado processo de "modernização" do Museu. Penso no entanto que nenhum dos arqueólogos responsáveis pela sua instalação foi ouvido ou consultado sobre o seu destino ou local de armazenamento. Pelo menos eu não tenho qualquer informação sobre o assunto. É verdade que, como já referi, apesar de integrar alguns elementos originais, esta estrutura híbrida se constituía antes de mais como um objecto museológico de interacção com o público (o que hoje é conseguido pelas aplicações informáticas 3D tão na moda...). No entanto, representava algo de muito raro se não mesmo único a nível nacional, pelo que se teria justificado um procedimento mais consentâneo com essa circunstancia.

O antes... (1981)

E o depois: a actual sala de Pré-história no Museu de Castelo Branco (foto do SITE da DGPC)

Outras entradas das "Pedras Talhas" relacionadas com este tema:


http://pedrastalhas.blogspot.pt/2014/10/o-paleolitico-do-rodao-as-portas-do.html

http://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/05/a-arqueologia-do-vale-do-tejo-na-tsf.html


ADENDA (20/2/2018)


Este post suscitou alguns comentários (através do FACEBOOK) que, pelo seu interesse para o tema, jugo ser curial aqui registar:

Francisco Sande Lemos:

 Excelente texto como é habitual e com ilustrações esclarecedoras. Após a surpresa e reflectindo com lucidez, a exclusão da moldagem da lareira de Vilas Ruivas na reorganização sem consultar os arqueólogos é normal. Também a exposição permanente do Museu de D. Diogo de Sousa foi realizada sem consultar os arqueólogos responsáveis por Bracara Augusta. Um raro testemunho da passagem dos neardentais pelo Vale do Tejo é algo demasiado pré-histórico e antigo para a "museologia oficial" portuguesa (provocação intencional....obviamente). A verdade é que o abrigo e a lareira de Vilas Ruivas são habitualmente citados na bibliografia europeia da especialidade, pois continua a ser uma das raras evidências do modo como os neardentais, organizavam os seus acampamentos. Basta consultar a net: Origins of Human Innovation and Creativityhttps://books.google.pt/books?isbn=0444538224
Scott Elias - 2012 - ‎Science

The use of different parts of the site for different functions (structured intrasite variability) also needs much better dating for effective testing in Neanderthal assemblages. It has been described for sites in Portugal (Vilas Ruivas), Spain (Abric Romanı, Roca dels Bous), France (La Folie, Abri de la Combette, Vinneuf, Pucheuil, ...

Pormenores, sem relevância maior: a estação de Vilas Ruivas foi descoberta em 1971, pelo Jorge Pinho Monteiro e por mim, tendo a sua importância apenas sido reconhecida anos mais tarde, a partir de 1976, salvo erro. Quanto à deslocação a Paris, na Primavera de 1972, cujo excelente relatório está inédito, além dos nomes citados, participaram Maria Angeles Querol, Susana Lopes e Vítor Oliveira Jorge.

Luis Raposo:

Obrigado, António Carlos, por mais este belo resumo histórico. Também lamento, e muito, a desmontagem do solo de habitat sem a minha e nossa concordância. Disseram-me que as pedras e o suporte foram guardados (desconheço em que condições). A anterior presidente da Câmara Municipal de Vila Velha de Ródão, tão incomodada como eu, dispos-se logo a receber em Ródão o solo e eu dispus-me a ajudar na montagem. Foi feito estudo prévio do Museu, da autoria do arqto. Mário Benjamim, onde o solo constava e todo o programa museológico foi começado a fazer por mim, pelo António Martinho Baptista e pelos amigos de Ródão. Como depois faltou o dinheiro e mudou a Câmara, tudo ficou em espera até hoje. Mais recentemente, já com o Museu Tavares Proença sob tutela municipal (do que discordei), o vereador responsável pelo Museu contactou-me, com o Pedro Salvado, para me pedir apoio na redefinição do programa museológico, dizendo que contava com o solo. Como sempre, e lembrando aliás muito o nosso grande e inspirador amigo Dr. António Salvado e a sua mulher, A Dra. Adelaide Salvado, dispus-me a colaborar. Vamos a ver...

Pedro Miguel Salvado

O Dr. Fernando Raposo já não é o Vereador da Cultura da CMCB. A gestão técnica do Museu está entregue à chefe de divisão Drª Teresa Antunes e a politica (sic) ao assessor do Presidente Dr. Luís Correia ( que anseia colocar o Museu na sua matriz cientifica fundacional) para a área da cultura, o nosso amigo Carlos Semedo. É vontade da Sociedade de Amigos do MFTPJ, já manifestada junto da nova tutela, que o solo de habitat regresse ao Museu, reforçando e cumprindo a geografia de influência gizada pelo seu fundador e pai da arqueologia regional da Beira Baixa Francisco de Tavares Proença Júnior: Um Museu espelho do território da Estrela ao Tejo.








sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

GRUTA DA FETEIRA

Histórias de galinhas e dinossauros na Lourinhã


Reabriu por estes dias, após remodelações, o Museu da Lourinhã. Mas a grande novidade que nos chega do Oeste passa pela inauguração e abertura ao público (hoje mesmo, 9 de Fevereiro) do DINOPARQUE, anunciado como a maior estrutura museológica ao ar livre do país e, como o nome indica, uma espécie de "Parque Jurássico" à portuguesa. Infelizmente já não assistirá a estes tão significativos eventos para a Lourinhã, o Horácio Mateus (1950-2013) justamente considerado o fundador do Museu e o seu principal impulsionador, nas palavras do filho, Octávio Mateus (actualmente um dos mais conhecidos paleontólogos portugueses) deixadas no seu blog ("Lusodinos") após o desaparecimento do pai: 

Morreu ontem, aos 62 anos de idade, Horácio Mateus, fundador do Museu da Lourinhã  Nascido na Lourinhã em 1950, Horácio Mateus esteve envolvido, com outros lourinhanenses, na origem do GEAL, Grupo de Etnografia e Arqueologia da Lourinhã. Nesse seio, o Horácio foi, sem dúvida, o principal promotor do que seria a realização mais óbvia desta associação: o Museu, no qual empenhou o seu tempo e devoção e dedicou o seu espírito. 
Apesar de uma criação conjunta e imprescindível de muitos, Horácio Mateus merece o título do Fundador do Museu da Lourinhã.
Com a esposa, Isabel Mateus, foram os descobridores do famoso ninho de dinossauros de Paimogo, com embriões, o que lhes valeu, a nomeação de Figuras Nacionais do Ano em 1997, pela Revista Expresso. Foi um animado museógrafo e co-autor de três artigos científicos. Ocupou o cargo de Conservador do Museu da Lourinhã durante muitos anos. Apesar da visibilidade pública da temática dos dinossauros, a parte etnográfica e arqueológica era a sua grande paixão.
Adeus pai


Conheci o Horácio e a Isabel Mateus no final de 1981, quando estes procuraram apoio no Museu Nacional de Arqueologia para uma situação de emergência arqueológica que haviam detectado no âmbito das actividades de campo do GEAL, uma associação local de estudo e defesa do património cultural (etnográfico e arqueológico) que eles próprios haviam fundado, como tantas outras que com maior ou menor sucesso, surgiram um pouco por todo o país na sequência do abalo cívico provocado pelo 25 de Abril. Encaminhados para os serviços do Departamento de Arqueologia do IPPC acabado de instalar no próprio Museu de Belém, coube-me a mim (enquanto braço direito do Francisco Alves que acumulava então a direcção do Museu e do Departamento) receber o casal lourinhanense que informava da descoberta de uma pequena cavidade com interesse arqueológico durante as obras de construção de um aviário, próximo da localidade da Feteira, concelho da Lourinhã. 

O processo de intervenção que se seguiu e cujos detalhes recordamos mais adiante, terá representado um dos primeiros passos que conduziria, pouco tempo depois (1984) à constituição do Museu da Lourinhã, em resultado de uma iniciativa conjunta do próprio GEAL e da Câmara Municipal. Instalado provisoriamente no edifício devoluto do antigo tribunal, o pequeno conjunto arqueológico descoberto na Feteira (por causa das "galinhas") a par de outras recolhas do casal Mateus, ganhava assim especial destaque fundacional. Estava-se longe das descobertas paleontológicas que acabariam por alterar os planos iniciais de Horácio Mateus, especialmente interessado na etnografia e na arqueologia. Com efeito, datam de 1991 as primeiras descobertas significativas de vestígios de dinossauros na região mas foi com a descoberta em 1993 do célebre "ninho de dinossauros" por Isabel Mateus que a Lourinhã entrou definitivamente nos "trilhos" do Jurássico. 



Espólio neolítico da Feteira, exposto no Museu da Lourinhã


O aviário da Feteira em construção. Em primeiro plano à direita, o abrigo improvisado que permitiu realizar a escavação durante o Inverno de 1982
A escavação da Gruta da Feteira

A região da Feteira integra-se no planalto da Cesareda, zona cársica conhecida desde meados do século XIX pelo seu interesse geológico e arqueológico, pelo que a notícia da descoberta de ossadas humanas associadas a espólio neolítico não foi propriamente uma novidade. O que era especial e exigia medidas urgentes, era a circunstancia da cavidade ter sido descoberta durante a abertura das fundações de uma sapata de um aviário industrial em construção. Estávamos ainda longe daquilo que hoje chamamos de "arqueologia preventiva" e que permite (nem sempre com grande eficácia) impor algumas condicionantes em determinados projectos. Mas à época a Lei permitia, pelo menos interromper obras durante algum tempo para que "fossem tomadas pelas autoridades as medidas consideradas necessárias". E foi exactamente o que aconteceu neste caso, graças à previdência de uma associação local, à indispensável colaboração municipal e até, como se recorda na posterior publicação, ao apoio da imprensa que deu o devido destaque à descoberta. O Departamento de Arqueologia, apesar de meios muito reduzidos (como se poderá imaginar), promoveria com a urgência que o caso requeria a realização de uma escavação, contratando para o efeito os serviços do jovem arqueólogo João Zilhão, então recém-licenciado mas já com grande experiência de trabalho de campo (nas regiões do Ródão e Tomar).



A abertura da cavidade descoberta nas fundações de um dos pilares do aviário


As dificuldades da intervenção agravadas por um Inverno rigoroso

 Perante carências logísticas de toda a espécie, só supridas com o apoio total da família Mateus que se constitui em equipa de apoio local (incluindo o Octávio Mateus, então com sete anos como o próprio refere em entrevista 
que pode ser lida aqui  ) e condições climatéricas muito adversas, a escavação da pequena gruta, realizar-se-ia entre Fevereiro e Maio de 1982, confirmando os seus resultados, tratar-se de uma pequena necrópole ou ossário, cobrindo cronologicamente todo o Neolítico. Posteriormente, mais pela exemplaridade de todo o processo, do que pela excepcionalidade da descoberta (relativamente comum na região), o Departamento de Arqueologia decidiria editar o excelente relatório entretanto produzido por Zilhão. Perante a falta de um meio adequado à edição de "monografias arqueológicas", no contexto das várias iniciativas editoriais com que procurávamos combater a endémica ausência de divulgação dos resultados da arqueologia portuguesa, criámos então uma colecção a que chamámos "Trabalhos de Arqueologia" (de algum modo plagiando os "Trabajos de Prehistoria", série monográfica criada em 1960 em Espanha pelo Prof. Martin Almagro Basch), e da qual a "Gruta da Feteira" seria o nº 1 (ed. 1984). Enquanto Director do Departamento de Arqueologia (até 1988) ainda seria responsável pela edição dos primeiros 6 volumes mas felizmente, a colecção, com altos e baixos, manteve-se até hoje (desconheço no entanto quais as intenções da DGPC a esse respeito uma vez que não há novas edições desde 2011), tendo sido entretanto editadas mais de cinquenta monografias (Mais precisamente 53, de acordo com o SITE da Loja da DGPC ) . Curiosamente, seria na fase IPA (Instituto Português de Arqueologia, 1997-2007) dirigido precisamente por João Zilhão e Fernando Real (que enquanto geólogo e sedimentólogo também colaborou neste 1º volume) que a colecção ganharia maior relevância no contexto da edição arqueológica portuguesa, pese embora a importância que então assumida pela Revista Portuguesa de Arqueologia (virada para artigos de menor fôlego) também criada no contexto do IPA. Infelizmente poucos volumes dos "Trabalhos de Arqueologia" estão disponíveis em PDF, como é o caso deste 1º volume. Assim, para além da capa aqui deixamos cópia da respectiva "ficha técnica" bem como da Nota Prévia que então redigi (já como Director do Departamento de Arqueologia) e na qual apresento os objectivos da nova colecção. Como curiosidade, apresento também algumas fotos da escavação da Gruta da Feteira então publicadas.

De referir, em jeito de apontamento final, que em 1993, graças de novo à vigilância do GEAL, o então IPPAR foi alertado para a descoberta de uma segunda cavidade nas imediações deste mesmo aviário. Confirmado o interesse arqueológico, claramente relacionado com a primeira cavidade, foram então tomadas as primeiras medidas de salvaguarda da Gruta da Feteira II (também já muito afectada pela exploração aviária). Entre 1995 e 1997, a arqueóloga Ana Cristina Araújo (que já participara nas escavações de 1982) e a antropóloga Cidália Duarte, ali viriam a realizar para o IPPAR, escavações que comprovaram existir coerência cultural e cronológica entre os vestígios funerários das cavidades vizinhas.






A Gruta da Feteira, Lourinhã, 1984- ficha técnica





Um dos planos da escavação em que é possível observar um crânio humano e diversos osso longos associados 

Um dos cortes da escavação, mostrando que uma parte dos depósitos arqueológicos haviam já sido afectados pela betonagem das fundações do aviário

A situação final após a construção do aviário. A seta indica o alçapão de acesso à parte da gruta que foi possível conservar.




segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018



"1973"


Numa altura em que acabo de passar à situação de "aposentado" (1 de Janeiro de 2018) sinto-me particularmente sensível a determinados eventos ou datas. Ainda que para várias gerações de portugueses, incluindo a minha, por razões compreensíveis, 1974 seja um marco indelével (há sempre um antes e um depois do 25 de Abril desse ano) no meu caso posso afirmar que também 1973 acabaria por ter uma importância muito especial.

Nesse ano atingi a maioridade pelos padrões da época (21 anos), acabei o bacharelato em História na Faculdade de Letras (o que me abriu as portas do ensino tendo em Outubro começado a leccionar no novo curso nocturno do Liceu da Amadora). No Verão de 1973 saí pela primeira vez de Portugal para participar como estudante voluntário nas escavações arqueológicas de Pincevent (França) e de Pinedo (Espanha) viagens que acabaram por ser determinantes para um futuro profissional que então mal podia sonhar. De facto, embora participasse desde 1972 nas campanhas arqueológicas do Ródão, foi em especial o contacto com o Professor André Leroi-Gourhan (1911-1986) e a sua equipa que influenciou decisivamente a minha orientação para a Arqueologia, embora esse objectivo fosse na época, algo utópico...

Foi pois com muita curiosidade que acedi na INTERNET a um novo "link" dos Arquivos RTP que me fizeram chegar recentemente e que "anunciava" uma excursão arqueológica de 1973. É verdade que já conhecia este excelente serviço da televisão pública, onde estão disponíveis para visualização "on line" antigas reportagens sobre temas arqueológicos (nomeadamente uma muito informativa, datada de 1971, sobre os trabalhos de Henrique Leonor de Pina nos Almendres), mas não conhecia ainda esta "visita de estudo do curso de iniciação à arqueologia", datada precisamente de 1973.

Da respectiva sinopse consta apenas o seguinte:

Reportagem sobre a visita de estudo efectuada pelos alunos do Curso de Iniciação à Arqueologia e pelo seu director Fernando Nunes Ribeiro a um conjunto de locais de interesse arqueológico: Grutas do Escoural e dólmen da Herdade da Mitra em Montemor-o Novo, Museu e Templo de Diana em Évora, e Cromeleque do Xerez em Reguengos de Monsaraz.


https://arquivos.rtp.pt/conteudos/visita-de-estudo-do-curso-de-iniciacao-a-arqueologia/#sthash.IT6XDbkJ.dpbs


Infelizmente, não tenho qualquer informação sobre o "curso" em causa. Aparentemente, e uma vez que este seria dirigido pelo arqueólogo Fernando Nunes Ribeiro  (veterinário de Beja, cidade de que chegou a ser Presidente da Câmara, mas também arqueólogo amador, conhecido sobretudo pela descoberta da villa romana dos Pisões) poderemos imaginar que se trata de uma iniciativa de cariz regional (?). De qualquer modo, mais que o contexto factual e objectivo do evento, interessou-me neste caso apreciar quer a situação dos monumentos ou sítios visitados há quase meio século quer a própria atitude dos "visitantes" (um grupo aparentemente muito heterogéneo, nomeadamente no que respeita a "idades", o que aponta para o carácter informal do "curso"). De recordar aos mais novos, que à época não existia na universidade portuguesa qualquer formação específica em Arqueologia, sendo esta temática, então dita "auxiliar", abordada apenas em 2 ou 3 disciplinas da Licenciatura em História.

A visita de 1973 iniciou-se pela Gruta do Escoural. A cavidade havia sido descoberta uma década antes no âmbito de exploração de uma pedreira e os trabalhos arqueológicos de Farinha dos Santos já estariam terminados por esta época. Não temos data precisa para a instalação das primeiras estruturas de visita (renovadas em 2010) mas calcula-se que terão sido construídas no final dos anos 60. Exteriormente a Gruta apresentava em 1973 o aspecto e condições da pedreira original, conforme imagem de arquivo que se anexa para comparação.






Exterior da Gruta do Escoural pouco tempo após a descoberta (Foto de Arquivo, s/data)


Por cima da Gruta, os afloramentos onde Mário Varela Gomes identificaria em 1978, gravuras rupestres neolíticas, sobrepostas por vestígios de um povoado da Idade do Cobre


Após a visita à Gruta do Escoural, seguiu-se a visita à "Anta Grande do Zambujeiro", impropriamente designada na reportagem como "Anta Herdade da Mitra" e erroneamente localizada em Montemor-o-Novo. Com efeito, o acesso normal a esta gigantesca Anta é feito através da Herdade da Mitra, Valverde (afecta à Escola Agrícola, hoje à Universidade de Évora) mas situa-se já fora dos respectivos limites desta e em propriedade privada. Ao contrário do que se observa no caso da Gruta do Escoural (entretanto adquirida pelo Estado e objecto de várias intervenções de requalificação), a Anta Grande do Zambujeiro apresentava-se à época em melhores condições do que no presente. Escavada no final dos anos 60 por Henrique Leonor de Pina, a sua estrutura até então protegida pela enorme mamôa de terra (ainda bem visível nas imagens da RTP) entraria depois em processo de progressiva degradação. Uma cobertura provisória instalada nos anos 80 bem como algumas medidas pontuais de consolidação, não alteraram no essencial a lamentável situação deste "monumento nacional", hoje uma chaga incompreensível da arqueologia nacional. (com temos recordado neste blog)

A Anta Grande do Zambujeiro, aspecto geral em 1973




Adicionar legenda
Não deixa de ser também curiosa, a atitude revelada na reportagem por parte dos "iniciados" à Arqueologia...na imagem, sobre uma das lajes da cobertura do corredor, entretanto desmontada nos anos 80, por ameaçar ruína.

Hoje parecerá estranho que os excursionistas não tenham visitado também o vizinho o Cromeleque dos Almendres, monumento que em 1973 era já relativamente conhecido (graças sobretudo às fotos de José Justo, na "Pré-história de Portugal" de M. Farinha dos Santos, editado pela Verbo em 1972). Mas a explicação é simples. Em 1973, por mais ousado que fosse o motorista (e este não hesitou em conduzir o autocarro até à Anta Grande do Zambujeiro, atravessando inclusive a "Ribeira da Peramanca") não havia qualquer acesso praticável ao Cromeleque, sobretudo a partir do Monte dos Almendres. O estradão que hoje é percorrido pelos milhares de turistas que ali se dirigem, foi construído no final dos anos 80 pela Câmara Municipal de Évora.



A "excursão arqueológica" dirigiu-se depois para a cidade de Évora, com a inevitável visita ao "Templo Romano", a cujo pódio era então "normal" subir (no início do século XX o acesso estava vedado por uma grade, tal como viria a acontecer de novo desde os anos 90, por razões de conservação). Seguiu-se a visita ao Museu de Évora que apresentava na cave recentemente construída, uma pequena exposição de arqueologia inaugurada em 1970 e na qual se mostravam já alguns materiais da Gruta do Escoural (uma pequena amostragem, uma vez que a maioria, com grande escândalo local, havia sido depositada no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa).





A excursão terminaria nas proximidades de Monsaraz, junto ao "Cromeleque do Xerez", um monumento que havia sido recentemente estudado e "restaurado" pelo médico e arqueólogo amador de Reguengos, Dr. José Pires Gonçalves, numa intervenção não isenta de alguma controvérsia.

Como é sabido, após novas escavações promovidas pela EDIA em 1997 e concretizadas por Mário Varela Gomes, este monumento megalítico, por se encontrar em cota de inundação da Barragem do Alqueva, acabaria por ser desmontado e reerguido nas proximidades do Convento da Orada (também nas proximidades de Monsaraz) no contexto de um projecto de recuperação patrimonial que, infelizmente, ficou muito aquém dos objectivos preconizados...



Quarenta e cinco anos após a recolha destas imagens e chegado ao fim de uma carreira profissional que dava então nesse ano os primeiros passos, não posso deixar de sentir alguma nostalgia ao rever esta curiosa reportagem. 

Cerca de década e meia depois iniciava novos trabalhos de arqueologia na Gruta do Escoural que culminariam já neste século com um decisivo projecto de requalificação. 

Apoiei em 1989, enquanto responsável pelo Serviço Regional de Arqueologia do Sul, o projecto do Museu de Beja de divulgação pública da colecção arqueológica de Fernando Nunes Ribeiro, oferecida por este àquele Museu em 1987.

Pese embora a situação lamentável a que chegou a Anta Grande do Zambujeiro, fui intervindo no respectivo processo, mesmo antes de me mudar para Évora, em função das capacidades e competencias de cada momento. Actualmente, enquanto membro da Assembleia de Freguesia local (Tourega e Guadalupe), na falta de outros meios, continuarei a alertar para a sua escandalosa situação. 

Por fim, enquanto coordenador dos trabalhos de arqueologia da Barragem do Alqueva (1996-2002), fui o directo responsável pelas novas investigações sobre o Cromeleque do Xerez e pela respectiva reinstalação. Pena é que o monumento, pese embora o investimento feito pela EDIA, esteja hoje praticamente ao abandono por desinteresse local. conforme já aqui chamei a atenção