quinta-feira, 30 de março de 2017

O colar de Sintra


O caso é bem conhecido entre os arqueólogos mas poucos portugueses saberão que a mais fantástica joia pré-histórica encontrada em Portugal, um "torques" ou colar da Idade do Bronze (produzido há cerca de 3 000 anos) com origem bem documentada, se encontra há mais de um século no Museu Britânico, inventariada com o nº de código 1900-7-27. Em Portugal, como consolação, existe uma cópia envergonhadamente exposta no Museu Nacional de Arqueologia. Dir-se-ia que a "Xorca de Sintra", como também é conhecida, está para a arqueologia portuguesa, como o friso do Pártenon (os "mármores" que Lord Elgin levou para o Museu Britânico, no início do Século XIX) está para a arqueologia grega... Com uma grande diferença. Nunca nenhum ministro ou ministra portuguesa, ousou reclamar a sua posse, a exemplo da grande Melina Mercouri, enquanto Ministra da Cultura...

As circunstâncias que rodearam quer a descoberta quer a posterior "exportação" do colar de Sintra, são bem conhecidos porque foram à época registadas pelo próprio Leite de Vasconcelos, o fundador do MNA (então denominado Museu Etnológico) na revista "O Arqueólogo Português".  A descoberta teria acontecido por volta de 1895 no Casal de Santo Amaro, tendo chegado ao conhecimento dos meios arqueológicos por uma comunicação à Associação dos Arqueólogos na sequencia de uma notícia publicada no Século (19 de Junho desse ano). Com a cumplicidade do achador, naturalmente interessado em obter uma peritagem que  valorizasse o  artefacto para além do já seu invulgar peso em ouro (1262 gramas), Leite de Vasconcelos teve então acesso directo ao colar, tendo publicado os resultados do seu estudo no ano seguinte. Só voltamos a ter notícias sobre o colar, novamente através da pena de Leite de Vasconcelos, em curta mas indignada nota mais uma vez publicada n"O Arqueólogo Português" em 1902. Nela Leite de Vasconcelos dá conta do que considera uma verdadeira "catástrofe" nacional: a venda para um museu inglês da "Xorca de ouro de Cintra" que mais uma vez classifica como "o mais belo objecto arqueológico de ouro que existia em Portugal". Dá então a conhecer as suas próprias tentativas frustradas de adquirir a peça em 1895, altura em que o achador e detentor teria pedido uma quantia exorbitante (4 000 réis) o dobro do valor afinal conseguido com a venda para Inglaterra, negócio provavelmente concretizado em 1900 (o nº de inventário do British, parece indicar isso, embora no artigo de 1902 Leite de Vasconcelos, que desconhece ainda embora suspeite, do museu comprador, se limite a falar de um negócio já "com alguns meses".

Julgo que, para além da produção da cópia hoje exposta na "Sala dos Tesouros", em época e circunstancias que desconheço, esta lamentável história da nossa arqueologia, poucos outros episódios terá a registar. No entanto, há dias, graças mais uma vez à atenção e generosidade intelectual do editor português da National Geographic, Gonçalo Pereira, tive acesso a uma pequena notícia publicada no Diário de Notícias de 2 de Abril de 1878, que veio afinal trazer novos dados para esta história. Assim ficamos a saber que a descoberta ocorrera quase duas décadas antes da sua apresentação na Associação dos Arqueólogos, no decorrer de trabalhos numa pedreira localizada no Sítio da Riba Fria, a três quilómetros de Sintra, numa antiga propriedade do Vice-rei da Índia, D.João de Castro. Como proprietário da pedreira aparece já citado Joaquim Paulo (o futuro vendedor do colar ao British Museum) que a havia adquirido algum tempo antes ao Conde de Penamacor. Pela releitura do artigo publicado 17 anos depois no jornal "O Século", percebemos que a descoberta e o valor em causa, terá originado um longo pleito judicial, eventualmente com o anterior proprietário, só resolvido em 1895 altura em que chega ao conhecimento de Leite de Vasconcelos. (Recordemos a propósito que estes assuntos de litígios em torno de achados arqueológicos, não são assim tão raros como parece. Veja-se por exemplo:  http://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/06/afinal-ainda-ha-tesouros-para-alguns.html

A notícia encontrada pelo Gonçalo Pereira, dá-nos ainda uma outra pista interessante. De acordo com informação recolhida pelo próprio aqui http://palacio-de-sintra.blogspot.pt/2011/05/lendas-e-tradicoes-do-solar-quinta-de.html, estará associada à Quinta da Riba Fria a lenda de um tesouro escondido, trazido da Índia por um dos descendentes de D.João de Castro. Se a descoberta do colar pré-histórico deu origem à lenda, ou se pelo contrário veio contribuir para o exacerbamento da mesma, é coisa que não posso adiantar, mas de facto, a primeira notícia refere já a possibilidade do achado se tratar de "algum adorno alegórico da Índia". No entanto, lendas de tesouros perdidos  é coisa que não falta no imaginário nacional e Sintra, não é excepção, bem pelo contrário. Eu próprio, enquanto responsável pelos serviços de arqueologia do IPPC, fui testemunha há cerca de três décadas, de uma rocambolesca mas verídica história de "busca ao tesouro" num dos Palácios de Sintra que (feliz ou infelizmente segundo as perspectivas) acabou em nada...Mas sobre esse assunto (que dava quase um folhetim do tipo "Mistério do Palácio de Sintra" se ainda houvesse um Eça ou um Ramalho) envolvendo descendentes de um Engenheiro alemão ao serviço de D.Fernando II de Saxe- Coburgo-Gota, relatos da fuga da família real para o Brasil e o (histórico)  desaparecimento de grande parte das joias da corôa portuguesa, pouco poderia adiantar para além do que então, como funcionário público me foi dado observar a uma conveniente e higiénica distância.

Para documentação da triste história da xorca, torques, ou simplesmente colar de Sintra, aqui deixo os artigos de jornal citados, bem como parte das notas publicadas por Leite de Vasconcelos n'O Arqueólogo Português, felizmente hoje totalmente acessível graças à NET. Para os não arqueólogos, fica também a página do catálogo referente ao "Colar de Sintra" da grande exposição sobre a Idade do Bronze coordenada pela minha colega e amiga Susana Lopes (A Idade do Bronze em Portugal-discursos do poder)  ver aqui

Diário de Notícias, 2 Abril de 1878_ a descoberta do colar
O Século, 19 de Junho de 1895


A primeira nota de Leite de Vasconcelos (1895)



Primeira página do estudo de Leite de Vasconcelos sobre o Colar de Sintra

A indignada nota de J.L. de Vasconcelos sobre a venda para o estrangeiro do Colar de Sintra (1902)
























3 comentários:

  1. É realmente uma pena o facto de tal objecto ter escapado às nossas mãos, ainda para mais com um estilo único que em nada se compara com outros torques descobertos na europa com a mesma cronologia. Um símbolo de identidade e cultura ibérica da idade do bronze em todo o seu esplendor. Há alguns anos, durante a minha licenciatura, foi-me dado a conhecer a existência deste artefacto pela Prof. Joaquina Soares, porém nunca encontrei nada de significativo acerca do mesmo online. Está de parabéns pelo artigo! Não consigo deixar de reparar nos paralelos entre os motivos impressos na xorca que são semelhantes a motivos impressos em cerâmicas do bronze do sudoeste (necrópole de provença por exemplo).

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. http://descricaoarquivisticaearqueologia.blogspot.com/2016/05/colar-de-ouro-da-idade-do-bronze-final.html?m=1

      Eliminar
  2. http://descricaoarquivisticaearqueologia.blogspot.com?m=1

    ResponderEliminar