quinta-feira, 6 de abril de 2017


Afinal “eles” andavam por aí há 400 000 anos…



A notícia tem já alguns dias e quando surgiu teve um impacto mediático considerável, quer nos meios convencionais (jornais e televisão) quer nas redes sociais. Julgo que teve mesmo ampla divulgação a nível internacional, tendo-me chegado ecos dos EUA, da parte de conhecidos que nada têm que ver com a Arqueologia. notícia no Público; e nos USA

Estou-me a referir à divulgação, não da descoberta (pois essa aconteceu há três anos) mas dos resultados da morosa investigação de laboratório entretanto realizada e que permitiu recuperar no interior de um bloco de calcite recolhido na das Gruta da Aroeira que integra a rede de cavidades do Almonda (Torres Novas), parte de um crânio humano com cerca de 400 000 anos, datação confirmada quer pelos métodos laboratoriais de datação absoluta, quer pelos métodos tradicionais de datação relativa em função do contexto arqueológico associado ao achado em causa.
Bifaces acheulenses (Paleolítico inferior) associados aos restos antropológicos da Gruta da Aroeira

Entretanto e como é habitual, a notícia perdeu-se logo no dia seguinte no turbilhão mediático dos dias correntes, não dando sequer tempo a que, mesmo o público eventualmente mais interessado ou curioso, se apercebesse do excepcional alcance de tal descoberta. É certo que estamos já de sobreaviso para os habituais títulos “bombásticos” que costumam acompanhar as notícias de arqueologia e, devemos assumi-lo, nem sempre a culpa é dos jornalistas. São demasiado frequentes para serem levadas a sério, as descobertas ”únicas” ou os “achados do século”, gerando compreensível desconfiança ou desinteresse nos interlocutores. Neste caso, porém, pelo menos para os arqueólogos portugueses, este achado não pode deixar de ser visto como absolutamente extraordinário, e passarei a explicar porquê.

O aparecimento em França e Inglaterra no início do Século XIX de artefactos de pedra lascada associados a espécies há muito extintas e em estratos geológicos cuja antiguidade era já possível comprovar, abriu caminho a descobertas semelhantes um pouco por toda a Europa, rompendo finalmente com o espartilho das tradicionais cronologias bíblicas. Em Portugal, caberia aos pioneiros da Comissão Geológica, como Nery Delgado, Carlos Ribeiro ou Pereira da Costa, no âmbito dos trabalhos de levantamento geológico do território promovidos pelo Fontismo, introduzir a nova corrente de conhecimento, provando que no nosso território também eram evidentes os vestígios dessa humanidade pré-histórica que então se começava a descobrir. De tal modo as suas descobertas seriam reconhecidas que em 1880 reunir-se-ia em Lisboa a IX sessão do Congresso Internacional  de Antropologia e Arqueologia Pré-histórica, considerado pelo número e qualidade dos participantes e alcance das comunicações, como um marco no desenvolvimento da arqueologia pré-histórica europeia.

Ilustração do estudo de Pereira da Costa sobre o concheiro do Cabeço da Arruda (Muge), 1865. Restos humanos post-paleolíticos
Os Congresisstas de 1880 (foto do arquivo do Museu dos Serviços Geológicos)

A partir dessa data, ainda que fundamentalmente na órbita dos Serviços Geológicos, a recolha e o estudo de artefactos de pedra lascada paleolíticos, até como forma complementar de datação das formações geológicas quaternárias de origem fluvial ou marinha, passaria a ser uma prática corrente no âmbito da arqueologia portuguesa, contribuindo progressivamente para a noção de que o ocidente peninsular, à imagem do que se passara na Europa, fora durante muitos milhares de anos testemunha da presença de sucessivas raças humanas, cobrindo todas as grandes fases conhecidas da Pré-história antiga. Em determinadas épocas, algumas circunstâncias propícias haveriam até de contribuir para saltos qualitativos para esse reconhecimento, conferindo especial destaque aos estudos paleolíticos portugueses. Foi o que aconteceu em resultado da estadia algo forçada do Abade Henri Breuil (o Papa da Pré-história) em Portugal durante a II Guerra Mundial. Breuil que, já anteriormente no âmbito de uma presença atribulada na fronteira do Caia em 1916 (chegou a estar preso pela GNR que desconfiou da presença dum estrangeiro de "sotaina" perto da fronteira), descobrira em Arronches artefactos paleolíticos que publicaria mais tarde no Arqueólogo Português, realiza nos anos quarenta com Georg Zbyzewski, o estudo sistemático dos materiais recolhidos nos terraços de origem quaternária da costa portuguesa (praias elevadas) e do vale do Tejo (terraços fluviais), estabelecendo o quadro geral da “evolução da ocupação paleolítica" do nosso território.


Ilustração da obra de Breuil e Zbyzewski. Materiais de Alpiarça (Vale do Forno)



Ilustração da obra de Breuil e Zbyzewski- foto dos terraços de Alpiarça ( Vale da Caqueira e Vale de Atela)

Escavações de Luis Raposo, um dos elementos do GEPP no Vale do Forno (Alpiarça- anos 90) meio século após os estudos de Breuil e Zbyzewski

Tal “quadro geral” que continuaria a ser seguido até aos anos 70 do século passado, apresentava no entanto alguns problemas complexos. Ainda que a origem humana dos muitos milhares de artefactos recolhidos fosse de uma maneira geral incontestável, a sua classificação cronológica baseada quase exclusivamente na sua forma (tipologia) e no grau de patine, já que raramente resultavam de escavações estratigráficas, colocava muitas dúvidas. No que respeita à tipologia, sabemos que as formas e técnicas, uma vez adquiridas, tendem a prolongar-se no tempo, e o grau de patine, não depende afinal apenas do factor tempo… Uma das grandes questões em aberto (e ainda hoje não esclarecida) era a da eventual presença no nosso território de vestígios anteriores ao Acheulense (um momento já muito avançado no Paleolítico Inferior e a que correspondem os últimos achados do Almonda) rastreados pela presença de artefactos, aparentemente muito primitivos, feitos sobre seixos rolados…

Mas a par das interrogações metodológicas e teóricas levantadas por uma nova geração de jovens arqueólogos congregada em torno de Vitor Oliveira Jorge a partir dos anos 70, sobre esta "Geração do Tejo" ver aqui , o grande “buraco negro”da arqueologia paleolítica portuguesa, era desde sempre, a quase absoluta ausência de vestígios antropológicos. É verdade que os pioneiros da Comissão Geológica se depararam desde cedo, quer nas Grutas do Oeste (Furninha e Cezareda), quer ao ar livre, nos célebres concheiros de Muge, com restos osteológicos do homem pré-histórico. Mas também é certo que rapidamente se deram conta, pelos materiais em contexto, que esses vestígios não correspondiam à fase mais arcaica do Paleolítico ou da Pedra Lascada. Mesmo ao longo do Século XX e apesar de numerosas intervenções em Grutas, quase sempre usadas no Neolítico como necrópoles, os vestígios paleolíticos eram raros e os de natureza antropológica estavam sistematicamente ausentes. Um dente descoberto na Gruta Nova da Columbeira (Bombarral) nos anos 60, associado a uma ocupação do Paleolítico Médio, contemporânea da presença Neanderthal, era afinal a tímida excepção que confirmava esse vazio quase absoluto.

E nem a tal nova geração apesar de abrir novas frentes de pesquisa, nomeadamente na zona de Tomar e Torres Novas, a partir dos anos 80 do século passado, parecia capaz de alterar este panorama. Nos terraços quaternários do Ródão, onde na sequencia do afundamento da Arte Rupestre pela Barragem do Fratel, se concentraram numa primeira fase, seriam identificados e estudados com novas abordagens, sítios de grande relevância para o conhecimento do Paleolítico Inferior (Monte do Famaco) e Médio (Vilas Ruivas, que revelou pela primeira vez estruturas de um acampamento paleolítico, raras mesmo a nível internacional e Enxarrique, com vestígios de fauna extinta.

Escavação das estruturas de acampamento de Vilas Ruivas (1980)
Remontagem no Museu de Castelo Branco das estruturas de acampamento escavadas em Vilas Ruivas (1981). Ao centro João Zilhão

As circunstancias da vida e os condicionalismos da própria actividade arqueológica, encarregar-se-iam de dispersar por muitas outras áreas e interesses, os membros do GEPP, o grupo de jovens que sonhara nos anos70/80 finalmente preencher o tal “buraco negro” do nosso Paleolítico. Mas a semente que lançaram acabaria por, muito mais tarde, dar os seus frutos.  Conscientes das limitações da arqueologia paleolítica ao ar livre, onde raramente se conjugam circunstâncias favoráveis a uma preservação mínima de registos com tantos milhares de anos, alguns elementos já então liderados por João Zilhão, orientaram o seu interesse para as cavidades existentes na região de Tomar e Torres Novas. Décadas de pesquisa pouco conhecida do público, vieram trazer novos dados para uma melhor caracterização das sucessivas fases do Paleolítico do território português, permitindo até o reenquadramento de muitos materiais recolhidos na Estremadura ainda na primeira metade do século XX por Manuel Heleno (sucessor de Leite de Vasconcelos no Museu Nacional de Arqueologia) e que nunca haviam sido publicados. O quadro geral da presença paleolítica no nosso território tornava-se cada vez mais preciso mas, teimosamente, o Homem físico continuava totalmente ausente, apesar de novos indícios neanderthais terem surgido nos anos 80 numa pequena gruta de Sesimbra (Figueira Brava). E nem as espectaculares descobertas das manifestações artísticas paleolíticas no Vale do Côa em 1994, confirmando as do Escoural décadas antes, podiam ser associadas a uma qualquer presença antropológica concreta.

Os primeiros sinais de que as coisas poderiam estar a mudar ocorreram no Natal de 1998, praticamente no final do Século XX, quando elementos da equipa técnica de Zilhão, em trabalhos de prospecção detectaram no abrigo sob rocha do Lagar Velho, próximo de Leiria, um esqueleto quase completo (provavelmente uma sepultura intencional) de uma criança pré-histórica, “o menino do Lapedo”. A meticulosa investigação então empreendida por Zilhão e que viria a contar com colaboração internacional especializada, viria a determinar uma data (24 500 aC) que colocava o esqueleto nos alvores do Paleolítico Superior mas que, do ponto de vista antropológico, levantava a hipótese polémica, de se estar perante um indivíduo produto do cruzamento entre neanderthal e homem moderno. Apesar das críticas à interpretação avançada, esta era uma descoberta absolutamente excepcional que, finalmente, vinha dar algum conteúdo antropológico, a século e meio de intensas pesquisas paleolíticas. Mas, com mais ou menos traços arcaicos, a criança do Lagar Velho, era já um antepassado relativamente próximo, deixando ainda no escuro centenas de milhares de anos de presença humana inequívoca mas antropologicamente invisível.

É essa lacuna que, por fim, a anunciada descoberta de Zilhão e da sua equipa veio agora preencher, precisamente numa das grutas do complexo do Almonda onde paciente e incansavelmente vinha trabalhando desde os anos 80, mostrando que em ciência tudo está sempre em aberto. Com efeito o crânio “Aroeira 3 “(Aroeira 1 e 2 correspondem a dentes isolados), remete-nos para uma data concreta (400 000 aC), bem dentro do Paleolítico Inferior e para uma humanidade inequivocamente pré-Neanderthal. Trata-se desde logo do mais antigo antepassado humano, jamais descoberto no nosso território, e até hoje o único indivíduo que podemos directamente responsabilizar, pela produção de grande parte dos inumeráveis artefactos paleolíticos recolhidos ao longo de mais de século e meio de pesquisa arquelógica nacional.







Sem comentários:

Enviar um comentário