sexta-feira, 29 de dezembro de 2017



Legislação patrimonial e Arqueologia nas últimas duas décadas do Século XX_ alguns documentos



Como é geralmente reconhecido, a Arqueologia portuguesa sofreu uma verdadeira revolução nas duas últimas décadas do Século XX. Nos anos 80, graças sobretudo à actividade dos "serviços regionais de arqueologia" do IPPC (1980-1990) conjugada com a rápida evolução das instituições universitárias (quer das tradicionais quer das novas entretanto criadas); nos anos noventa sobretudo após as descobertas extraordinárias do Vale do Côa, fruto da acção do IPA, o Instituto Português de Arqueologia (1997-2007) a única experiência até hoje de gestão autónoma do património arqueológico. Entretanto e ainda que com a lentidão habitual, o enquadramento jurídico da arqueologia, reflectido através da legislação patrimonial, foi-se adequando a essas mudanças. Naturalmente, enquanto técnico da área, tive oportunidade de também contribuir para esse ajustamento jurídico e que, no essencial, ficou inscrito na Lei de Bases do Património Cultural que haveria de conhecer duas versões. A Lei 13/1985, a primeira lei geral sobre o património cultural do pós-25 de Abril (não deixa de ser estranho que tenha sido necessária uma década para a produzir...) e a Lei 107/2001 que década e meia depois veio substituir aquela.

Entre a documentação que fui conservando, encontrei alguns pareceres relacionados com essa legislação, a começar por um parecer da 1ª secção do Conselho Consultivo do IPPC, datado de 1990 (á época integrava o mesmo enquanto director do Serviço Regional de Arqueologia do Sul), sobre a regulamentação da Lei do Património Cultural em vigor na época, a Lei 13/1985. Cinco anos após a publicação da Lei, esta continuava por regulamentar em aspectos importantes... 

Segue-se um parecer emitido individualmente, sobre as implicações para a arqueologia de uma Portaria (1008/92) que vinha regulamentar o funcionamento do Conselho Consultivo do IPPAR, o Instituto que substituira entretanto o IPPC. Começava à época o desmantelamento das estruturas consultivas da arqueologia...

Por último, regista-se um outro parecer individual (1994) emitido já sobre a matéria arqueológica de uma primeira versão do que viria a ser a nova Lei de Bases do Património Cultural, finalmente publicada sete anos mais tarde (Lei 107/2001)
























1992- Parecer sobre o "Conselho Consultivo do IPPAR"







1994_ Parecer sobre um projecto de nova lei de bases do património cultural, emitido enquanto "Técnico Superior" da Direcção Regional de Évora do IPPAR. A nova Lei apenas seria aprovada 7 anos depois (Lei 107/2001)





quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Verão de 1993_ a "privatização" da Arqueologia Subaquática


Como referimos em anterior post (o verão quente da arqueologia portuguesa) a passagem de Santana Lopes pela Secretaria de Estado da Cultura (entre 1990 e 1994, XI e XII governos constitucionais, presididos por Cavaco Silva) ficou bem na memória dos arqueólogos, pelas piores razões. Mas os problemas não se resumiram às desastrosas reestruturações de serviços ou à escassez dos meios financeiros para os trabalhos de campo. Inesperadamente, e apesar de boa parte da lei de bases do património cultural (à época a Lei 13/85) carecer de regulamentação, o Governo começa a interessar-se pela "arqueologia subaquática": "Para além do gosto pessoal com que sempre acompanhei as questões relacionadas com esta área..." confessa Santana Lopes ao Expresso no final de Novembro, em artigo (claramente encomendado pelo lobby da liberalização da "caça ao tesouro") que anunciava para daí a poucas semanas, a apreciação em Conselho de Ministros de um decreto-lei "que abre à iniciativa privada, pela primeira vez, a exploração do património cultural subaquático português, considerado como um dos mais valiosos em todo o mundo" (o sublinhado é meu...). 



Apesar do poder do lobby interessado, cuja cara pública era assumida pelo advogado Rui Gomes da Silva, muito próximo de Santana Lopes, apenas em Junho de 1993 a proposta de Decreto-lei é aprovada em Conselho de Ministros. Pouco depois, Francisco Alves, na qualidade de arqueólogo em meio aquático e director do Museu Nacional de Arqueologia (e "pai" da Arqueologia Subaquática em Portugal) assina um importante artigo no Público (23 de Junho de 1993), alertando, com pleno conhecimento de causa, para os "abutres" que se prefilavam no horizonte à espera da nova lei...


A lei da "caça ao tesouro", como ficaria conhecida, acabou por ser publicada em Agosto (D.L. 289/93 de 21 de Agosto). Eu próprio, apesar de arqueólogo muito terra à terra , aproveitando o facto de colaborar regularmente no Suplemento Cultural do Diário de Notícias, acabei por reagir à nova Lei, em artigo publicado em 7 Outubro desse ano. (Nota: Francisco Alves ainda procurou arrastar-me para a arqueologia subaquática mas a minha relação com o "mar" nunca foi muito próxima... Apesar de inscrito num curso de mergulho organizado pelo MNA no início dos anos 80 em colaboração com o Centro Português de Actividades Subaquáticas, não fui além das aulas práticas na velha piscina do Instituto Superior Técnico).

Nota final: A revogação do D.L. 289/93, a par da suspensão das obras na Barragem do Côa, seria uma das primeiras medidas do 1º Governo de António Guterres, na sequência das eleições 1995. Em 1997, no contexto do novo Instituto Português de Arqueologia, era criado o Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática (CNANS), dirigido pelo próprio Francisco Alves. Mas como tem sido notícia frequente nos últimos tempos, todas essas estruturas acabaram por ser desmanteladas em 2007. Os espólios arqueológicos e os equipamentos, semi abandonados num armazém do MARL alugado a preço de ouro (!), aguardam há uma década destino incerto.


terça-feira, 12 de dezembro de 2017

1992_ O Verão quente da arqueologia portuguesa



Um quarto de século passou e, portanto, os factos que aqui se evocam são já praticamente do domínio da "História" com todas as inerências... E de facto, pese embora a circunstancia dos principais protagonistas, felizmente, ainda "andarem por aí", tanta coisa aconteceu depois, para o bem e para o mal. É pois quase com um sorriso à ingenuidade dos tempos que aqui evoco alguns documentos de então e que (percebemos mais tarde) prenunciavam a profunda crise que aconteceria três anos depois na sequencia das descobertas do Côa. Mas também sabemos que a realidade nunca é simples e linear e que nada pode ser considerado definitivamente adquirido. Com efeito, quase tudo aquilo porque lutavam os arqueólogos nesse Verão de 92 (o reconhecimento de uma carreira, um organismo próprio para gestão do património arqueológico, um enquadramento legal para a arqueologia preventiva, etc...) seria conquistado em 1996, graças à vitória na batalha mediática pelas "gravuras que não sabiam nadar". Para logo, menos de uma década depois, sob pretexto da crise, quase tudo acabar por lhes ser retirado.


1º acto_ 13 de Junho de 1992. Em artigo de opinião aparecido, assinado por um arqueólogo que também era "funcionário público", o SEC da época é criticado...


2º acto- 24 de Agosto de 1992. O SEC da altura não gosta da "opinião" e manda instaurar um processo disciplinar ao autor_ a imprensa reage






3º acto- Os arqueólogos respondem e organizam um "abaixo assinado", apoiado inclusive por vários dirigentes que, por sua vez, chegam também a ser ameaçados... Quer o "processo disciplinar" quer a reacção dos arqueólogos, têm eco na imprensa nacional (Público e DN) e regional (Jornal do Fundão).







A revista ALMADAN, editada  pelo Grupo de Arqueologia de Almada e que apareceria renovada nesse ano de 1992 (nº1 da II série) não deixa passar o caso em branco... 

4º acto (epílogo)- 27 de Outubro de 1992. Certamente já em fase de descompressão (o assunto chegara a ser sério, com advogados e tudo...), Luis Raposo, volta de novo à liça, numa espécie de "balanço". O processo disciplinar esfumar-se-ia mas as consequencias da desastrosa política patrimonial de Santana Lopes manter-se-iam inalteradas até 1995...



ANTECEDENTES

1. A crise do Verão de 1992, agudizara-se face à extinção do IPPC em Junho e à sua substituição por um novo organismo, o Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (DL 106-F/92). Ao contrário do que faria supôr o seu nome, aquele decreto consumava a total menorização da arqueologia, processo que se iniciara 2 anos antes com a extinção dos Serviços Regionais de Arqueologia, já sob o consulado de Santana Lopes em anterior remodelação do IPPC.
Na altura os arqueólogos dos Serviços Regionais, cerca de uma dezena distribuídos por Braga, Coimbra e Évora, reagiram colectivamente através de uma exposição presente ao SEC mas que, como era de esperar, não obteve qualquer resposta. Aqui se transcreve como memória histórica.




No Verão de 1991 (um ano antes da publicação do texto que provocaria a "ira" de Santana Lopes, já Luis Raposo viera a terreiro contra a política "arqueológica"da SEC. Estavam então em causa os atrasos nos pagamentos (relativos a 1990 e a indefinição total relativamente a 1991) dos já magros subsídios para o Plano Nacional de Trabalhos Arqueológico.


2. Reacção pessoal

Datada de 10 de Junho de 1992 (3 dias antes da publicação do artigo de Luis Raposo ("Elogios envenenados") conservo nos meus papéis uma exposição pessoal dirigida ao SEC (confesso que não recordo se a cheguei a enviar...). Embora o tom seja diverso, as questões em fundo são as mesmas e penso que não teremos coordenado ideias, até porque à época eu já estava estabelecido em Évora. Em todo o caso, através da sua leitura, entende-se melhor o título e a introdução do artigo do Luis Raposo. Santana Lopes, na sequencia da publicação do malfadado DL 106-F/92, em entrevista concedida ao Expresso, referira-se elogiosamente aos arqueólogos, "capazes de trabalharem com meios sempre muito reduzidos..."









segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Miróbriga, uma jóia esquecida

Roteiro das Ruínas de Miróbriga, editado em 1990 pelo Departamento de Arqueologia do IPPC (nº3 da coleção "Roteiros da Arqueologia Portuguesa")

Por várias e justificadas razões, o sítio romano de Miróbriga, conhecido e referido pela literatura académica desde o Século XVI (André de Resende), é um dos sítios arqueológicos de maior significado no Alentejo. Recentemente a Revista Mais Alentejo, numa espécie de "óscares alentejanos" atribuiu-lhe o prémio Mais Património 2017. hver aqui/ . A atribuição vale o que vale mas, pelo menos, teve o mérito de chamar a atenção para um sítio hoje, infelizmente, um pouco esquecido do público.

Por razões de inerencia das funções que fui exercendo na área da Arqueologia, ao longo da minha carreira, estive várias vezes ligado à gestão deste sítio, adquirido pelo Estado nos anos 60, por iniciativa de D. Fernando de Almeida (a quem se ficaram a dever outras aquisições que hoje seriam praticamente impossíveis..., como foi o caso das ruínas de Idanha-a-Velha, São Cucufate ou Torre de Palma, por exemplo). Essa minha relação com Miróbriga viria a ser particularmente efectiva no final da década de 80 início da década de 90, coincidindo com a minha comissão de serviço à frente do Serviço Regional de Arqueologia do Sul. O meu antecessor no cargo, Dr. Caetano Melo Beirão interessara-se muito particularmente por este sítio, para o estudo do qual conseguiria atrair o arqueólogo David Soren da Universidade do Missouri. Em colaboração com José Olívio Caeiro, à época assistente na Universidade de Évora e colaborador do Serviço Regional de Arqueologia, aquele arqueólogo americano desenvolveria várias campanhas de escavação em Miróbriga entre 1981 e 1985. Com a minha vinda para Évora e com a colaboração da minha colega Susana Correia, mais tarde apoiada também pela Filomena Barata, concluído o projecto americano, a prioridade seria dada às questões da valorização e musealização do sítio. Começámos por tentar resolver a questão da guardaria, tendo conseguido colocar dois vigilantes permanentes nas ruínas, numa das raras oportunidades de contratação ainda nos anos 80 (um deles, o Sr. Alexandre, o único que se ficaria por Miróbriga, para onde já entrara com quarenta anos, viria a reformar-se em 2013 após três décadas de serviço). 

Tendo sido responsável pela sua contratação como Director do Departamento de Arqueologia do IPPC (em 1983) desloquei-me a Miróbriga em 2013 (Novembro) ainda como Director dos Bens Culturais da DRCALEN, para me despedir do Sr. Alexandre que então se reformou por limite de idade.

Mas os progressos conseguidos nesta fase, passariam também pela recuperação da Capela de São Dâmaso (onde se instalou uma exposição para introdução à visita) e pela criação de uma pequena recepção nas antigas casas anexas à Capela. Tratava-se de instalações humildes mas que, à época, respondiam às necessidades mínimas dos visitantes. A par destes melhoramentos, editámos em 1990 um Roteiro das Ruínas de Miróbriga, no que viria a ser o volume 3 da colecção que eu próprio fundara ainda como Director do Departamento de Arqueologia do IPPC pode ver aqui


Capa  documento de apoio á exposição (Miróbriga no Mundo Romano)  instalada em 1990 na Capela de São Dâmaso e respectiva ficha técnica

Mas talvez a memória mais intensa que retenho de Miróbriga desses tempos, ainda que infelizmente sem qualquer registo fotográfico da mesma, seria um espectáculo nocturno organizado no Verão de 1990 nas próprias ruínas, em colaboração com os serviços da Câmara Municipal de Santiago do Cacém. Com uma logística algo complexa, face à falta de meios próprios nas ruínas, foi possível instalar um palco desmontável no "forum" frente ao templo reconstruído parcialmente pelo próprio D.Fernando e que veio a funcionar como cenário natural. O programa do evento baseava-se essencialmente em meios artísticos locais mas terminava com uma intervenção especial do grande guitarrista Carlos Paredes. Pelo seu carácter inédito (que eu soubesse nunca se tinha feito nada igual num sítio arqueológico português e muito menos em Miróbriga) não tínhamos a noção do impacto que esta iniciativa poderia ter em termos de atractividade do público. Devo confessar que nesse aspecto os resultados ultrapassariam todas as previsões, tendo a população de Santiago aderido em massa à iniciativa. Valeu a presença da GNR para ordenar o trânsito e manter um mínimo de organização no estacionamento, tendo tudo corrido pelo melhor e sem os impactos negativos que se chegaram a temer pela inusitada presença de tanta gente nas ruínas.






Texto de introdução (Exposição Miróbriga no Mundo Romano)



sábado, 25 de novembro de 2017


Memórias de um Sábado, há 50 anos(25 Novembro 1967- 25 Novembro 2017)

Foto do Eduardo Gageiro, o grande foto-repórter do Século XX português.

Há cinquenta anos atrás, o dia 25 de Novembro (de 1967), tal como hoje 25 de Novembro de 2017, também foi Sábado. Recordo-o bem por diferentes razões. Nessa altura, com quinze anos feitos, era aluno no seminário de Almada (localizado na Quinta de São Paulo, sobranceira ao “Olho de Boi” cacilhense e à Alcântara Lisboeta). A então "Ponte Salazar", que vira construir a partir dos miradouros de São Paulo, já tinha sido inaugurada mas a circulação de pessoas para Lisboa fazia-se ainda maioritariamente pelos velhos “cacilheiros”. No seminário de Almada respiravam-se já (ou ainda?) os ares do Concílio Vaticano II; o (então) Padre Fanhais visitava-nos amiúde com a sua guitarra e canções pouco ortodoxas e o (então) Padre José Videira Marques (o fundador e director do futuro Festival de Cinema da Figueira da Foz) passava e comentava regularmente para os alunos, filmes clássicos não censurados. Num ambiente em que era frequente as músicas do Adriano Correia de Oliveira ou do próprio Zeca Afonso, servirem de mote para a “meditação matinal”, tornou-se natural dar ordem de soltura ao fim de semana aos alunos que residissem na grande Lisboa. Essa razão explica a mais atribulada travessia do Tejo que tenho memória, na tarde do dia 25 de Novembro de 1967, um Sábado que amanhecera com uma chuva intensa e contínua que, desgraçadamente, se prolongaria por muitas horas. Talvez mais por essa razão e menos pelas fotografias do Eduardo Gageiro, só consigo recordar esse Sábado a "preto e branco"... Chegado ao Terreiro do Paço após uma travessia que mais parecera de mar alto, tal era a ondulação no estuário, havia que alcançar o Rossio, o que fazia normalmente a pé. Aquele dia não foi excepção e, mal protegido por um chapéu de chuva que tinha já os dias contados, lá cheguei, "molhado que nem um pinto" ao Rossio. Tinha então duas opções de viagem até à Amadora. Por comboio da linha de Sintra ou por Metro até Sete Rios com ligação ao autocarro da empresa Eduardo Jorge, para Queluz de Baixo. Sei que optei pelo autocarro, uma vez que este parava no Bairro de Janeiro, mais próximo da casa dos meus pais, o que me pouparia umas boas centenas de metros à chuva, se o meu destino fosse a estação da Amadora. A alternativa não se revelou especialmente vantajosa, já que a chuva, em vez de abrandar, parecia ser cada vez mais intensa. De tal modo que, nas poucas dezenas de metros que separavam a paragem do autocarro da casa dos meus pais, apanhei a mais impressionante "molha" de que tenho memória em toda a vida, tal a intensidade da chuva no final da tarde desse fatídico dia. Com a agravante do chapéu, já então completamente inútil, ter sido arrastado pelo vento. Das horas seguintes, no conforto do lar e apesar da chuva que teimava em não parar, já pouco ou nada recordo. As lembranças só começam de novo a ganhar alguma consistência, a partir da manhã do dia seguinte, quando passada finalmente a tempestade, a vizinhança começara a sair à rua para as suas rotinas de domingo. Na Venteira onde residia, uma zona elevada da Amadora, a situação poderia ser considerada normal, de bonança após a tempestade... E como nada "constava" em termos de Emissora Nacional e ainda menos de RTP, dir-se-ia que o pior estaria passado. Nessa manhã de domingo, porém, comecei a perceber que algo de anormal acontecera. Tinha há algum tempo estritas instruções paternais para visitar um alfaiate conhecido do meu pai (que, graças a mútuas trocas de favores, praticava preços compatíveis com as sempre apertadas finanças familiares) para as provas de um novo fato (calças e casaco), indumentária obrigatória para qualquer estudante à época e o que tinha já começava " a fugir à cheia". A banca do alfaiate localizava-se no Bairro do Bosque, então uma nova urbanização, não muito longe da  antiga "Porcalhota", a zona original da Amadora, ainda citada como tal por Eça de Queirós.... Localizada próximo da Falagueira (essa sim uma zona baixa e onde se cruzam várias linhas de água, terras sem dono e portanto propícias à habitação clandestina) as ruas do Bairro do Bosque mostravam bem os efeitos da força torrencial das águas. O ambiente geral era caótico, com ruas e passeios quase desaparecidos no meio das pedras e lamas arrastadas pela força das águas...Mas, sem que se notasse ali qualquer movimento especial por parte de bombeiros ou outras entidades de proteção civil. As populações estavam nas ruas e, por iniciativa própria, sem qualquer resquício de organização, limpavam e procuravam pôr um mínimo de ordem no caos que sucedera à chuva torrencial, sem que, pelo menos pelas bandas da Amadora que eu frequentava, se falasse em cheias e muito menos, em tragédia. Mais tarde veio a saber-se que nos bairros de barracas da Falagueira a situação fora trágica.

Ainda nessa mesma tarde de domingo regressei a Almada, sem qualquer dificuldade ou problema, pois aparentemente, "nada acontecera"... Até que, por fim, timidamente e a conta gotas, as notícias começaram a surgir. Primeiro falava-se de algumas dezenas de mortos e desaparecidos, mas rapidamente os números começaram a revelar-se excepcionalmente trágicos. Mas o que  mais me marcaria, o contacto directo com os efeitos dantescos dessa noite torrencial, estava ainda por acontecer. Não consigo já reconstituir os detalhes. De quem partiu a iniciativa, como nos deslocámos, em que estrutura fomos enquadrados. Nem sequer recordo se avançámos logo na segunda-feira para o terreno, ou alguns dias mais tarde. Revejo-me apenas numa zona baixa de Loures, próximo da saída para Torres Vedras, com muitos outros colegas estudantes, de escolas ou localidades diferentes, nas limpezas de um conjunto de casas antigas, de piso térreo, que a água cobrira quase por inteiro. Os detalhes sobre os inevitáveis mortos e desaparecidos que também ali haviam acontecido, desvaneceram-se no meio século que passou. Mas retenho ainda a imagem de um frigorifico que ao abrir revelara nas suas entranhas uma pasta castanha que então me parecia "chocolate", e que não era mais do que o omnipresente lodo que cobria todas as partes baixas do vale do Tejo entre Vila Franca de Xira e Sacavém e que tantas vidas (pelos vistos ainda não se conhece o número exacto) ceifara nessa noite fatídica de há meio século.



sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Por que (património) dobram os sinos de finados...


O tema da "TOUREGA" tem sido repetidas vezes referido neste blog. Umas vezes como exemplo da dramática situação do valioso património rural alentejano mas noutros casos, apontando também algumas perspectivas de maior esperança quanto ao futuro. Contraditoriamente, algum deste património, em especial o de matriz religioso-cristã, por razões mais que compreensíveis, apenas é recordado pelas populações por altura do dia de finados...

No passado ano, culminando um processo de intervenção no importante retábulo pictórico da Igreja de Nª Sª da Tourega, conseguiu-se ir um pouco mais além da tradicional celebração da morte. Antecipando o dia de Finados para o de Todos-os-Santos, a Junta de Freguesia da Tourega e Guadalupe, proporcionou as condições para um concorrido concerto polifónico do Eborae Musica na velha Igreja da Tourega, acção que, para além do ritual religioso, procurava destacar as potencialidades culturais e turísticas daquele espaço.

No corrente ano, não houve coragem ou capacidade para tanto, e apenas a recordação da morte e daqueles que já nos deixaram, teve lugar nestes sítios que parecem eles próprios condenados a um breve e precoce desaparecimento. Foi assim na Tourega, foi assim em São Matias...duas antigas sedes paroquiais que hoje são meras guardiãs dos cemitérios que as acompanham.




A missa de finados (2/11/2017) dita pelo Cónego Manuel Ferreira (Pároco de São Francisco, Évora, e de Guadalupe), na pequena mas interessante ermida de São Matias (cruzamento para Guadalupe). Fechada durante o resto do ano e actualmente despojada do seu património móvel, após um assalto ocorrido há poucos anos. Com o vizinho cemitério e a escola primária abandonada, este núcleo arquitectónico na sua singeleza e simbolismo, conserva um carisma alentejano único, anunciando a chegada a Évora, em magnífico enquadramento paisagístico.

A missa de finados (2/11/2017) dita pelo P. Fernando Marques, pároco de São Mamede (Évora) e de Valverde, na Igreja de Nª Sª da Tourega. As imagens foram trazidas expressamente para o acto, pois por razões de segurança e conservação, estão guardadas em Valverde. Esta Igreja reúne todas as condições para integrar um pequeno núcleo de interpretação da história rural alentejana, desde a pré-história (Anta capela de São Brissos) passando pela época romana (villa romana da Tourega) e culminando no processo de missionação da Contra-reforma (de que esta Igreja é um bom exemplo).

O concerto do Coral Eborae Musica, no dia de todos os santos, em 1 de Novembro de 2016. Um vislumbre das novas actividades, para além das rituais, que podem salvar estes espaços da eminente ruína.