Memórias de um Sábado, há 50 anos(25 Novembro 1967- 25 Novembro 2017)
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Foto do Eduardo Gageiro, o grande foto-repórter do Século XX português. |
Há cinquenta anos atrás, o dia 25 de Novembro (de 1967), tal como hoje 25 de Novembro de 2017, também foi Sábado. Recordo-o bem por diferentes razões. Nessa altura, com quinze anos feitos, era aluno no seminário de Almada (localizado na Quinta de São Paulo, sobranceira ao “Olho de
Boi” cacilhense e à Alcântara Lisboeta). A então "Ponte Salazar", que vira
construir a partir dos miradouros de São Paulo, já tinha sido inaugurada mas a circulação de pessoas para Lisboa fazia-se ainda maioritariamente pelos velhos “cacilheiros”. No
seminário de Almada respiravam-se já (ou ainda?) os ares do Concílio Vaticano II; o (então)
Padre Fanhais visitava-nos amiúde com a sua guitarra e canções pouco ortodoxas
e o (então) Padre José Videira Marques (o fundador e director do futuro Festival de
Cinema da Figueira da Foz) passava e comentava regularmente para os alunos, filmes clássicos
não censurados. Num ambiente em que era frequente as músicas do Adriano Correia
de Oliveira ou do próprio Zeca Afonso, servirem de mote para a “meditação
matinal”, tornou-se natural dar ordem de soltura ao fim de semana aos alunos que
residissem na grande Lisboa. Essa razão explica a mais atribulada travessia do
Tejo que tenho memória, na tarde do dia 25 de Novembro de 1967, um Sábado que amanhecera
com uma chuva intensa e contínua que, desgraçadamente, se prolongaria por muitas horas. Talvez
mais por essa razão e menos pelas fotografias do Eduardo Gageiro, só consigo recordar esse Sábado a "preto e branco"... Chegado ao Terreiro do Paço após uma travessia que mais parecera de mar alto, tal era a ondulação no estuário, havia que alcançar o Rossio, o que fazia normalmente a pé. Aquele dia não foi excepção e, mal protegido por um chapéu de chuva que tinha já os dias contados, lá cheguei, "molhado que nem um pinto" ao Rossio. Tinha então duas opções de viagem até à Amadora. Por comboio da linha de Sintra ou por Metro até Sete Rios com ligação ao autocarro da empresa Eduardo Jorge, para Queluz de Baixo. Sei que optei pelo autocarro, uma vez que este parava no Bairro de Janeiro, mais próximo da casa dos meus pais, o que me pouparia umas boas centenas de metros à chuva, se o meu destino fosse a estação da Amadora. A alternativa não se revelou especialmente vantajosa, já que a chuva, em vez de abrandar, parecia ser cada vez mais intensa. De tal modo que, nas poucas dezenas de metros que separavam a paragem do autocarro da casa dos meus pais, apanhei a mais impressionante "molha" de que tenho memória em toda a vida, tal a intensidade da chuva no final da tarde desse fatídico dia. Com a agravante do chapéu, já então completamente inútil, ter sido arrastado pelo vento. Das horas seguintes, no conforto do lar e apesar da chuva que teimava em não parar, já pouco ou nada recordo. As lembranças só começam de novo a ganhar alguma consistência, a partir da manhã do dia seguinte, quando passada finalmente a tempestade, a vizinhança começara a sair à rua para as suas rotinas de domingo. Na Venteira onde residia, uma zona elevada da Amadora, a situação poderia ser considerada normal, de bonança após a tempestade... E como nada "constava" em termos de Emissora Nacional e ainda menos de RTP, dir-se-ia que o pior estaria passado. Nessa manhã de domingo, porém, comecei a perceber que algo de anormal acontecera. Tinha há algum tempo estritas instruções paternais para visitar um alfaiate conhecido do meu pai (que, graças a mútuas trocas de favores, praticava preços compatíveis com as sempre apertadas finanças familiares) para as provas de um novo fato (calças e casaco), indumentária obrigatória para qualquer estudante à época e o que tinha já começava " a fugir à cheia". A banca do alfaiate localizava-se no Bairro do Bosque, então uma nova urbanização, não muito longe da antiga "Porcalhota", a zona original da Amadora, ainda citada como tal por Eça de Queirós.... Localizada próximo da Falagueira (essa sim uma zona baixa e onde se cruzam várias linhas de água, terras sem dono e portanto propícias à habitação clandestina) as ruas do Bairro do Bosque mostravam bem os efeitos da força torrencial das águas. O ambiente geral era caótico, com ruas e passeios quase desaparecidos no meio das pedras e lamas arrastadas pela força das águas...Mas, sem que se notasse ali qualquer movimento especial por parte de bombeiros ou outras entidades de proteção civil. As populações estavam nas ruas e, por iniciativa própria, sem qualquer resquício de organização, limpavam e procuravam pôr um mínimo de ordem no caos que sucedera à chuva torrencial, sem que, pelo menos pelas bandas da Amadora que eu frequentava, se falasse em cheias e muito menos, em tragédia. Mais tarde veio a saber-se que nos bairros de barracas da Falagueira a situação fora trágica.
Ainda nessa mesma tarde de domingo regressei a Almada, sem qualquer dificuldade ou problema, pois aparentemente, "nada acontecera"... Até que, por fim, timidamente e a conta gotas, as notícias começaram a surgir. Primeiro falava-se de algumas dezenas de mortos e desaparecidos, mas rapidamente os números começaram a revelar-se excepcionalmente trágicos. Mas o que mais me marcaria, o contacto directo com os efeitos dantescos dessa noite torrencial, estava ainda por acontecer. Não consigo já reconstituir os detalhes. De quem partiu a iniciativa, como nos deslocámos, em que estrutura fomos enquadrados. Nem sequer recordo se avançámos logo na segunda-feira para o terreno, ou alguns dias mais tarde. Revejo-me apenas numa zona baixa de Loures, próximo da saída para Torres Vedras, com muitos outros colegas estudantes, de escolas ou localidades diferentes, nas limpezas de um conjunto de casas antigas, de piso térreo, que a água cobrira quase por inteiro. Os detalhes sobre os inevitáveis mortos e desaparecidos que também ali haviam acontecido, desvaneceram-se no meio século que passou. Mas retenho ainda a imagem de um frigorifico que ao abrir revelara nas suas entranhas uma pasta castanha que então me parecia "chocolate", e que não era mais do que o omnipresente lodo que cobria todas as partes baixas do vale do Tejo entre Vila Franca de Xira e Sacavém e que tantas vidas (pelos vistos ainda não se conhece o número exacto) ceifara nessa noite fatídica de há meio século.