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quarta-feira, 17 de janeiro de 2018


MIRÓBRIGA E OS AMERICANOS



Há poucas semanas, nas sequência da atribuição do prémio "Mais Património 2017" pela revista Mais Alentejo, registei neste blog, sob o título "Miróbriga, uma jóia esquecida", alguns dados e documentos sobre a gestão e salvaguarda deste sítio romano nos anos 80 e 90 do século passado. ( ver aqui essa entrada ). Por coincidência, ou talvez não, o Gonçalo Pereira, editor da versão portuguesa da "National Geographic", acaba de me enviar um curioso recorte do antigo semanário de Joaquim Letria, "Tal&Qual" (10 de Julho de 1982), com uma reportagem sobre as escavações americanas que à época decorriam em Miróbriga. Estava então em curso a segunda campanha das escavações "luso-americanas", no contexto de um projecto de cooperação que se prolongaria até 1985. A reportagem exagera um pouco o âmbito quer temporal quer físico do projecto mas, sem dúvida, este representou um importante marco no processo de revitalização deste importante sítio arqueológico romano nas duas últimas décadas do século passado, como recorda a arqueóloga Filomena Barata no seu blog "As cidades da Lusitânia" ( que pode ser consultado aqui ) :

"Em 1981, no seguimento de contactos com arqueólogos americanos, lançou-se um projecto de cooperação internacional, «The Mirobriga Project», dirigido por arqueólogos das Universidades de Missouri-Colombia e Arizona e representantes portugueses. No decurso desse projecto, que se previa quadrianual mas que se prolongou até 1985, foram estudadas em pormenor diversas zonas: «acrópole»/forum, termas, zona habitacional e hipódromo, que contribuíram para um melhor conhecimento global deste Sítio Arqueológico. Colaboraram nesse projecto José Olívio Caeiro, como responsável pela parte portuguesa, e Carlos Tavares da Silva.

Na primeira campanha, a equipa de Missouri concentrou-se fundamentalmente na zona do forum e do templo, na zona das termas e no hipódromo. José Olívio Caeiro encarregou-se, por sua vez, da área limítrofe à capela de S. Brás.
Na segunda e terceira campanhas, os trabalhos continuaram na área do Castelo Velho, tendo-se confirmado a ocupação pré-romana de Miróbriga, nas termas e na zona habitacional. Em 1982 foi feita a primeira planta geral das termas, tendo-se dado início, em 1983, ao levantamento topográfico do sítio, que foi completado em 1984.

Neste último ano, a campanha incidiu ainda no circo, onde foram feitas novas sondagens, e nas termas. São publicados de seguida os resultados, bem como estudos de alguns frescos de Miróbriga (BIERS et alii, 1984: 35-53), tendo sido consolidadas as pinturas murais.

Os resultados preliminares das escavações efectuadas pela equipa luso-americana foram sendo editados anualmente, na revista Muse, e aí se publicaram, em 1981, 1982 e 1983, os únicos estudos parcelares das sondagens feitas no forum, uma vez que os BAR não lhes dedicam senão uma pequena nota (BIERS et alii, 1988: 15).

A equipa luso-americana perfilha a opinião de que Miróbriga constituiria um aglomerado urbano importante, habitado desde, pelo menos, a Idade do Bronze, sendo as termas e o circo partes integrantes de um perímetro urbano ainda não definido em toda a sua extensão.
O forum da povoação - com as construções que, logicamente, lhe ficariam anexas - teria uma sucessão de ocupações que inclui, para além dos níveis de épocas anteriores, duas fases de construção da época romana, datando a mais antiga do século I. O templo centralizado dataria de meados do século I d. C., tal como a maioria das construções que se desenvolvem a Sul do mesmo - tabernae.
Em 1988 é publicado em Oxford Mirobriga: Investigations at an Iron Age and Roman Site in Southern Portugal by the University of Missouri-Columbia, 1981-1986, onde são sintetizados os trabalhos desenvolvidos e publicados os materiais arqueológicos aí exumados. Como já foi referido, as sondagens do forum não foram, até hoje, pormenorizadamente dadas a conhecer, devido ao facto de entretanto a equipa se ter desmembrado

O convite ao arqueólogo David Soren da Universidade de Missouri, Columbia, fora feito em 1980  no decorrer de uma viagem que Caetano Mello Beirão  (1923-1991), já designado director do novo Serviço Regional de Arqueologia do Sul, fizera aos Estados Unidos em representação da Secretaria de Estado da Cultura. Penso que também estará relacionada com essa viagem de Beirão, a posterior vinda de Stephanie Malloney, outra arqueóloga americana que a partir de 1983 e praticamente até hoje, se dedicaria ao estudo de outro importante sítio romano do Alentejo: a Villa de Torre de Palma (Monforte). De algum modo, estes projectos representavam, ao tempo, uma inédita abertura da arqueologia nacional, até então muito ligada a França e à Alemanha, à investigação norte-americana. Tal como é referido na reportagem, David Soren, enquanto especialista em Arqueologia Clássica, mantinha outros projectos na Europa, nomeadamente em Chipre, onde escavava as ruínas da cidade de Kourion. Recordo que esse projecto cipriota, em que chegaram a participar alguns jovens arqueólogos portugueses (como a Catarina Viegas, colaboradora nas escavações luso-americanas de Miróbriga e hoje professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ou a Inês Vaz Pinto, actual responsável pelas Ruínas de Tróia, Grândola) teve à época ampla repercussão mediática, nomeadamente nas páginas da National Geographic internacional, devido ao reconhecimento dos efeitos do epicentro de um célebre terramoto que em 21 de Julho de 365 d.C. destruiu aquela cidade. Uma outra curiosidade relacionada com esta cooperação arqueológica Luso-Americana: de acordo com a biografia de David Soren  que é possível consultar na Wikipédia, este arqueólogo terá sido também responsável pela reorganização da sala "Miróbriga" do Museu Municipal de Santiago do Cacém, projecto em que teve a cooperação de Henry Lange, um designer americano de origem alemã, com importante obra ligada ao cinema de ficção, nomeadamente 2001, Odisseia do Espaço  (1968) ou os 3 primeiros filmes da saga Star Wars (1977-1983)!

Pela parte portuguesa, participaram neste projecto, os arqueólogos do Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS) Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares, nomes ligados à arqueologia do litoral alentejano desde o início dos anos 70 enquanto colaboradores do "Gabinete da Área de Sines". O Serviço Regional de Arqueologia do Sul estava por sua vez representado por José Olívio Caeiro (1949-2009). José Caeiro, como era conhecido entre os seus pares, era na altura assistente na jovem Universidade de Évora, onde assegurava com Jorge Pinho Monteiro (1950-1982) as cadeiras de História Antiga e Arqueologia. Eram ambos colaboradores  muito próximos de Caetano Beirão, tendo apoiado a instalação do Serviço Regional de Arqueologia em Évora, em espaços da própria Universidade (Palácio Vimioso). O desaparecimento precoce de Pinho Monteiro, porém, afunilaria as opções de Beirão (enquanto não foi possível colocar os primeiros arqueólogos no quadro do serviço) estando na origem do excessivo envolvimento de Caeiro nos projectos então em curso. Conforme pude ter conhecimento directo, dadas as minhas funções no Departamento de Arqueologia do IPPC, as relações entre Caetano Beirão e José Caeiro, acabariam por azedar, com acusações recíprocas de incumprimentos vários, nomeadamente no que respeita à não publicação de resultados de muitos dos trabalhos arqueológicos, incluindo a parte nacional de Miróbriga. José Olívio Caeiro afastar-se-ia progressivamente da actividade arqueológica e até da própria universidade (onde não concluira o Doutoramento sobre o povoamento proto-histórico na bacia do Guadiana) regressando ao ensino secundário, onde iniciara a sua carreira profissional como tantos outros arqueólogos.

A última vez que nos encontrámos foi em Évora, nas instalações do INATEL (Palácio Barrocal), por ocasião de uma sua exposição de pintura, actividade a que finalmente se dedicara na sua "Villa Caerius", a casa que à maneira romana construíra nos arredores da Azaruja. Só muito recentemente, após diligências de um amigo comum (o Prof. José d'Encarnação), viemos entretanto a saber que morrera em 2009.


A reportagem do "Tal & Qual" de 10 de Julho de 1982. A foto de José Olívio Caeiro, em grande plano.

Painel sobre o projecto luso-americano dos anos 80, .(antiga exposição no Centro Interpretativo de Miróbriga)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Miróbriga, uma jóia esquecida

Roteiro das Ruínas de Miróbriga, editado em 1990 pelo Departamento de Arqueologia do IPPC (nº3 da coleção "Roteiros da Arqueologia Portuguesa")

Por várias e justificadas razões, o sítio romano de Miróbriga, conhecido e referido pela literatura académica desde o Século XVI (André de Resende), é um dos sítios arqueológicos de maior significado no Alentejo. Recentemente a Revista Mais Alentejo, numa espécie de "óscares alentejanos" atribuiu-lhe o prémio Mais Património 2017. hver aqui/ . A atribuição vale o que vale mas, pelo menos, teve o mérito de chamar a atenção para um sítio hoje, infelizmente, um pouco esquecido do público.

Por razões de inerencia das funções que fui exercendo na área da Arqueologia, ao longo da minha carreira, estive várias vezes ligado à gestão deste sítio, adquirido pelo Estado nos anos 60, por iniciativa de D. Fernando de Almeida (a quem se ficaram a dever outras aquisições que hoje seriam praticamente impossíveis..., como foi o caso das ruínas de Idanha-a-Velha, São Cucufate ou Torre de Palma, por exemplo). Essa minha relação com Miróbriga viria a ser particularmente efectiva no final da década de 80 início da década de 90, coincidindo com a minha comissão de serviço à frente do Serviço Regional de Arqueologia do Sul. O meu antecessor no cargo, Dr. Caetano Melo Beirão interessara-se muito particularmente por este sítio, para o estudo do qual conseguiria atrair o arqueólogo David Soren da Universidade do Missouri. Em colaboração com José Olívio Caeiro, à época assistente na Universidade de Évora e colaborador do Serviço Regional de Arqueologia, aquele arqueólogo americano desenvolveria várias campanhas de escavação em Miróbriga entre 1981 e 1985. Com a minha vinda para Évora e com a colaboração da minha colega Susana Correia, mais tarde apoiada também pela Filomena Barata, concluído o projecto americano, a prioridade seria dada às questões da valorização e musealização do sítio. Começámos por tentar resolver a questão da guardaria, tendo conseguido colocar dois vigilantes permanentes nas ruínas, numa das raras oportunidades de contratação ainda nos anos 80 (um deles, o Sr. Alexandre, o único que se ficaria por Miróbriga, para onde já entrara com quarenta anos, viria a reformar-se em 2013 após três décadas de serviço). 

Tendo sido responsável pela sua contratação como Director do Departamento de Arqueologia do IPPC (em 1983) desloquei-me a Miróbriga em 2013 (Novembro) ainda como Director dos Bens Culturais da DRCALEN, para me despedir do Sr. Alexandre que então se reformou por limite de idade.

Mas os progressos conseguidos nesta fase, passariam também pela recuperação da Capela de São Dâmaso (onde se instalou uma exposição para introdução à visita) e pela criação de uma pequena recepção nas antigas casas anexas à Capela. Tratava-se de instalações humildes mas que, à época, respondiam às necessidades mínimas dos visitantes. A par destes melhoramentos, editámos em 1990 um Roteiro das Ruínas de Miróbriga, no que viria a ser o volume 3 da colecção que eu próprio fundara ainda como Director do Departamento de Arqueologia do IPPC pode ver aqui


Capa  documento de apoio á exposição (Miróbriga no Mundo Romano)  instalada em 1990 na Capela de São Dâmaso e respectiva ficha técnica

Mas talvez a memória mais intensa que retenho de Miróbriga desses tempos, ainda que infelizmente sem qualquer registo fotográfico da mesma, seria um espectáculo nocturno organizado no Verão de 1990 nas próprias ruínas, em colaboração com os serviços da Câmara Municipal de Santiago do Cacém. Com uma logística algo complexa, face à falta de meios próprios nas ruínas, foi possível instalar um palco desmontável no "forum" frente ao templo reconstruído parcialmente pelo próprio D.Fernando e que veio a funcionar como cenário natural. O programa do evento baseava-se essencialmente em meios artísticos locais mas terminava com uma intervenção especial do grande guitarrista Carlos Paredes. Pelo seu carácter inédito (que eu soubesse nunca se tinha feito nada igual num sítio arqueológico português e muito menos em Miróbriga) não tínhamos a noção do impacto que esta iniciativa poderia ter em termos de atractividade do público. Devo confessar que nesse aspecto os resultados ultrapassariam todas as previsões, tendo a população de Santiago aderido em massa à iniciativa. Valeu a presença da GNR para ordenar o trânsito e manter um mínimo de organização no estacionamento, tendo tudo corrido pelo melhor e sem os impactos negativos que se chegaram a temer pela inusitada presença de tanta gente nas ruínas.






Texto de introdução (Exposição Miróbriga no Mundo Romano)