O tesouro da Lameira Larga (Penamacor) e a villa romana de Torre de Palma (Monforte). Histórias de uma ligação improvável
A patera do Tesouro da Lameira Larga (foto do Museu Nacional de Arqueologia) |
Há dias, por acaso, tropecei num texto da minha colega Filomena Barata, suponho que apenas disponível na internet ( http://ascidadesdalusitania.blogspot.pt/2015/07/o-tesouro-romano-de-lameira-larga.html ), no qual a arqueóloga retoma um seu anterior trabalho sobre o conjunto de objectos conhecido como Tesouro de Penamacor ou Tesouro da Lameira Larga. Trata-se, como é sabido, do espólio de uma sepultura descoberta durante a surriba para uma vinha, em 10 de Abril de 1907, no lugar da Lameira Larga, próximo da Aldeia do Bispo, Penamacor. Recolhidos pelo proprietário do terreno (João da Costa Martins), os objectos acabariam na posse de Francisco Costa Falcão, que aproveitando uma ida a banhos à Figueira da Foz, os mostrou a Santos Rocha. É este conhecido arqueólogo que, logo em 1909, os publica na revista "O Arqueólogo Português". Apesar de se tratar de um conjunto de 10 objectos (prata, vidro e cerâmica), a peça que ressalta do mesmo, a ponto de se esquecer tudo o mais, é uma "patera em prata", de finíssimo trabalho de ourivesaria, representando uma conhecida cena mitológica: Perseu matando a Medusa. Mas sobre o interesse e significado desta peça, verdadeiro "tesouro nacional", actualmente exposto no MNA, remetemos para o texto acima citado. Hoje interessa-nos recordar a forma pouco usual como sete décadas após a sua descoberta, aquele conjunto (a que faltavam já duas peças, uma lucerna e um disco de prata com inscrição) chegou à posse do Estado, assunto que é mal conhecido, mesmo nos meios arqueológicos. Eu próprio apenas me aperceberia da situação de forma algo recambolesca.
Com efeito, a "patera de Perseu" dada a sua qualidade artística e técnica e que cientificamente era conhecida desde a publicação de Santos Rocha, foi selecionada desde o primeiro momento, para integrar a exposição permanente da nova Sala do Tesouro instalada no MNA na segunda metade de 1980, um dos trabalhos do "caderno de encargos" assumido por Francisco Alves ao aceitar o convite de Vasco Pulido Valente para Director do Museu e do Departamento de Arqueologia do IPPC (ver http://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/10/da-paternidade-da-arqueologia.html ). Embora integrando a equipa do Francisco, não acompanhei directamente o processo de seleção e acondicionamento do extraordinário conjunto de ourivesaria antiga (pré e proto-histórica ou clássica) que viria a integrar a exposição que ainda hoje, 36 anos depois, constitui uma das principais atrações do Museu. A essa tarefa dedicou-se em especial o meu colega Rui Parreira, há muitos anos na Direcção Regional de Cultura do Algarve. Desconheço portanto, se a "patera da Lameira Grande" ou da "Medusa" estava já no Museu ou noutro local. O assunto só me interessaria um pouco mais tarde (algures em 1983?), quando o IPPC já se encontrava (mal) instalado no Palácio da Ajuda. Eventualmente por necessidade de um qualquer estudo de contextualização alguém se interessou pelo paradeiro das restantes peças da sepultura da Lameira Larga e que ninguém conseguia localizar no Museu. Havia notícia que o conjunto havia sido adquirido pelo Ministério da Educação Nacional pouco antes do 25 de Abril de 1974, pelo que não foi difícil encontrar nos arquivos da Junta Nacional da Educação, a respectiva documentação. Da consulta da mesma, porém, não resultava o esclarecimento sobre o respectivo paradeiro se bem que, em última análise, o Museu seria o seu destino, pois a proposta da sua aquisição partira do então Director, Fernando d'Almeida... Em contrapartida, a consulta daquela documentação (de que aqui publicamos alguns documentos pelo seu interesse de registo) trazia um dado que, pelo menos para nós que acabáramos de integrar a equipa do Departamento de Arqueologia, era então desconhecido. A família "Falcão" que tinha na sua posse, há várias gerações, o "tesouro da Lameira Grande", era também proprietária da Torre de Palma, Herdade localizada em Monforte e onde nos anos 40, Manuel Heleno (sucessor de Leite de Vasconcelos na direcção do MNA) descobrira a villa romana de Torre de Palma, ali escavando e pondo à vista os mais importantes mosaicos até então encontrados em Portugal. Ao contrário do que por vezes acontecia (mesmo num tempo em que o Estado era objectivamente bem mais forte) os proprietários não ofereceram resistência às escavações de Manuel Heleno nem à saída para Lisboa, uma vez destacados por técnicos italianos, dos melhores painéis de mosaicos, como o das musas ou o dos cavalos. Pelo menos é o que se depreende do publico louvor e agradecimento que o Ministro da Educação Nacional, certamente por sugestão de Heleno, fez publicar no Diário da República em Maio de 1949.
Gravura original do artigo de Santos Rocha de 1909, À direita o disco de prata que já estava "perdido" quando o Estado adquiriu o conjunto em 1973 |
Com efeito, a "patera de Perseu" dada a sua qualidade artística e técnica e que cientificamente era conhecida desde a publicação de Santos Rocha, foi selecionada desde o primeiro momento, para integrar a exposição permanente da nova Sala do Tesouro instalada no MNA na segunda metade de 1980, um dos trabalhos do "caderno de encargos" assumido por Francisco Alves ao aceitar o convite de Vasco Pulido Valente para Director do Museu e do Departamento de Arqueologia do IPPC (ver http://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/10/da-paternidade-da-arqueologia.html ). Embora integrando a equipa do Francisco, não acompanhei directamente o processo de seleção e acondicionamento do extraordinário conjunto de ourivesaria antiga (pré e proto-histórica ou clássica) que viria a integrar a exposição que ainda hoje, 36 anos depois, constitui uma das principais atrações do Museu. A essa tarefa dedicou-se em especial o meu colega Rui Parreira, há muitos anos na Direcção Regional de Cultura do Algarve. Desconheço portanto, se a "patera da Lameira Grande" ou da "Medusa" estava já no Museu ou noutro local. O assunto só me interessaria um pouco mais tarde (algures em 1983?), quando o IPPC já se encontrava (mal) instalado no Palácio da Ajuda. Eventualmente por necessidade de um qualquer estudo de contextualização alguém se interessou pelo paradeiro das restantes peças da sepultura da Lameira Larga e que ninguém conseguia localizar no Museu. Havia notícia que o conjunto havia sido adquirido pelo Ministério da Educação Nacional pouco antes do 25 de Abril de 1974, pelo que não foi difícil encontrar nos arquivos da Junta Nacional da Educação, a respectiva documentação. Da consulta da mesma, porém, não resultava o esclarecimento sobre o respectivo paradeiro se bem que, em última análise, o Museu seria o seu destino, pois a proposta da sua aquisição partira do então Director, Fernando d'Almeida... Em contrapartida, a consulta daquela documentação (de que aqui publicamos alguns documentos pelo seu interesse de registo) trazia um dado que, pelo menos para nós que acabáramos de integrar a equipa do Departamento de Arqueologia, era então desconhecido. A família "Falcão" que tinha na sua posse, há várias gerações, o "tesouro da Lameira Grande", era também proprietária da Torre de Palma, Herdade localizada em Monforte e onde nos anos 40, Manuel Heleno (sucessor de Leite de Vasconcelos na direcção do MNA) descobrira a villa romana de Torre de Palma, ali escavando e pondo à vista os mais importantes mosaicos até então encontrados em Portugal. Ao contrário do que por vezes acontecia (mesmo num tempo em que o Estado era objectivamente bem mais forte) os proprietários não ofereceram resistência às escavações de Manuel Heleno nem à saída para Lisboa, uma vez destacados por técnicos italianos, dos melhores painéis de mosaicos, como o das musas ou o dos cavalos. Pelo menos é o que se depreende do publico louvor e agradecimento que o Ministro da Educação Nacional, certamente por sugestão de Heleno, fez publicar no Diário da República em Maio de 1949.
Ora, Fernando Almeida, ao propor a aquisição do "Tesouro" por 1350 contos (cerda de 50 000 dólares) uma pequena fortuna à época (valor pretendido pelos proprietários baseados em supostas ou reais ofertas "estrangeiras"), sabia que não seria fácil defender tão elevado preço junto do Ministro da Educação. Avança por isso com uma inteligente cartada que resolvia dois problemas de uma só penada (e que hoje estariam a marinar no limbo da crise financeira, como acontece com outros importantes sítios arqueológicos, incluindo alguns "monumentos nacionais", ainda na posse de proprietários, sem glória nem proveito para ninguém...). Propõe que na transação e sem aumentar o valor pedido pelo "tesouro", sejam também incluídos os quatro hectares da "Torre de Palma", ocupados com as ruínas romanas. A proposta, submetida através da Junta Nacional de Educação, conforme documento anexo, é aceite e homologada pelo Ministro em 17 de Fevereiro de 1973, consumando-se no mesmo acto a aquisição da Villa Romana da Torre de Palma (hoje afecta à Direção Regional de Cultura do Alentejo ainda que com guardaria assegurada pela Câmara Municipal de Monforte) e a compra do "Tesouro da Lameira Magra".
Uma década depois, no entanto, continuava por esclarecer o paradeiro das peças arqueológicas de menor valor daquele conjunto. Até que, em conversa ocasional com o sr. Vítor Pereira, durante décadas o eficiente e comunicativo "Tesoureiro" do IPPC (o algarvio a quem os arqueólogos de todo o país tanto devem nos anos 80 e 90, pela sua preocupação em disponibilizar as "verbas" para os trabalhos de campo, tão breve quanto a burocracia lhe permitia...) este me falou numa misteriosa "caixa" que se encontrava há anos no "cofre" da Tesouraria, um daqueles velhos e pesados cofres típicos das repartições públicas. Só que o cofre, perdida a sua utilidade na tesouraria, estava agora no "bar provisório" das instalações recentemente ocupadas pelo IPPC na Ajuda. Rapidamente esclareceríamos o assunto. No interior do cofre mas em compartimento próprio, encontrámos a tal caixa que ali ficara com alguns dos objectos que, por algum motivo, não tinham acompanhado a "patera" quando esta foi levada para o Museu e que, na inevitável confusão por que passaram os serviços públicos nos anos imediatos ao 25 de Abril, acabaram por ficar esquecidos ainda que seguros, no velho cofre.
A título de curiosidade e completando este relato memorialista, diga-se que na época em que finalmente congregávamos as peças do tesouro adquirido à Família Falcão, eram também retomados trabalhos arqueológicos na villa romana de Torre de Palma. Os restantes terrenos da Herdade estavam então ocupados por uma Cooperativa e o Monte com a sua magnífica "Torre" (hoje hotel de luxo) serviria durante alguns anos de base e apoio às novas escavações. Estas eram promovidas pelo Dr. Caetano Melo Beirão, director do Serviço Regional de Arqueologia do Sul que conseguira atrair para este local remoto, a atenção da americana Stephanie Maloney (da Universidade de Louisville, Kentucky), arqueóloga que literalmente se "apaixonaria" por este sítio e a cujo estudo e salvaguarda se dedicaria , praticamente até aos dias de hoje. Aqui publicamos também alguns documentos que assinalam o já distante início dessa frutuosa cooperação. Assinam a "certidão" emitida pela Comissão Nacional Provisória de Arqueologia, de 27 de Junho de 1983, o José d'Encarnação, como relator, eu próprio que dirigira os trabalhos da sessão e a Dra Natália Guedes, a primeira Presidente do IPPC. Homológa o Ministro da Cultura, à época António Coimbra Martins, se não me engano (IX Governo Constitucional).
Muito grata pela documentação disponibilizada neste trabalho que desconhecia. Quanto ao artigo, mais recentemente actualizado e revisto, foi publicado em 1995 na «Revista de Arqueologia», nº 169, Madrid.
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