O "alaúde falso" e o regresso das "charamelas" à Sé de Évora
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"Charamelas" ecoando na Catedral de Évora (2/10/2016), trezentos anos depois... |
Como vem sendo habitual nos últimos anos, o último fim de semana foi inteiramente dedicado à Música da Escola (Barroca) da Sé de Évora, um dos tesouros escondidos desta cidade que, graças a esta iniciativa do Eborae Musica que já vai na sua XIX edição, vai saindo um pouco mais da sombra. Pena é que não se encontrem fórmulas mais regulares de mostrar ao grande público esta arte que, sobretudo quando recordada no seu ambiente arquitectónico original, nos proporciona uma experiência estético-patrimonial, verdadeiramente exuberante. O que muita gente desconhece é que esta música de cariz essencialmente litúrgico não era apenas "polifónica". Para além da possibilidade do acompanhamento dos cantores pelo órgão, a fórmula que por razões práticas mais perdurou, as intervenções musicais polifónicas poderiam também ser acompanhada por outros instrumentos, sobretudo em dias festivos, como tem sido a ser destacado ultimamente por vários musicólogos e como Paulo Estudante, da Universidade de Aveiro, tão bem nos descreveu em conferencia realizada nas Jornadas do ano passado. Neste contexto foi muito interessante, nestas XIX Jornadas a realização de um workshop sobre o uso das "charamelas", precisamente um dos instrumentos mais usados no acompanhamento das cerimónias litúrgicas, pelo menos até ao Século XVII. Foi orientador do referido workshop, o Arquitecto (pintor e músico) João Mateus, irmão do meu antigo colega de Faculdade, o José Mateus. Um dos membros mais antigos do GEPP (Grupo de Estudos do Paleolítico Português) também ele, entre muitas outras especialidades e actividades, um apaixonado pela Música Antiga, o Zé Mateus integrou a primeira equipa de arqueólogos convidada pelo Francisco Alves em 1980 para a renovação do Museu Nacional de Arqueologia e implementação do Departamento de Arqueologia do IPPC. O Zé Mateus, graças aos seus interesses pela Palinologia (em que se Doutoraria mais tarde), impulsionou a criação dos primeiros laboratórios de Paleoecologia na área da arqueologia que viriam a estar na origem do CIPA (Centro de Investigação de Paleo Ambientes) ao tempo do IPA, por sua vez antepassado do actual LARC da DGPC (Laboratório de Arqueo Ciências). Ora, já no início dos anos 80 o Zé Mateus tinha especial interesse pela música e tentava cativar os colegas do Museu e do Departamento de Arqueologia (que então funcionava também nos Jerónimos) para a prática musical. Chegou a organizar um grupo coral e lembro que ainda aconteceram alguns ensaios no final da jornada de trabalho, ainda que sem grande sucesso e continuidade (por culpa da dureza de ouvido dos colegas...). O Zé Mateus também se interessava já pela música instrumental antiga e a esse propósito a presença do irmão e das suas "charamelas" em Évora fez-me recordar uma história deliciosa. O Zé Mateus pretendia adquirir um "alaúde", mas o preço de um instrumento de qualidade era proibitivo, face aos elevados impostos alfandegários (ainda estávamos fora da CEE). Para contornar essa dificuldade imaginou um estratagema revelador de toda a sua vasta gama de interesses e recursos. Resolveu construir um alaúde (eventualmente com o apoio técnico do pai, Tomás Mateus, já falecido, conhecido pintor e engenheiro responsável no LNEC pelo respectivo laboratório de madeiras). Uma vez construído o "falso alaúde", terá saído com ele para Inglaterra, levando consigo o instrumento que declarou na alfandega.
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O Zé Mateus e o seu alaúde (verdadeiro) em imagem pirateada de "Terra Scenica" |
Uma vez adquirido em Inglaterra o "verdadeiro alaúde", desfeche-se do "falso" (terá sido oferecido a uma companhia amadora de teatro, confessou-me o irmão quando recordávamos esta história incrível...) e regressou a Portugal com o "verdadeiro", livre de direitos... O Zé Mateus, já se aposentou e hoje, par além da velha paixão pela música, dedica-se com um dos filhos através de uma empresa que fundou (Terra Scenica) essencialmente à concepção e produção de jogos de computador de cariz histórico, como não podia deixar de ser...
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O João Mateus ao centro e os participantes no workshop de "charamelas", fazendo o aquecimento na sacristia. De referir que o João Mateus fabrica os seus próprios instrumentos. |
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Ensaio já na Sé de Évora. O João está à direita. |
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