O MAAT (o novo Museu ? da EDP) e a responsabilidade social.
Um debate no meu "mural"
O tal MAAT, em foto "copiada" da NET (Jornal de Negócios ?) pois ainda não tive oportunidade de apreciar o dito cujo... |
Eis quando, no dia seguinte, sou alertado por um comentário do Luís, publicado no meu próprio mural (julgo que é assim que se diz já que sou um mero utilizador, de "fim de semana", das redes sociais... e não controlo muito estas coisas, nem me interessa para ser franco) para um debate que estaria a decorrer no meu Facebook, ou seja nas minhas próprias "costas"...
Dizia assim o Luís Raposo nesse comentário de 20 de Outubro publicado no meu mural:
A propósito de "responsabilidade social"... um debate em curso no Facebook do meu amigo António Carlos Silva
De modo que resolvi investigar o meu próprio Facebook e lá encontrei o interessante debate entre o próprio Luis Raposo e o António Carlos Valera, a que se juntara depois o Miguel Lago. Ainda que a discussão tivesse sido motivada pela aplicabilidade ou não, do conceito de "responsabilidade social" ao exemplo concreto em presença (a tal obra faraónica da EDP, uma empresa que antes de mais se deveria preocupar com a responsabilidade social para com centenas de seus directos "colaboradores", meros "prestadores de serviços" a quem não reconhece qualquer vínculo laboral, prática que é uma praga do nosso tempo), a discussão rapidamente se alargou ao entendimento de cada um dos interlocutores, do papel (social) do Estado e das Empresas, com naturais mas significativas diferenças de opinião. Não apenas de base ideológica, mas reflectindo também muito da experiência de vida dos intervenientes. O Luís Raposo fez toda a sua longa e brilhante carreira arqueológico-museológica na "função pública". O Miguel e o Valera, são pioneiros da chamada "arqueologia de contrato", actuando no âmbito de uma das primeiras empresas do ramo, hoje líder de mercado.
Ora perante tal abuso do meu mural (o Valera acabou por educadamente apresentar as suas "desculpas"...) resolvi vingar-me destes velhos amigos (já o éramos antes de nascer o Marc Zuckerberg) e copiar todos os textos para este meu "blog". E se aqui quiserem continuar o debate, façam o favor...
Começo, naturalmente por recordar o comentário original do Luís, acompanhado pelo texto do José Vítor Malheiros (em fraca resolução, pois não tive acesso ao original), seguindo-se a transcrição (copy/paste) dos sucessivos comentários:, pela ordem em que foram publicados.
Luis Raposo
José Vítor Malheiros
diz hoje no Jornal Publico grande parte do que deve ser dito a propósito do
MAAT. Só lhe falta acrescentar duas coisas: primeiro, a triste figura que as
principais figuras do Estado fizeram ao avalizarem a "coisa" de forma
provinciana, bacoca e irresponsável, ou até afrontosa, do ponto de vista
político e cidadão; segundo, a circunstância de a dita "coisa" não ser sequer um museu, mas tão-só o
"lugar de eventos"... Talvez bonito quando visto do Tejo (embora feio
quando visto da retaguarda), mas feito sobre os escombros de património
pré-existente e não irrelevante, no que se configura ser o exemplo típico de
como continuam a existir "donos disto tudo". Em suma: assim haja
dinheiro, existem palhaços.
António Carlos de Valera Pois eu diria
que o artigo ao tocar em pontos importantes, mete tudo no mesmo saco. Pensar
que a responsabilidade social é um conceito que meramente serve para
subterfúgios e para mascarar comportamentos é partir do princípio, tão querido
ao bonapartismo, de que o cidadão e as instituições que cria são, no seu estado
natural, uns malandros. Avaliar um conceito destes a partir de umas quantas
práticas seria o mesmo que avaliar o conceito de Democracia a partir de umas
outras tantas menos adequadas. Ou o conceito de serviço público. Quantas vezes
me questiono sobre a responsabilidade social, nos termos deste texto, de quem
nos governa ou nos "serve" em tantas instituições públicas. A
responsabilidade social é um conceito útil, não deve ser confundido ou restrito
às obrigações inerentes, nem subtraído ao voluntarismo (garante de
responsabilidade, porque sobre responsabilidade obrigatória estamos falados) e
em nada ganhamos em tentar fazer parecer que não é mais que uma espécie de
caridadezinha, para que tudo o resto fique na mesma. Dito isto, penso que a
forma como a EDP exerce a sua Responsabilidade Social é questionável e criticável.
Mas isso é uma coisa. A noção e importância de Responsabilidade Social é outra.
Raposo Luís Numa sociedade democrática, a responsabilidade social entendida como benefício do bem comum em domínios que exprimam valores também comuns não susceptíveis de tutela privada, deve em primeira linha competir ao Estado e às instituições que o materializam, nomeadamente ao Governo. Em segunda linha às organizações da (mal) chamada sociedade civil, sejam de índole religiosa, humanitária, profissional ou "apenas" cívica. Nunca a entidades que têm por objectivo último a criação de riqueza a distribuir pelos seus detentores e cuja função social se esgota na prestação dos serviços ou produtos que se propõem garantir e cuja contratação com os seus consumidores ou utentes se deveria pautar por estritas cláusulas de garantia das melhores condições de qualidade-preço. Qualquer entendimento empresarial de responsabilidade social fora deste quadro contratual, explícito ou implícito, constitui um logro e mesmo uma ofensa à inteligência dos cidadãos.
António Carlos de Valera Não podia
estar mais em desacordo. Em sociedade democrática "a responsabilidade
social entendida como benefício do bem comum em domínios que exprimam valores
também comuns não susceptíveis de tutela privada" não pode ser suprimida a
ninguém. Sob perigo de vivermos sobre uma ditadura de iluminados da causa
pública, que por ser pública, é de todos. Eu recuso liminarmente que o meu
trabalho numa instituição privada não esteja a resultar em benefício público
muito para além dos benefícios que traz à instituição privada, E já agora
"entidades que têm por objectivo último a criação de riqueza a distribuir
pelos seus detentores" é uma visão limitada, para não dizer perversa, de
quem trabalha no contexto das sociedades modernas (outra vez um problema de
meter tudo no mesmo saco). E quando ao "pautar por estritas cláusulas de
garantia das melhores condições de qualidade-preço", aí termos que
considerar que muitos serviços públicos rivalizam com as piores práticas dos
privados.
António Carlos de Valera O problema
continua, pois, nesta eterna dicotomia público/privado que a sociedade
portuguesa ainda não mostrou capacidade de superar, com responsabilidades para
todos os lados.
Raposo Luís Infelizmente,
ou não, ainda ninguém conseguiu inventar forma melhor de definir o bem comum do
que a comum, universal e livre, por isso democrática, expressão do mesmo, por
via eleitoral, traduzida, sob a forma de cascata de consequências, em sistemas
governativos, completados ou confrontados estes pelo comum e também livre
movimento associativo não mobilizado pela, aliás legítima, criação e
apropriação privada de riqueza. As empresas são, foram e sempre serão
"sociedades de responsabilidade limitada", limitada ao contrato que estabelecem
com os utentes ou consumidores dos seus serviços e produtos. Qualquer outro
entendimento viola este contrato.
António Carlos de Valera Visão limitada
do que significa empresa, que significa agir, devendo a valorização da acção
focar-se na acção e não em pré-juízos. A responsabilidade social só é limitada
a quem, por conveniência ou não, se deixa limitar. E eu recuso que me limitem
as minhas motivações em nome de princípios que sigo mais de perto que muitos
dos que os evocam. Não aceito, portanto, estas generalizações, que categorizam
e, assim, procuram limitar e controlar, sob a capa de uma adequada (tocada por
uma mágica fada) interpretação do que é o bem comum (como se isso não fosse uma
permanente negociação mais ou menos conflituosa). Resumido, e como dizia
Bachelard, não existe o simples, só o simplificado.
Miguel Lago Entidades
públicas e privadas e homens e mulheres que actuam nesses domínios vivem no
mesmo contexto social. Todos partilham responsabilidades e obrigações que,
quanto a mim, permitem o desenvolvimento tendencialmente harmonioso das
sociedades contemporâneas de índole democrática. Sem iniciativa privada
viveríamos em sociedades menos livres, totalmente dirigidas e com menos debate
e escrutínio. Sem estruturação pública, viveríamos num mundo provavelmente mais
injusto e caótico. É do equilibrio entre estes dois pólos do todo social que muito
provavelmente nascem as maiores virtualidades do mundo em que vivemos.
Assim, assumindo que cada um desempenha o seu papel, não me parece correcto nem vantajoso olhar a realidade numa perspectiva maniqueísta em que público se sobrepõe ao privado e em que entidades e pessoas do domínio público estão num patamar superior em relação a entidades e pessoas do domínio privado.
A sociedade em que vivemos depende em muito da iniciativa privada, que lhe traz criatividade, concorrência ou competição. Tudo assente em regras que, numa óptica de controlo público, harmonizam eventuais desvios. O domínio público tem os seus mecanismos de controlo interno a que se acresce o papel da chamada opinião pública e o escrutínio democrático exercido pelos cidadãos através do seu voto em eleições.
Resumindo, não existe uma hierarquização, antes prevalecendo uma complementaridade de papéis neste sistema tão complexo.
Quanto ao MAAT, que ainda não visitei, enquadra-se numa estratégia de afirmação de uma empresa e de pessoas que a governam através da designada Resposabilidade Social, que não deve ser confundida com o estrito cumprimento das suas obrigações legais.
Com toda a sinceridade, a grande diferença na tomada de decisão entre a construção deste equipamento e o seu vizinho, o novo Museu dos Coches, não é grande. O que é preocupante será o facto de o segundo, sendo público, parecer privado no que ao processo de decisão diz respeito.
P.S. - porque parece existir algum equívoco ao nível do conceito de Responsabilidade Social, aqui fica alguma informação adicional:https://pt.wikipedia.org/wiki/Responsabilidade_social
Assim, assumindo que cada um desempenha o seu papel, não me parece correcto nem vantajoso olhar a realidade numa perspectiva maniqueísta em que público se sobrepõe ao privado e em que entidades e pessoas do domínio público estão num patamar superior em relação a entidades e pessoas do domínio privado.
A sociedade em que vivemos depende em muito da iniciativa privada, que lhe traz criatividade, concorrência ou competição. Tudo assente em regras que, numa óptica de controlo público, harmonizam eventuais desvios. O domínio público tem os seus mecanismos de controlo interno a que se acresce o papel da chamada opinião pública e o escrutínio democrático exercido pelos cidadãos através do seu voto em eleições.
Resumindo, não existe uma hierarquização, antes prevalecendo uma complementaridade de papéis neste sistema tão complexo.
Quanto ao MAAT, que ainda não visitei, enquadra-se numa estratégia de afirmação de uma empresa e de pessoas que a governam através da designada Resposabilidade Social, que não deve ser confundida com o estrito cumprimento das suas obrigações legais.
Com toda a sinceridade, a grande diferença na tomada de decisão entre a construção deste equipamento e o seu vizinho, o novo Museu dos Coches, não é grande. O que é preocupante será o facto de o segundo, sendo público, parecer privado no que ao processo de decisão diz respeito.
P.S. - porque parece existir algum equívoco ao nível do conceito de Responsabilidade Social, aqui fica alguma informação adicional:https://pt.wikipedia.org/wiki/Responsabilidade_social
Raposo
Luís Concordo em praticamente tudo. Duas pequenas excepções
apenas: não colocaria em último lugar o voto dos cidadãos. Ele precede aquilo
que chamas de "domínio público". Este não existiria sem aquele, pelo
menos em democracia. Segundo: existe uma enorme diferença entre o novo MNC e o
MAAT: o primeiro é referendável pelos cidadãos e de facto constitui tema de
intenso debate ; o segundo, sendo privado, está imune ao escrutínio político da
polis. E sendo promovido por quem é está protegido por espessa teia de
cumplicidades e interdependências.
Quanto a "responsabilidade social corporativa", já disse o que penso em mais um post para que tomo a liberdade de te reenviar.
Quanto a "responsabilidade social corporativa", já disse o que penso em mais um post para que tomo a liberdade de te reenviar.
António Carlos de Valera Pois eu
gostaria de manifestar algum incómodo com a compartimentação de papeis que está
expressa no teu comentário Miguel. A ideia de uma sociedade em que privados e
públicos têm os seus papeis, bem definidos e complementares, traduz uma imagem
mecânica da sociedade, organizada em peças, cada uma com a sua função. De
compartimentos que dependem de uma extraordinária capacidade de entendimento
(óleo) para superar os problemas gerados pela compartimentação. A sociedade é
muito mais orgânica que isso, fluída e resistente (felizmente) às
impermeabilidades que resultam da distribuição de papeis. Problema do espírito
moderno, que introduziu esta dinâmica de especialização que nos procura calar
sempre que nos consideram fora da nossa especialidade. Parece que cada vez mais
temos dificuldade em lidar com escalas e zooms, refugiando-nos na caixa que
escolhemos ou escolheram para nós. É por isso que a responsabilidade social é
tão importante. Porque nos ajuda a libertar de constrangimentos que nos impomos
ou nos tentam impor, A responsabilidade social é também uma responsabilidade
individual, para nós próprios, e uma forma de combater versões de liberdades
tuteladas, de papeis distribuídos e condicionados. Quando uma empresa é um projecto
social é muito mais que simplesmente um projecto económico (embora necessite
que o segundo tenha sucesso para o primeiro também o ter). E isto que não pode
ser limitado de qualquer acção cívica, de também interpretar o que é o bem
comum, o que a construção de uma empresa também é. O problema, repito, são as
categorizações simplistas que metem tudo num mesmo saco. (António Carlos,
desculpa o abuso do teu espaço, ainda por cima quando não "podias estar
mais de acordo" com a notícia. Mas a troca de ideias até foi (está)
interessante e sobretudo esclarecedora. Um abraço).
Raposo
Luís Realmente é quase um abuso estar aqui a encher o Facebook
do António Carlos, embora eu não tenha dúvida de que ele aprecia este
bate-papo. Porque nenhum de vocês se lhe refere, permito-me assinalar o post
que pus no meu Facebook (e partilhei aqui) "ainda e ainda sobre
responsabilidade social..."
Quanto ao teu conceito de empresa, idílico ou ingénuo, convenhamos, nada a opor. Servirá para consolar algumas consciências e entreter alguns "pequenos espíritos" (no sentido da expressão em francês). Também em clubes de futebol se podem fazer jogos florais. Ou em casinos se pode promover a cultura. Não vem daí mal ao mundo. Mas nada disso ilude em mim qual o objectivo principal e a verdadeira razão de existir de clubes de futebol e casinos. E muito menos me faz equiparar essas "responsabilidades sociais" de ambos com as políticas públicas de promoção da literatura e da cultura exigidas pelos cidadãos, através do seu voto e dos seus movimentos associativos.
Quanto ao teu conceito de empresa, idílico ou ingénuo, convenhamos, nada a opor. Servirá para consolar algumas consciências e entreter alguns "pequenos espíritos" (no sentido da expressão em francês). Também em clubes de futebol se podem fazer jogos florais. Ou em casinos se pode promover a cultura. Não vem daí mal ao mundo. Mas nada disso ilude em mim qual o objectivo principal e a verdadeira razão de existir de clubes de futebol e casinos. E muito menos me faz equiparar essas "responsabilidades sociais" de ambos com as políticas públicas de promoção da literatura e da cultura exigidas pelos cidadãos, através do seu voto e dos seus movimentos associativos.
António Carlos
de Valera Pois, é que clubes de futebol também são associações de
cidadãos e recebem muitos privilégios e dinheiro dos organismos públicos, o que
é natural, pois que estes organismos têm as responsabilidades da "promoção
da cultura exigida pelos cidadãos". No mínimo diria que a tua ingenuidade
relativamente às "políticas públicas" rivaliza com a minha
ingenuidade relativamente ao conceito de empresa.
Raposo Luís Pode ser... (e
eu a pensar que os clubes de futebol eram empresas... SADs, parece; mas por
outro lado tens razão: eu nunca disse que as associações de cidadãos, ONGs, se
devem substituir ao Estado na acção que a este compete e para a qual é o único
detentor da legitimidade que o universo dos cidadãos lhe confere, pelo voto;
devem pressionar, podem até desempenhar algumas funções daquele, delegadas ou
usurpadas pela legítima acção libertadora que devem exercer, mas não se lhe
podem, nem devem, substituir).
António Carlos de Valera Apenas mais um
comentário para terminar, que isto já vai logo e já está tudo dito no essencial
de cada visão: a ideia de que o Estado é "o único detentor da
legitimidade" por exemplo da "promoção da cultura" causa-me
arrepios. Parece que a sociedade de onde emerge e
pulsa a cultura não tem legitimidades. Ai da cultura, sempre fonte de
contrapoder e liberdade, que fique dependente de promoções sectorais, sejam
elas públicas ou privadas. A cultura é mesmo uma dessas coisas que deve ser
ingénua e pairar sobre todos os que a procuram capturar e conformar. De boas
intenções está o Inferno cheio e segundo ouvi dizer ali não há distinções entre
públicas e privadas.
Raposo Luís Concordo. Se
dei a entender o contrário foi inadvertidamente. E agora também eu vou fechar a
loja. Abraço.
Miguel Lago Ainda antes de
fechar, gostava de dizer que as compartimentações também me perturbam.
Infelizmente, contra natura, tenho que as ir tolerando. Mas existe algo que não
suporto: a pretensão de muitos relativamente a uma superioridade moral que
advém do universo dito público. Volto a dizer, todos somos indivíduos, todos
temos os mesmos defeitos e as mesmas virtudes. E se me movo no dito âmbito
privado, nunca deixo de assumir, na minha acção de responsável de uma empresa,
uma postura de serviço público. O que para alguns pode ser idílico, para mim é
naturalmente necessário. Quanto ao chamado lucro, não tenhamos dúvidas:
públicos e privados carecem dele para prosseguir a sua marcha. Todos. O público
vive de impostos (aquilo que é imposto a alguém, ou seja a todos os que vivem
na sociedade); o privado vive da capacidade de gerar riqueza (de que paga
impostos) daí resultando uma renovada capacidade de investimento em novas
ideias, capacidade de promover emprego e estruturar uma estabilidade de cariz
social.
Como diz o António Valera, lutemos contra as fronteiras bem definidas da especialização (eu diria das especificidades formalizadas).
Já depois de divulgado este "post" e de cerca de uma "centena" de leituras, o Luis Raposo registou no meu Facebook este texto final que, por algum motivo, me tinha escapado. Aqui fica para que o debate fique completamente documentado:
Ainda e ainda sobre “responsabilidade social” das empresas diz um colega que admiro (profissional e intelectualmente) que nesta coisa de “responsabilidade social” o que nos divide, e vai sempre dividindo, é uma velha, “arqueológica”, divisão entre “público” e “privado”, que eu continuo a defender e os mais arejados já ultrapassaram. Não concordo. A distinção é antes entre sociedade moderna, pós Revolução Francesa, e sociedade arcaica, do Antigo Regime. Neste último, de facto, muitas das necessidades do bem comum eram garantidas por “empresários”, fossem eles da oligarquia terratenente ou da burguesia comercial e pré-industrial. Prestavam tais serviços por temor a Deus, uns, por amor pelo próximo, outros, e a maioria porque simplesmente precisavam de mão-de-obra alimentada qb, saudável qb e, se possível, feliz qb (“pão e jogos”…). As sociedades modernas instituíram essa coisa horrenda do cidadão, representado pelo Estado. O que ficou desde aí para as empresas? Pois, fazerem aquilo que utentes e consumidores lhes justificam que façam: produzir bens e serviços aos melhores preços e com a melhor qualidade. Em mercado concorrencial, posso até admitir que faça parte da equação do sucesso empresarial despender somas, mais ou menos avultadas, em “responsabilidade social”, como em publicidade, mesmo com risco de encarecimento dos produtos ou serviços oferecidos. O “mercado” se encarregará de verificar se tal é sustentável a longo prazo. Em domínios de monopólio entendo que tal prática é danosa do contrato, formal ou informal, estabelecido com consumidores e utentes, os quais não podem optar pela concorrência, porventura prestadora de bens e serviços mais baratos, porque não onerados por essa dita “responsabilidade social”.
Mas isto são questões menores. A questão fundamental é filosófica e política. Não me encontro disponível para alienar a minha quota parte cidadã, traduzida em voto de quatro em quatro anos e em acção cívica todos os dias, outorgando-a à "clarividêndia" de alguns apenas, não eleitos nem mandatados por ninguém para o efeito, sejam eles empresários ou não. Dito de outra forma: A mim pouco me importam as motivações profundas que levam cada empresário concreto a praticar aquilo que chama de “responsabilidade social”. Em países como o nosso diria que tal deverá ser na ordem dos 80% por questões de prestígio de marca, devidamente publicitado, dos 15% por razões de prestígio pessoal, devidamente publicitado, e só muito residualmente, na ordem dos 5%, em resultado de verdadeiro cometimento cívico. Admito que noutros países, por exemplo na Europa Nórdica, estes valores variem bastante, sendo muito maiores, próximo dos 50%, as motivações puramente cívicas, em parte de raiz religiosa. Mas, repito, isto pouco me importa. Se um empresário quer fazer o bem, substituir-se aos hediondos e ineficazes serviços públicos (que o são, efectivamente, muitas vezes), usando para o efeito receitas geradas pela actividade da empresa, então que o faça apoiando o movimento associativo relevante, as chamadas ONGs. E já agora, se não fosse pedir em demasia, que o fizesse com a despegada discrição que recomenda a Bíblia, em texto atribuído a Mateus: “não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita.”
Fora deste quadro a chamada “responsabilidade social” das empresas é apenas um logro (como aquele que nos diz que o “marketing” não é uma forma de melhor nos impingir produtos, mas de nos fazer tomar consciência das nossas necessidades, mesmo que subconscientes). Ou então é muito pior: é a defesa insidiosa do regresso ao Antigo Regime, anterior ao Estado democrático. Cada empresa com os seus protegidos; e todos estes na fila das migalhas. Abaixo o Estado e o Governo. Abaixo os serviços públicos.
Como diz o António Valera, lutemos contra as fronteiras bem definidas da especialização (eu diria das especificidades formalizadas).
Já depois de divulgado este "post" e de cerca de uma "centena" de leituras, o Luis Raposo registou no meu Facebook este texto final que, por algum motivo, me tinha escapado. Aqui fica para que o debate fique completamente documentado:
Ainda e ainda sobre “responsabilidade social” das empresas diz um colega que admiro (profissional e intelectualmente) que nesta coisa de “responsabilidade social” o que nos divide, e vai sempre dividindo, é uma velha, “arqueológica”, divisão entre “público” e “privado”, que eu continuo a defender e os mais arejados já ultrapassaram. Não concordo. A distinção é antes entre sociedade moderna, pós Revolução Francesa, e sociedade arcaica, do Antigo Regime. Neste último, de facto, muitas das necessidades do bem comum eram garantidas por “empresários”, fossem eles da oligarquia terratenente ou da burguesia comercial e pré-industrial. Prestavam tais serviços por temor a Deus, uns, por amor pelo próximo, outros, e a maioria porque simplesmente precisavam de mão-de-obra alimentada qb, saudável qb e, se possível, feliz qb (“pão e jogos”…). As sociedades modernas instituíram essa coisa horrenda do cidadão, representado pelo Estado. O que ficou desde aí para as empresas? Pois, fazerem aquilo que utentes e consumidores lhes justificam que façam: produzir bens e serviços aos melhores preços e com a melhor qualidade. Em mercado concorrencial, posso até admitir que faça parte da equação do sucesso empresarial despender somas, mais ou menos avultadas, em “responsabilidade social”, como em publicidade, mesmo com risco de encarecimento dos produtos ou serviços oferecidos. O “mercado” se encarregará de verificar se tal é sustentável a longo prazo. Em domínios de monopólio entendo que tal prática é danosa do contrato, formal ou informal, estabelecido com consumidores e utentes, os quais não podem optar pela concorrência, porventura prestadora de bens e serviços mais baratos, porque não onerados por essa dita “responsabilidade social”.
Mas isto são questões menores. A questão fundamental é filosófica e política. Não me encontro disponível para alienar a minha quota parte cidadã, traduzida em voto de quatro em quatro anos e em acção cívica todos os dias, outorgando-a à "clarividêndia" de alguns apenas, não eleitos nem mandatados por ninguém para o efeito, sejam eles empresários ou não. Dito de outra forma: A mim pouco me importam as motivações profundas que levam cada empresário concreto a praticar aquilo que chama de “responsabilidade social”. Em países como o nosso diria que tal deverá ser na ordem dos 80% por questões de prestígio de marca, devidamente publicitado, dos 15% por razões de prestígio pessoal, devidamente publicitado, e só muito residualmente, na ordem dos 5%, em resultado de verdadeiro cometimento cívico. Admito que noutros países, por exemplo na Europa Nórdica, estes valores variem bastante, sendo muito maiores, próximo dos 50%, as motivações puramente cívicas, em parte de raiz religiosa. Mas, repito, isto pouco me importa. Se um empresário quer fazer o bem, substituir-se aos hediondos e ineficazes serviços públicos (que o são, efectivamente, muitas vezes), usando para o efeito receitas geradas pela actividade da empresa, então que o faça apoiando o movimento associativo relevante, as chamadas ONGs. E já agora, se não fosse pedir em demasia, que o fizesse com a despegada discrição que recomenda a Bíblia, em texto atribuído a Mateus: “não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita.”
Fora deste quadro a chamada “responsabilidade social” das empresas é apenas um logro (como aquele que nos diz que o “marketing” não é uma forma de melhor nos impingir produtos, mas de nos fazer tomar consciência das nossas necessidades, mesmo que subconscientes). Ou então é muito pior: é a defesa insidiosa do regresso ao Antigo Regime, anterior ao Estado democrático. Cada empresa com os seus protegidos; e todos estes na fila das migalhas. Abaixo o Estado e o Governo. Abaixo os serviços públicos.
Vi esta troca de comentários... e julgo que será (como outros casos) um assunto não consensual. São sempre muito interessantes as publicações de Luís Raposo (recente amigo facebookiano), sempre muito atento a estas coisas.
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