Regresso ao Senhor da Boa Morte
As sepulturas escavadas na rocha do Senhor da Boa Morte |
Em passagem recente por Vila Franca de Xira, a caminho de
Santarém mas com algum tempo de sobra (o que cada vez parece mais raro) vislumbrei
no alto da colina sobranceira, a enigmática cúpula branca da Igreja do Senhor
da Boa Morte. Memórias com cerca de três décadas foram suficientemente fortes
para obrigarem ao desvio em direção a Povos, uma histórica aldeia ribeirinha,
encalhada desde os anos 60 do século XX, pela construção da auto-estrada e hoje
praticamente esmagada pelos bairros que, mesmo em condições topográficas
adversas, por ali foram crescendo nas últimas décadas.
Lembrei então as
aventuras arqueológicas por estas bandas do antigo Departamento de Arqueologia
do IPPC, quando o meu colega Rui Parreira, no início dos anos 80, com a sua
proverbial capacidade operacional, veio a Povos (já então escondida e esquecida por causa da A1) dar conta do aparecimento de
restos de ânforas e ossadas humanas numa vala para instalação de um poste de
eletricidade junto a uma antiga escola primária republicana. Penso que já nessa
altura, em que de arqueologia preventiva não se falava, que a notícia terá
chegado a Lisboa (a sede do Departamento era então no próprio Museu Nacional de
Arqueologia), por via da Clara Camacho, então às voltas com a instalação de um
Museu de Arqueologia em Vila Franca de Xira. (Para quem não saiba, a Clara
Camacho viria bastante mais tarde a ser a grande impulsionadora da Rede Portuguesa de Museus, estrutura que
coordenou entre 2000 e 2005).
Dando-se conta que os achados de Povos estavam
relacionados com uma antiga igreja que existira no local e que, num raro acto
de anticlericalismo levado às últimas consequências em Portugal, os
republicanos de Povos haviam demolido para no seu lugar construir a escola, o
Rui Parreira acabaria por realizar aí várias sondagens (entre 1984 e 1986), confirmando
a utilização do local como cemitério cristão que, por sua vez se sobrepunha a restos de uma ocupação romana, que está hoje caracterizada como de uma possível
villa.
Decorreu certamente dessa intervenção, o nosso relacionamento com o Santuário
vizinho do Alto do Senhor da Boa Morte, onde havia referencias a sepulturas
medievais escavadas na rocha e que acabaria por ser devidamente registado no
primeiro volume (Lisboa e Arredores) dos Roteiros da Arqueologia Portuguesa que
o Departamento de Arqueologia editou em 1986. Ainda que a velha aldeia de Povos
esteja hoje praticamente irreconhecível, à medida que subo à colina para revisitar o local, a paisagem
vai-se tornando familiar e acabo por recuar no tempo três décadas ao contemplar,
frente à Igreja, o conjunto rochoso onde se abrem as antigas sepulturas.
Infelizmente nenhuma informação enquadra estas invulgares estruturas que acabam
por passar despercebidas ou não ter qualquer significado para os visitantes ocasionais. E afinal já aqui foi
investido bastante trabalho e estudo, certamente com investimento de recursos públicos, como a consulta à base de dados do ENDOVÉLICO vem
rapidamente demonstrar.
A ficha sobre o Senhor da Boa Morte, publicada em 1986 nos Roteiros da Arqueologia Portuguesa, v.1 |
Entre 1991 e 1995 o sítio foi estudado e escavado na
sua envolvente comprovando uma ocupação islâmica, pela Ana Cristina Calais, antiga colaboradora do Serviço Regional de
Arqueologia do Sul (escavou na Rua de Burgos com a Ana Gonçalves e na Flor da Rosa com a Teresa Matos Fernandes, por exemplo) e actualmente responsável pelo Museu de Coruche. Por volta
do ano 2000, trabalhos de conservação na Igreja do Senhor da Boa Morte
implicaram a realização de escavações no interior da Igreja dirigidas por Maria
Pilar Reis, com resultados interessantíssimos. Cito o ENDOVÉLICO: Através
da intervenção arqueológica foi possível detectar: 4 silos de cronologia
islâmica; poço de fundição do sino de igreja e fragmentos de molde de sino,
estrutura datada do século XIII, necrópole cristã existente no interior da nave
em utilização entre o século XIII-XV/XVI. Obtiveram-se resultados que permitem
delinear várias fases de reconstrução do templo e em parte caracterizar o
programa decorativo de algumas dessas intervenções. Permitiu ainda relacionar
os resultados obtidos com os resultantes das intervenções arqueológicas na
plataforma superior do monte (fortaleza islâmica) e a necrópole.
A igreja restaurada do Senhor da Boa Morte |
As surpresas no que respeita a conexões pessoais e
profissionais com estes sítios, não se ficam porém por aqui, já que estes lugares arqueológicos acabam
citados num Projecto de Inventário Arqueológico de Vila Franca de Xira, datado
de 2006, da responsabilidade de Sandra Brazuna, uma arqueóloga que comigo
trabalhou no Alqueva. Formando equipa com a Sofia de Melo Gomes e a Marta
Macedo, a Sandra foi responsável pelo estudo da ocupação romana na margem
direita do Guadiana, entre a velha ponte de Mourão (onde escavaram um grande “casal
romano” e a a ponte histórica da Ajuda.
Há assim lugares a que, pelos acasos da vida, nunca mais voltámos e que afinal estão ainda tão presentes...De Povos, recordo ainda o dia em que o Rui Parreira ali em escavação, me telefonou deveras preocupado. Entre os enterramentos relacionados com a demolida igreja matriz, detectara um esqueleto de criança, cujo contexto estratigráfico e deposicional se diferenciava do restante conjunto. Mais ainda: alguns elementos relacionados com o vestuário ou a mortalha, apontavam para uma data de enterramento bastante recente. E assim, desta vez não foram as autoridades policiais que chamaram os arqueólogos (como me aconteceu há muitos anos no Alentejo) mas os arqueólogos que acabaram por chamar as autoridades policiais as quais, ainda que sem deslindarem o mistério, confirmaram a existência de fortes indícios de crime. Mas há 30 anos ainda não havia os CSI...
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