Sempre que me cruzo com o Cláudio Torres, o que infelizmente vai sendo cada vez menos frequente, ele lança-me o repto. Quando apareces por Mértola para bebermos um copo e pormos a conversa em dia? Está prometido que um dia hei-de regressar a Mértola, sem pressas e sem programa. Apenas para bebermos o tal copo, ao fim da tarde e falarmos deste Alentejo que ambos adoptámos um dia como a nossa terra e onde já criámos raízes.
Podia ser este fim de semana, é certo e até seria minha obrigação estar em Mértola (ENCONTRO COM A HISTÓRIA) por estes dias em que, muito justamente, se vai homenagear o Cláudio e uma série de seus amigos e companheiros de "combate", parafraseando o célebre título do mestre Lucien Febvre (Combates pela História): António Borges Coelho, Jorge Alarcão, José Luis de Matos e Juan Zozaya. A todos eles me ligam laços de grande estima intelectual, e a todos sem excepção gostaria de lhes transmitir pessoalmente esse sentimento. Mas, como nos vamos apercebendo com a idade, a distância não é apenas o resultado de uma simples equação entre tempo e velocidade...Há muitos outros factores que começam também a pesar.
De entre os cinco historiadores que os acasos da vida acabaram por juntar este fim de semana em Mértola (e a que poderiamos também ainda acrescentar José Mattoso, também meu antigo professor em letras), é do José Luis de Matos que guardo memórias mais antigas que remontam quase à "pré-história"... Não apenas porque formalmente foi com ele que tive as minhas primeiras aulas naquele que viria a ser o meu principal campo de estudo e trabalho (Paleolítico/Pré-história) mas também porque ele deve ter sido o primeiro arqueólogo com quem contactei directamente quando, anos antes de entrar na Faculdade, visitei as escavações de Vila Moura, no Algarve, no Verão de 1968 (?). Um grupo de meus antigos colegas do Seminário de Almada, no âmbito de um campo de férias, participava nessas escavações que José Luis de Matos (muito ligado a sectores católicos progressistas) iniciava por essa época nas ruínas romanas de Vila Moura. Foi aí que os visitei a quando da primeira viagem que recordo ter feito ao Algarve, com um grupo de amigos da Amadora. Já não guardo detalhes mas apenas uma sensação de oportunidade perdida (participar numa actividade de campo que parecia tão interessante!). Dois anos depois viria a reencontrar pessoalmente o José Luis de Matos, assistente do Prof. Fernando de Almeida, nas aulas práticas de "Pré-história", no primeiro andar do Museu Nacional de Arqueologia, tema em que claramente o José Luis de Matos se sentia muito pouco à vontade enquanto manuseava os "calhaus talhados" que ia passando de mão em mão. Foi também nesse Museu, que uma década depois, viria a reencontrar de novo o JLM, que apesar da diferença de idade e de estatuto, não hesitara em acompanhar muitos dos seus antigos alunos, no processo liderado por Francisco Alves, de reestruturação do Museu e de instalação do Departamento de Arqueologia do IPPC.
António Borges Coelho, foi um nome (proibido e portanto quase mítico) que nos acompanhou em surdina, nos primeiros anos da Faculdade até àquela Primavera de 74 que pôs o mundo ao contrário. Os seus livros não constavam das bibliografias, nomeadamente das cadeiras de história medieval do 2º ano (1971/72) ou de História da Expansão no 3º ano, mas graças a colegas mais esclarecidos (como o Paulo Varela Gomes recentemente falecido ver aqui) rapidamente se tornavam de consulta obrigatória, em edições semi-clandestinas ou recuperadas em alfarrabistas. Recordo em particular os seus trabalhos sobre a "Revolução de 1383-85", sobre a importância da cultura islâmica na formação da nossa identidade ou sobre as raízes da expansão portuguesa. Graças ao Cláudio Torres e às posteriores ligações de Borges Coelho aos projectos de Mértola, vim muito mais tarde a conhecer pessoalmente o antigo "mito" dos meus tempos de estudante e que, entretanto, aprendera a respeitar não apenas pelos seus combates intelectuais mas também pelos combates políticos que o haviam levado às prisões fascistas, nomeadamente ao Forte de Peniche onde conviveu com Álvaro Cunhal.
Jorge Alarcão acabou por ser um nome sempre presente desde que, logo nos primeiros tempos de Faculdade e sob a influência de um curso onde prontificavam já tantas vocações arqueológicas, reconheci o meu especial interesse pela Arqueologia. (http://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/05/a-arqueologia-do-vale-do-tejo-na-tsf.html ). Pessoalmente terei estado com Jorge Alarcão pela primeira vez no III Congresso Nacional de Arqueologia, realizado em 1973 no Porto, ocasião em que conheci a maioria dos arqueólogos portugueses activos nas décadas de 60 e 70 e relativamente pouco numerosos. Mas dados os interesses pré-históricos em que se movia o meu círculo de amizades arqueológicas, só após 1980 viria a ter oportunidade de contactar mais proximamente com a figura que unanimemente era já então considerada a maior autoridade na arqueologia portuguesa. Jorge Alarcão integrava, por mérito próprio e pela sua posição na Universidade de Coimbra, as comissões e grupos de trabalho que se iam formando na orgânica da arqueologia, nalgumas das quais tive também oportunidade de participar, dadas as funções que passei a ocupar no IPPC. Recordo em particular, num meio em que as relações humanas e profissionais eram por tradição muito complexas e difíceis, e nem sempre muito cordatas, a extrema delicadeza e correcção de trato do Professor Jorge Alarcão, cuja mera presença nas reuniões era muitas vezes suficiente para transmitir serenidade e confiança, qualidades infelizmente pouco comuns noutros colegas. Recordo em particular o papel que Jorge Alarcão viria a ter na instalação do antigo Serviço Regional de Arqueologia da Zona Centro, graças ao apoio científico e anímico dado a José Beleza Moreira, seu antigo aluno, por si sugerido para a respectiva direcção, e que viria a realizar um trabalho que criou raízes no centro do país.
Afinal, apesar das voltas da vida me terem aproximado em particular de Cláudio Torres, este terá sido de entre o quatro historiadores portugueses agora justamente homenageados em Mértola, aquele com quem mais tardiamente vim a tomar contacto. É certo que conhecia já (graças à edição clandestina de uma invulgar História de Portugal de que guardo ainda o meu exemplar, então muito manuseado) o nome do seu pai, o historiador exilado Flausino Torres. Mas não chegaria a ser aluno do Cláudio Torres na Faculdade de Letras, quer pelo facto do 25 de Abril (que finalmente permitiu o seu regresso a Portugal e à Universidade de Lisboa) me ter apanhado quase no fim do curso quer pela óbvia divergência de interesses arqueológicos. Aliás, à época, praticamente não se falava de "arqueologia medieval" em Portugal e muito menos de "arqueologia islâmica". Seria, por estranho que tal pareça, a "burocracia" que nos aproximaria mais tarde. Quando a convite do Francisco Alves assumi funções no departamento de Arqueologia do IPPC em finais de 1980, o projecto arqueológico de Mértola dava então os seus primeiros passos, como "campo de arqueologia prática" para os estudantes do Cláudio Torres, aliciado por Serrão Martins, o jovem e malogrado presidente da Câmara local, que lançara o repto ao professor. Mértola, do ponto de vista da gestão das autorizações e subsídios arqueológicos, dependia então do Serviço Regional de Arqueologia do Sul (Évora), cujo primeiro director foi Caetano Mello Beirão (falecido em 1991). Figura controversa e assumidamente de direita conservadora, as suas relações com Cláudio Torres, como é fácil de supôr, não eram propriamente as mais amistosas. A situação ainda se tornava mais complicada pelo facto de Cláudio Torres ser essencialmente um espírito prático, pouco dado a miudezas burocrático-administrativas, o que tornava o seu projecto preza fácil de algum excesso de zelo da parte de Beirão. Valeu nalgumas ocasiões, em que a concessão de subsídios e de autorizações de escavação, esbarravam nos pareceres negativos de Évora, os atalhos benevolentes, proporcionados pela direcção do próprio Departamento de Arqueologia, em nome da solidariedade que o projecto de Mértola inspirava. Mais tarde, já como responsável pelo serviço de Évora (1988-1991), tive oportunidade de acompanhar mais de perto o projecto de Mértola, com um envolvimento muito especial por parte de colaboradores do SRAZS e do próprio Departamento de Arqueologia (como a Susana Correia ou o Carlos Jorge Ferreira), nas escavações que se realizaram no final dos anos 80 sob o edifício da Câmara Municipal, em cuja cripta arqueológica nasceria depois o Museu Romano de Mértola.
Em tempo:
Afinal, José Matoso também fazia parte e muito justamente do grupo de arqueólogos e historiadores homenageados em Mértola, como o comprova a foto publicada pelo Campo Arqueológico de Mértola.
Podia ser este fim de semana, é certo e até seria minha obrigação estar em Mértola (ENCONTRO COM A HISTÓRIA) por estes dias em que, muito justamente, se vai homenagear o Cláudio e uma série de seus amigos e companheiros de "combate", parafraseando o célebre título do mestre Lucien Febvre (Combates pela História): António Borges Coelho, Jorge Alarcão, José Luis de Matos e Juan Zozaya. A todos eles me ligam laços de grande estima intelectual, e a todos sem excepção gostaria de lhes transmitir pessoalmente esse sentimento. Mas, como nos vamos apercebendo com a idade, a distância não é apenas o resultado de uma simples equação entre tempo e velocidade...Há muitos outros factores que começam também a pesar.
De entre os cinco historiadores que os acasos da vida acabaram por juntar este fim de semana em Mértola (e a que poderiamos também ainda acrescentar José Mattoso, também meu antigo professor em letras), é do José Luis de Matos que guardo memórias mais antigas que remontam quase à "pré-história"... Não apenas porque formalmente foi com ele que tive as minhas primeiras aulas naquele que viria a ser o meu principal campo de estudo e trabalho (Paleolítico/Pré-história) mas também porque ele deve ter sido o primeiro arqueólogo com quem contactei directamente quando, anos antes de entrar na Faculdade, visitei as escavações de Vila Moura, no Algarve, no Verão de 1968 (?). Um grupo de meus antigos colegas do Seminário de Almada, no âmbito de um campo de férias, participava nessas escavações que José Luis de Matos (muito ligado a sectores católicos progressistas) iniciava por essa época nas ruínas romanas de Vila Moura. Foi aí que os visitei a quando da primeira viagem que recordo ter feito ao Algarve, com um grupo de amigos da Amadora. Já não guardo detalhes mas apenas uma sensação de oportunidade perdida (participar numa actividade de campo que parecia tão interessante!). Dois anos depois viria a reencontrar pessoalmente o José Luis de Matos, assistente do Prof. Fernando de Almeida, nas aulas práticas de "Pré-história", no primeiro andar do Museu Nacional de Arqueologia, tema em que claramente o José Luis de Matos se sentia muito pouco à vontade enquanto manuseava os "calhaus talhados" que ia passando de mão em mão. Foi também nesse Museu, que uma década depois, viria a reencontrar de novo o JLM, que apesar da diferença de idade e de estatuto, não hesitara em acompanhar muitos dos seus antigos alunos, no processo liderado por Francisco Alves, de reestruturação do Museu e de instalação do Departamento de Arqueologia do IPPC.
António Borges Coelho, foi um nome (proibido e portanto quase mítico) que nos acompanhou em surdina, nos primeiros anos da Faculdade até àquela Primavera de 74 que pôs o mundo ao contrário. Os seus livros não constavam das bibliografias, nomeadamente das cadeiras de história medieval do 2º ano (1971/72) ou de História da Expansão no 3º ano, mas graças a colegas mais esclarecidos (como o Paulo Varela Gomes recentemente falecido ver aqui) rapidamente se tornavam de consulta obrigatória, em edições semi-clandestinas ou recuperadas em alfarrabistas. Recordo em particular os seus trabalhos sobre a "Revolução de 1383-85", sobre a importância da cultura islâmica na formação da nossa identidade ou sobre as raízes da expansão portuguesa. Graças ao Cláudio Torres e às posteriores ligações de Borges Coelho aos projectos de Mértola, vim muito mais tarde a conhecer pessoalmente o antigo "mito" dos meus tempos de estudante e que, entretanto, aprendera a respeitar não apenas pelos seus combates intelectuais mas também pelos combates políticos que o haviam levado às prisões fascistas, nomeadamente ao Forte de Peniche onde conviveu com Álvaro Cunhal.
Jorge Alarcão acabou por ser um nome sempre presente desde que, logo nos primeiros tempos de Faculdade e sob a influência de um curso onde prontificavam já tantas vocações arqueológicas, reconheci o meu especial interesse pela Arqueologia. (http://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/05/a-arqueologia-do-vale-do-tejo-na-tsf.html ). Pessoalmente terei estado com Jorge Alarcão pela primeira vez no III Congresso Nacional de Arqueologia, realizado em 1973 no Porto, ocasião em que conheci a maioria dos arqueólogos portugueses activos nas décadas de 60 e 70 e relativamente pouco numerosos. Mas dados os interesses pré-históricos em que se movia o meu círculo de amizades arqueológicas, só após 1980 viria a ter oportunidade de contactar mais proximamente com a figura que unanimemente era já então considerada a maior autoridade na arqueologia portuguesa. Jorge Alarcão integrava, por mérito próprio e pela sua posição na Universidade de Coimbra, as comissões e grupos de trabalho que se iam formando na orgânica da arqueologia, nalgumas das quais tive também oportunidade de participar, dadas as funções que passei a ocupar no IPPC. Recordo em particular, num meio em que as relações humanas e profissionais eram por tradição muito complexas e difíceis, e nem sempre muito cordatas, a extrema delicadeza e correcção de trato do Professor Jorge Alarcão, cuja mera presença nas reuniões era muitas vezes suficiente para transmitir serenidade e confiança, qualidades infelizmente pouco comuns noutros colegas. Recordo em particular o papel que Jorge Alarcão viria a ter na instalação do antigo Serviço Regional de Arqueologia da Zona Centro, graças ao apoio científico e anímico dado a José Beleza Moreira, seu antigo aluno, por si sugerido para a respectiva direcção, e que viria a realizar um trabalho que criou raízes no centro do país.
Afinal, apesar das voltas da vida me terem aproximado em particular de Cláudio Torres, este terá sido de entre o quatro historiadores portugueses agora justamente homenageados em Mértola, aquele com quem mais tardiamente vim a tomar contacto. É certo que conhecia já (graças à edição clandestina de uma invulgar História de Portugal de que guardo ainda o meu exemplar, então muito manuseado) o nome do seu pai, o historiador exilado Flausino Torres. Mas não chegaria a ser aluno do Cláudio Torres na Faculdade de Letras, quer pelo facto do 25 de Abril (que finalmente permitiu o seu regresso a Portugal e à Universidade de Lisboa) me ter apanhado quase no fim do curso quer pela óbvia divergência de interesses arqueológicos. Aliás, à época, praticamente não se falava de "arqueologia medieval" em Portugal e muito menos de "arqueologia islâmica". Seria, por estranho que tal pareça, a "burocracia" que nos aproximaria mais tarde. Quando a convite do Francisco Alves assumi funções no departamento de Arqueologia do IPPC em finais de 1980, o projecto arqueológico de Mértola dava então os seus primeiros passos, como "campo de arqueologia prática" para os estudantes do Cláudio Torres, aliciado por Serrão Martins, o jovem e malogrado presidente da Câmara local, que lançara o repto ao professor. Mértola, do ponto de vista da gestão das autorizações e subsídios arqueológicos, dependia então do Serviço Regional de Arqueologia do Sul (Évora), cujo primeiro director foi Caetano Mello Beirão (falecido em 1991). Figura controversa e assumidamente de direita conservadora, as suas relações com Cláudio Torres, como é fácil de supôr, não eram propriamente as mais amistosas. A situação ainda se tornava mais complicada pelo facto de Cláudio Torres ser essencialmente um espírito prático, pouco dado a miudezas burocrático-administrativas, o que tornava o seu projecto preza fácil de algum excesso de zelo da parte de Beirão. Valeu nalgumas ocasiões, em que a concessão de subsídios e de autorizações de escavação, esbarravam nos pareceres negativos de Évora, os atalhos benevolentes, proporcionados pela direcção do próprio Departamento de Arqueologia, em nome da solidariedade que o projecto de Mértola inspirava. Mais tarde, já como responsável pelo serviço de Évora (1988-1991), tive oportunidade de acompanhar mais de perto o projecto de Mértola, com um envolvimento muito especial por parte de colaboradores do SRAZS e do próprio Departamento de Arqueologia (como a Susana Correia ou o Carlos Jorge Ferreira), nas escavações que se realizaram no final dos anos 80 sob o edifício da Câmara Municipal, em cuja cripta arqueológica nasceria depois o Museu Romano de Mértola.
Em tempo:
Afinal, José Matoso também fazia parte e muito justamente do grupo de arqueólogos e historiadores homenageados em Mértola, como o comprova a foto publicada pelo Campo Arqueológico de Mértola.
José Luis de Matos, Jorge Alarcão, José Matoso, António Borges Coelho e Cláudio Torres em Mértola, no dia 17 de Junho de 2016 (Foto CAM) |
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