Historiador, inventariador, crítico de
arte, defensor intransigente dos patrimónios da cultura e das artes do seu
Alentejo, Túlio Espanca (1913-1993) foi um erudito e um sábio a quem as
Ciências do Património, no campo da inventariação de bens, e a História da
Arte, numa nova perspectiva micro-artística, devem imenso. Neste preito de
homenagem à figura do historiador de arte recorda-se que era, além do mais,
homem generoso e simples, atento à divulgação da cultura e empenhado em grandes
causas sociais. Apesar da desmemória galopante do nosso tempo, acredito que há
heranças imperecíveis e nesse sentido lhe deixo uma palavra de sentida
homenagem com absoluta certeza de que a sua obra científica está viva e o seu
legado perdura.
A obra que nos legou é pioneira e
monumental: bastam os oito tomos do Inventário Artístico de Portugal editados pela Academia Nacional de
Belas-Artes, dedicados aos Distritos de Évora e Beja, para o afirmarem como
referência insubstituível. Mas há ainda os milhares de páginas no Boletim A
Cidade de Évora, de que foi o responsável durante décadas, e nos Cadernos de História e Arte Eborense, pondo Évora no palco internacional, e
muitas outras publicações alentejanas onde a sua sensibilidade, inteligência,
veia arguta de investigador e eficácia na divulgação turística se manifestaram.
Aliou o eruditismo 'puro' a um sentido de cidadania consciente e consequente na
afirmação dos valores do Património como bem comum. Assim, Évora, a Cidade Património Mundial/UNESCO, deve a Túlio Espanca a candidatura
vitoriosa de 1986.
Nasceu em Vila Viçosa a 8 de Maio de
1913 e faleceu em Évora a 2 de Maio de 1993. Na tenra juventude conheceu
grandes dificuldades financeiras, embora nascido no seio de família do meio
cultural calipolense, que lhe possibilitou ver livros e obras de arte e seguir
debates intelectuais, tendo com marca de referência no seu tio, o historiador
Padre Joaquim da Rocha Espanca. A 8 de Dezembro de 1930 morre sua amada prima
Florbela Espanca, grande escritora e poetisa calipolense que teve em Túlio
inegável influência na sensibilização às artes. A 6 de Junho de 1927 morre o
primo Apeles, irmão de Florbela, quando o hidroavião que pilotava se despenha
defronte da Torre de Belém, uma tragédia sentida por toda a família. Com o
casamento, a 6 de Setembro de 1936, com a senhora D. Maria Engrácia do Quental
Oliveira (1924-2004), mãe dos seus três filhos e companheira de vida, terá
possibilidade de se concentrar no seu trabalho. Nos anos 40, a instâncias de
homens ilustres de Évora como Bartolomeu Gromicho, Mário Chicó e Celestino
David, inscreve-se no Grupo Pro-Évora e ganha lugar no Curso de Cicerones dos
monumentos da cidade após obter brilhante classificação. Escreve os primeiros
artigos no jornal O Arraiolense. Aí publica, em oito números, o extenso artigo Breve Descrição Histórica de Vila Viçosa. A obra que então se inicia parte da
investigação das fontes e é sob muitos aspectos pioneira. Em 1953, foi bolseiro
do Instituto de Alta Cultura e viaja por França e Itália. Começa a elaborar as
fichas do Inventário
Artístico de Portugal,
a pedido da Academia Nacional de Belas-Artes, onde se integra, com o volume
referente à Cidade e Concelho de Évora (1966), um exaustivo levantamento
descritivo e fotográfico do património arquitectónico e artístico da região, a
que se seguiram os seis tomos referentes ao Distrito eborense. Elaborou, de
seguida, os primeiros tomos do Inventário Artístico relativo ao Distrito de Beja. Em 1979 é
eleito Vogal Efectivo da Academia Nacional de Belas-Artes, de que já era membro
desde 1959, como prémio pelo trabalho desenvolvido nos Inventários Artísticos. Além de numerosos escritos dispersos
por jornais e revistas e a colaboração assídua no boletim A Cidade de Évora, de que foi fundador, publicou o Guia Histórico-Artístico de Évora (1949-1951), o Património Artístico do Concelho de
Évora
(CME, 1957), Évora
e o seu Distrito (1959),
Subsídios para a
História da Justiça em Évora (1963), e o volume Évora (1993, Editorial Presença). Espanca torna-se aos
poucos figura incontornável para quem se dedica ao estudo da História de Arte.
Ao seu trabalho de pesquisa se devem os primeiros trabalhos baseados em recolha
sistemática de informação documental sobre o património cultural, com carácter
de inventário, do que se acha referente ao seu distrito de eleição, o de Évora.
A sua actividade neste campo continua a ser, por inteiro, uma referência. Em
1982 foi galardoado com o Prémio Europeu de Conservação de Monumentos
Históricos pelos relevantes serviços prestados no âmbito do processo de
candidatura à classificação pela UNESCO de Évora como Património Mundial. Membro
da Academia Portuguesa da História, recebeu o Prémio Europeu de Conservação dos
Monumentos Históricos e recebeu, ainda, a Ordem de Sant'Iago da Espada, a
Medalha de Ouro da Cidade de Évora e o Doutoramento Honoris Causa pela
Universidade de Évora, este atribuído em 1990, em reforço do reconhecimento
académico face ao seu trabalho de vida. Após a sua morte trágica, viria a ser
colocada uma estátua marmórea que, da varanda da Sala dos Professores,
contempla o Claustro deste Colégio jesuítico, tantas vezes por si revalorizado.
Como historiador de arte, distinguiu-se
pela vastidão e rigor do seu trabalho de inventariação e investigação do
património artístico do Alentejo, que só foi possível pelo domínio que adquiriu
da História da Arte internacional, fruto de leituras, contactos com
especialistas e viagens de estudo. Ao seu trabalho de rigorosíssima pesquisa,
tantas vezes inédita, se devem os primeiros estudos de arte eborense baseados
em recolha sistemática de informação documental sobre o património cultural com
carácter de estudo e de inventário, para as terras dos Distritos de Évora e
Beja. O resultado do seu trabalho continua a ser de referência. A certeza de
que abriu campo para que o Centro Histórico de Évora, se tornasse há trinta
anos Património Mundial da UNESCO é consensual. «Para além de ter deixado uma
obra vastíssima de investigação e catalogação o seu legado marca sobretudo pela
valorização do património numa abordagem social moderna de espólios vivos e
evolutivos». O historiador de arte/inventariante como foi Túlio Espanca sabe
analisar as obras de arte para melhor as interpretar: uma obra de arte nunca se
esgota e, porque é obra viva, continuará a projectar estímulos em gerações
futuras. Tem de saber (em Portugal, mais do que nunca) confrontar a obra com os
seus outros modos (literário, moral, filosófico, científico, espiritual,
económico, etc) para dela retirar os significados possíveis. Atento a conceitos
como o de Micro-História da Arte (Ginzburg) e de des-compartimentação
(Panofsky), soube relacionar as ciências da observação e representação, abrindo
caminho à via sociológica e à integração globalizante da produção artística. A
sua História da Arte pôde impõr-se, assim, pela vontade de re-conhecer e
des-codificar as obras, apreender-lhes a carga de fascínios, explica-las no
contexto histórico e ideológico, no quadro de um recenseamento globalizante. Só
estudando os programas artísticos desaparecidos – através da cripto-história de
arte – se devolve parte do fascínio às obras existentes. Todas as peças
justificam olhar atento, missão de pesquisa, ternura de diálogo
des-codificante, agudeza de estudo crítico integrador.
O sucesso do Inventário Artístico presente deve tudo ao saber de Túlio
Espanca e ao seu espírito de trabalho em larga inter-disciplinariedade, onde
foi absolutamente pioneiro no contexto do Alentejo. Basta verem-se as suas
escolhas temáticas para A Cidade de Évora onde, desde os anos 40, reuniu a
melhor colaboração portuguesa e estrangeira desde os Historiadores
(medievalistas, modernos ou de História contemporânea) aos Arqueólogos,
Historiadores de Arte, Conservadores e Restauradores, Museólogos, Arquitectos e
Urbanistas, Arquivistas, Biólogos, Arquitectos-Paisagistas, Geógrafos… A
variedade dessa colaboração especializada tornou a Cidade de Évora a melhor das
revistas regionais de responsabilidade municipal, e a mais sólida base para o Inventário Artístico que se iria seguir e para toda a série
de iniciativas de conservação, estudo e larga divulgação de Évora como
Cidade-Museu. Saúde-se, a propósito, o facto de a revista voltar agora a ser
publicada. Tudo isso devemos a Túlio Espanca. É necessário que esta revista
prossiga dentro do mesmo espírito, tal como o seu fundador-editor a idealizou,
como investimento cultural da Autarquia de Évora. Apesar da desmemórias
galopante dos tempos, acredito que há heranças imperecíveis, como a que nos
deixou Túlio Espanca, grande historiador de arte e grande investigador dos
patrimónios comuns, com absoluta certeza também de que a sua obra científica
está viva, e o seu legado incansável e sábio perdura. Com ele, passámos a ver
as artes do Alentejo (eruditas ou populares, religiosas ou profanas) sem
quaisquer tipos de preconceito, e a estimá-las, não com as tradicionais peias
elitistas, mas sim como discursos de eloquência aberto, perene e de fascínio
duradoiro. Em nome da Academia Nacional de Belas-Artes, de que foi membro
ilustre, e que aqui também represento, expresso a minha gratidão à memória de
Espanca -- pelo muito que com ele aprendi e, sobretudo, a saber ver melhor.
(palavras de elogio, no lançamento de
novo nº de A
Cidade de Évora,
nos Paços do Concelho de Évora, a 29 de Junho de 2016)
Vitor Serrão / Historiador de Arte /
Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Vice-Presidente da
Academia Nacional de Belas-Artes
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