Para a história recente da Ponte da Ajuda
A divulgação na NET de
um vídeo com a restituição virtual da esquecida Ponte da Ajuda, produzido por
iniciativa da Cromeleque, Lda e da GEODRONE, serve de pretexto para um assunto que há muito queria abordar neste BLOG, até porque o acompanhei durante algum tempo, quer por via da minha participação no Projecto Alqueva, quer posteriormente pelas minhas funções técnicas na Direcção Regional do IPPAR e organismos que se lhe seguiram.
A importância e delicadeza do tema, porém
não se esgota aqui e certamente voltarei ao assunto.
Por agora apenas uma chamada de atenção para o facto de este Monumento Nacional, por circunstâncias da
História, se encontrar literalmente em “terra de ninguém”, num limbo
político-diplomático que apesar do anacronismo óbvio, continua a condicionar a valorização cultural de uma estrutura que na sua época de construção (Século XVI) representou um feito extraordinário de engenharia, como o demonstrou recentemente o meu amigo Luis Alfonso Limpo, director da Biblioteca de Olivença, em obra de referencia obrigatória que dedicou à Ponte da Ajuda.
Para a história recente dos encontros e desencontros com a Ponte da Ajuda, refira-se que no início do século XXI, parecia abrir-se uma nova fase na história deste monumento. Chegou a programar-se uma intervenção de consolidação no âmbito do Alqueva, mas como os efeitos da subida das águas são mínimos nesta zona, deixou de haver pretexto técnico para o efeito. Por outro lado a existência de uma espécie botânica em vias de extinção que crescia livremente sobre o tabuleiro (Narcissus cavanillesii) limitava e complicava as possibilidades de intervenção. Entretanto, no âmbito de um acordo transfronteiriço realizado pelas Estradas de Portugal (à revelia do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da própria Cultura) com a sua congénere espanhola, seria acordado que a parte portuguesa construiria uma nova ponte rodoviária a jusante da Ponte da Ajuda (recuperando a antiga ligação Elvas-Olivença), ficando os espanhóis encarregues de "recuperar" para fins turístico-culturais a velha Ponte da Ajuda. Como se sabe, a nova ponte acabaria por ser construída pela parte portuguesa, mas por razões diplomáticas, o dono da obra seria a Câmara Municipal de Elvas e não o Estado português. Quanto à "recuperação" da Ponte Antiga, as obras viriam a limitar-se à margem oliventina, não apenas pelos problemas fronteiriços mas também pela natureza do projecto espanhol, inaceitável à luz das metodologias actuais de intervenção patrimonial. (Concebido por um conhecido engenheiro de estradas espanhol, entretanto já falecido à época, o projecto previa a "reconstrução das partes derrocadas, em betão armado", ainda que recuperando a presumível forma original. O aspecto final seria obtido pelo revestimento com "lajes de pedra" da estrutura. A parte recuperada na margem espanhola, obedeceu a este critério.)
Num Memorando síntese que preparei em 2006, se registam as principais etapes do processo "Ponte da Ajuda", no início do Século XXI:
MEMORANDO
(2000-2004)
12.01.2000- Reunião entre o IEP (Instituto de Estradas de
Portugal) e a Direcção Geral de
Carreteras (Espanha)- a par de decisões sobre a construção da nova ponte
rodoviária da Ajuda, foi acordado que a Espanha, desenvolveria as necessárias
deligências, em coordenação com os respectivos Ministérios da Cultura,
procedendo à recuperação para uso cultural da Ponte Antiga.
18.05.2001
– através de ofício, o ICOR solicita ao IPPAR parecer sobre o “Projecto de
Reconstrução e Reabilitação da Ponte Antiga da Ajuda para Usos Pedonais e
Turísticos”
13.07.2001 - Parecer negativo do IPPAR sobre aquele projecto
23.07.2001
– impedido de transmitir o respectivo parecer à parte espanhola, face a
“providência cautelar”, interposta pelos “Amigos de Olivença”, o IPPAR, através
de ofícios dirigidos ao Chefe de Gabinete do Ministro da Cultura (17.07 e
23.07.2001) faz seguir para o Ministério dos Negócios Estrangeiros (cf.
despacho do Ministro da Cultura sobre o ofício de 17.07.2001) cópia do parecer
negativo.
22.01.2003-
1ª informação do signatário dando conta de rumores sobre o próximo início de
obras (05/DRE/2003)
25.02.2003- 2ª informação sobre o mesmo assunto (
27/DRE/2003), propondo o pedido de informações à C.M.de Elvas e à CCRA
10. 03. 2003-
3ª informação do signatário (31/DRE/2003) verificando-se o início de obras na
margem esquerda (Olivença) e a instalação de estaleiro na margem direita
(Elvas) propõe-se que o assunto seja levado à consideração urgente do MNE
português através do Gabinete do Ministro da Cultura
12. 03. 2003-
ofício do Grupo dos Amigos de Olivença denunciando a instalação do estaleiro e
o próximo início de obras
17. 03. 2003-
resposta do Presidente do IPPAR (Dr.Luis Calado) ao GAO, informando que o
assunto já fora levado à consideração do MNE.
15. 05. 2003-
Memorando do signatário na sequência de deslocação à Ponte da Ajuda com o Eng.ª
Cunha (DRE_IPPAR) em 8 de Maio e de reunião técnica no Palácio da Ajuda entre o
IPPAR (Vice-Presidente, Arqto Passos Leite e Directora DRE) e ICN (Directaora
do Parque Natural da Serra de S.Mamede e Dr. Pedro Arriegas). O Vice-Presidente
do IPPAR informa de uma reunião técnica realizada no MNE (INAG, EDIA, IPPAR,
ICN e C.M.Elvas). Objectivo:reunir as condicionantes técnicas, limitadas ao
IPPAR e ICN a impôr às autoridades espanholas para revisão do projecto. O
memorando foi remetido em 16.05.2003ao MNE, que preparava já então uma reunião
técnica luso-espanhola sobre o assunto.
2.06.2003
– 4ª informação do signatário, (62/DRE/2003): apesar de não haver vestígios de
qualquer actuação na estrutura da ponte da margem direita (Elvas) ou nos
pilares isolados do meio do leito, verificava-se o desenvolvimento do projecto
de reconstrução (sem qualquer limitação ou constrangimento) no sector
Oliventino da Ponte, em pleno cumprimento do “Projecto” original “reprovado
pelo IPPAR”.
3. 06. 2003- o Vice-presidente do IPPAR (Arqto
Passos Leite) informa a DREvora do IPPAR de que o MNE está a par do que se
passa na Ponte da Ajuda e que em breve, por iniciativa do MNE será marcada uma
reunião técnica Luso-espanhola que, pela parte portuguesa deverá ser articulada
com a DRE do IPPAR e o Parque Natural da Serra de S. Mamede.
6.06. 2003-
na sequência de contactos com o MNE, a Directora Regional de Évora solicita à
Presidência do IPPAR a reserva de uma sala do Palácio da Ajuda para a reunião
Luso-espanhola, agendada pelo MNE para 11 de Junho. O assunto é já despachado
pela nova Vice-Presidente (Dra Rosa Amora) que concorda desde que
reunida a condição “sine qua non” exigida pela parte portuguesa para realizar a
reunião, ou seja a “suspensão das obras”
A reunião Luso-espanhola
acabaria por ter lugar apenas em 1 de Julho de 2003, existindo no
processo dois memorandos sobre a mesma:
1- Ministério dos N.E. de 2 de Julho da responsabilidade
do Embaixador J.F.Costa Pereira
2- Da DRE IPPAR, de 3 de Julho, assinado pelo signatário.
No essencial ficou
então acordado:
- redução ao mínimo das obras na margem Oliventina que em
caso algum seriam alargadas à margem de Elvas;
- revisão e
alteração do projecto pela Direção Geral de Carreteras, de modo a responder às
preocupações da parte Portuguesa (IPPAR e ICN)
- a parte
portuguesa prepararia lista de condicionantes técnicas (IPPAR e ICN) que foram remetidas
oficialmente à parte espanhola em 10 de Julho de 2003 (ver Documento Técnico de Maio de 2003, também aqui transcrito)
- a retoma das obras ficaria dependente da aprovação pelo
IPPAR e ICN da revisão do projecto.
NOTA FINAL: aparentemente
a parte espanhola acabaria por abandonar totalmente o projecto original,
rescindindo a empreitada que estava em curso e desmontando completamente todo o
estaleiro e apresentando um novo projecto às autoridades portuguesas (estudo prévio) em meados de 2004,
estudo que também viria a ser rejeitado pelo IPPAR.
Évora, 29 de Novembro de
2006
DOCUMENTO TÉCNICO DE MAIO 2003 IPPAR/ICN
Ponte
da Ajuda (Elvas)
Condicionantes de ordem
patrimonial para a apreciação do
“Proyecto de
Reconstruccion e Rehabilitacion del
Puente Antiguo de Ajuda para usos peatonales y turisticos”
(Ministerio de Fomento, Secretaria de Estado de
Infraestruturas y Transportes, Dirección General de Carreteras)
A- Patrimonio Cultural (documento - IPPAR)
1. Protecção legal e
classificação
O imóvel “Ponte da Ajuda”, constituído pelas ruínas de uma ponte antiga
(Século XVI) sobre o Guadiana, congrega na sua presente situação um
conjunto de valores (arquitectónicos, tecnológicos, arqueológicos, históricos,
simbólicos, paisagísticos, etc...) cujo reconhecimento justificaram a sua
oportuna protecção legal enquanto “imóvel de interesse público” através
de acto legislativo próprio: Decreto 47508 de 24.01.1967; com efeito nos termos
da legislação portuguesa (Lei 107/2001-Lei de Bases do Património Cultural
Português) a protecção legal dos bens culturais assenta na classificação,
(Artº16) e “Entende-se por classificação o acto final do procedimento
administrativo mediante o qual se determina que certo bem possui um inestimável
valor cultural”- (Artº18).
Nota: de facto, são
as “ruínas (arqueológicas) da Ponte da Ajuda” e o respectivo
ambiente paisagístico e contexto histórico que são objecto de classificação e
protecção legal, não a “ponte original” (antes de mais porque aquela já não
existe mas também porque, no processo de sucessivas
reconstruções/reabilitações, houve afinal “diferentes” pontes). Esta situação,
confere desde logo uma especial relevância arqueológica, paisagística e
histórica ao objecto da classificação, relevância que (quer nas intenções quer
nas soluções) é radical e definitivamente posta em causa pelo projecto do
“Ministerio do Fomento”
2. Projectos, obras e
intervenções versus respeito pela “autenticidade”
A referida lei de bases, através do artº45 especifica concretamente a
possibilidade de realização nos imóveis classificados de “obras de conservação,
modificação, reintegração e restauro”. Ainda que não definindo
concretamente o que se entende por cada um daqueles items, a lei é
bastante restritiva e cuidadosa neste domínio específico ao remeter no mesmo
articulado para a obrigatória responsabilização de técnicos qualificados em
caso de intervenções (nº1, do Artº45), para a exigência de um adequado
enquadramento técnico e histórico das mesmas (nº2 e 4) e, acima de tudo, para a
indispensabilidade do parecer prévio sobre os respectivos estudos e projectos
de intervenção por parte dos organismos competentes para determinar a
classificação (nº3); depreende-se deste posicionamento extremamente cauteloso
da lei que quaisquer obras, ainda que possíveis e muitas vezes necessárias para
a preservação do próprio bem protegido, devem ser sempre realizadas de forma a
não comprometerem o conjunto dos valores reconhecidos que fundamentaram afinal
a decisão da protecção legal.
Ainda que tal não seja expresso, subentende-se neste posicionamento da Lei
portuguesa, a defesa da “autenticidade” dos bens culturais, um valor cada vez
mais tido em conta internacionalmente nos critérios de classificação,
nomeadamente pela UNESCO e organismos associados como o ICCROM ou o ICOMOS, na
selecção de bens a integrar a Lista do Património Mundial. Ainda que a noção de
“autenticidade” possa variar de cultura para cultura (tal como expresso pelo
Documento de Nara, 1994), há quesitos básicos, quase do senso comum, para
definir o que é “autêntico” e que, como é notório, são completamente ignorados
num projecto que se propõe reconstruir em “betão armado” mais de 50% do
monumento em causa: “Dependendo da natureza do monumento ou do sítio e do
seu contexto cultural, o julgamento sobre a autenticidade é ligado a fontes de
informação variadas. Estas últimas compreendem concepção e forma, materiais e
substancia, uso e função, tradição e técnicas, situação e localização, espírito
e expressão, estado original e devir histórico (...)” Artº13 do Documento
de Nara sobre a Autenticidade.
a) conceito de
“conservação”
“
A conservação funda-se sobre o respeito da matéria, dos usos, das
associações e dos significados existentes. Ela requer prudência que consiste em
mudar apenas aquilo que é necessário e o menos possível.” (Artº3.1. da
Carta de Burra)
;
“As modificações de um
lugar ou de um bem patrimonial não devem alterar a evidência física que este
constitui nem assentar em conjecturas ou suposições” (Artº3.2);
“As
técnicas e materiais tradicionais constituem recursos preferenciais em
conservação. Em certas circunstâncias e sob certas condições, a utilização de
técnicas e materiais modernos que possam oferecer evidentes vantagens em termos
de conservação, poderão ser ensaiadas.”
b) conceito de “restauro”
- segundo a Carta de Veneza (1964), “O restauro é uma operação que deve
manter um carácter excepcional. Ela tem por objectivo conservar e
revelar os valores estéticos e históricos do monumento e funda-se no respeito
da matéria antiga e de documentos autênticos. Ele (restauro) deve parar onde começa
a hipótese ...” Ainda na mesma carta
de Veneza mas referindo-se especificamente às “ruínas arqueológicas” (em cuja
definição cabe até certo ponto, o imóvel em causa), acrescenta-se no Artº 15- “(...)
Todo o trabalho de reconstrução deve ser excluído à priori e apenas a
“anastilose” deve ser realizada, ou seja a recomposição de partes existentes
mas desmembradas”.
- segundo a carta de
Burra (Artº1.7.), “O restauro consiste em reconduzir a matéria existente de
um sítio ou bem cultural a um estado anterior conhecido, removendo acrescentos
ou recompondo elementos pré-existentes sem recurso a material novo”.
(Artº19 e 20); acrescenta-se ainda “O restauro adequa-se a situações em que
existem em número suficiente testemunhos materiais do estado físico anterior”
c) conceito de
“reconstrução”:
- segundo a Carta de Burra (Artº 20), “A reconstrução convém unicamente
às situações em que o bem patrimonial está incompleto na sequência de uma
destruição súbita ou de uma modificação e desde que existam dados suficientes
para reproduzir as partes desaparecidas. Apenas em casos raros a
reconstrução pode constituir uma opção como expressão de um uso ou de uma
prática que mantém o valor cultural de um lugar ou de um bem patrimonial”;
- por outro lado segundo a Carta Europeia do Património Arquitectónico
(1975)- Artº 6 (...) A tecnologia contemporânea, mal aplicada, afecta as
estruturas antigas. Os restauros abusivos são nefastos(...);
Nota: o projecto do Ministerio do
Fomento assume-se como “projecto de reconstrução e reabilitação”
funcional, justificado pelo interesse social (turístico e cultural) em
recuperar o uso original do bem em causa; no entanto ao pretender valorizar uma
mais valia específica, a solução técnica proposta prejudica ou anula
definitivamente (sem hipótese de reversibilidade, um princípio fundamental do
“restauro”) outras valias bem mais importantes do ponto de vista cultural, a
começar pela da própria “autenticidade”.
Acresce ainda que parte do valor social
que decorreria da “reconstrução” (travessia pedonal do Rio) se pode já fazer na
nova ponte construída a juzante. Por outro lado verifica-se que a valorização
turística do monumento pode ser afinal conseguida com soluções menos invasoras
das estruturas antigas e que, além disso, possam ser compatíveis com a
protecção do “habitat” da espécie ameaçada do Narcissus Canavillesii o
que obviamente não acontece com a solução proposta.
3.
Estado das ruínas da Ponte da Ajuda e efeitos do Regolfo; condicionalismos a
ter em conta numa necessária intervenção de “conservação/valorização”
Apesar das graves objecções de ordem técnica e teórica que nos coloca o
projecto do Ministerio do Fomento,(que se inferem do alinhamento de conceitos e
comentários acima expressos) não podemos deixar de reconhecer que o mesmo, ao
nível das intenções, visa afinal objectivos legítimos de conservação e
valorização patrimonial que estavam certamente subjacentes às conclusões da
reunião de 12 de Janeiro de 2000 realizada entre o Instituto de Estradas de
Portugal e a Direccion General de Carreteras.
No entanto, parece óbvio, que em face da situação concreta deste monumento
e dos actuais critérios de intervenção patrimonial recomendados
internacionalmente, a solução técnica preconizada no projecto do Ministerio do
Fomento não parece aceitável, pelo menos na sua globalidade. Por outro lado, a
já referida presença no tabuleiro da própria ponte (margem Direita, Elvas) de
uma espécie botânica ameaçada e protegida
pela Directiva 92/43 CEE do Conselho (Directiva Habitats) vem reforçar ainda
mais e de forma definitiva tal conclusão.
Estamos pois, perante um
dilema complexo que necessita de uma resposta adequada.
Como tornar compatível?
a) a necessidade de conservação/ consolidação
das ruínas arquitectónicas, face ao seu avançado estado de degradação (nalguns
casos ameaçando ruptura) e face ás alterações que irão ser introduzidas no
regime fluvial da zona pelo “regolfo de Alqueva”
b) o interesse social da valorização
turístico/cultural do monumento colocando a respectiva fruição ao serviço
do enriquecimento cultural das populações e dos visitantes;
c) o respeito dos princípios internacionalmente
aceites da salvaguarda patrimonial, nomeadamente no que respeita à
garantia da “autenticidade” formal e material das estruturas conservadas;
d) a salvaguarda das condições de “habitat” da
espécie protegida existente no “tabuleiro” da Ponte da Ajuda (Narcissus
Canavillesii);
A resposta técnica que
nos parece mais adequada:
a) Conservação/consolidação
com respeito pelos princípios da “autenticidade” do bem cultural em causa:
- a criação de condições de conservação,
assegurando a consolidação dos pilares, incluindo o que resta dos 5 centrais,
parcialmente destruídos, e sobretudo, a estabilidade dos 12 arcos ainda
conservados (8-Elvas e 4-Olivença),é indispensável à salvaguarda e preservação
do monumento na sua situação actual e, por consequência, à sobrevivência da
espécie botânica que nele encontrou “habitat”; uma intervenção de
“consolidação” e “restauro” é por isso não apenas legítima como necessária:
- “pilares” e
“talha-mares”: sendo as estruturas que irão sofrer directamente com as
alterações de “cota” e de regime fluvial, justifica-se uma intervenção mais
intensa, quer ao nível da “consolidação” quer mesmo do “restauro”, visando como
objectivo garantir a estabilidade futura do monumento; entende-se aqui por
“restauro” o preenchimento de lacunas internas que já se verificam no “miolo”
de alguns pilares, a reposição de silhares deslocados ou mesmo a inclusão de
“silhares” novos, do mesmo material, onde estes faltam ; justifica-se
igualmente, quer por razões de conservação quer de valorização estética, a
“reconstrução” parcial (recorrendo a “silhares” novos) dos 5 pilares centrais
já parcialmente derrocados, de modo a evitar a respectiva submersão em situação
de cota máxima da Barragem (152).
- “arcos”-
garantida a estabilidade dos respectivos pilares de suporte, a intervenção nos
arcos, nomeadamente no seu extra-dorso, deve pautar-se essencialmente por
objectivos de conservação, consolidação e estabilização; neste caso deverá
ter-se em conta a necessidade de respeitar as técnicas construtivas e materiais
originais no sentido de não alterar significativamente as condições actuais de
equilíbrio da estrutura que garante o habitat do “Narcissus”; pelo mesmo
motivo, a remoção de outra vegetação infestante, a fazer-se, deverá ser
rigorosamente avaliada e condicionada por critérios científicos;
- “tabuleiro”-
em particular no sector “Elvas”, a intervenção está à priori fortemente condicionada
por razões de conservação do “Narcissus”, quer nos objectivos quer nas
metodologias de execução; tal não justifica que, pontualmente, não haja
necessidade de alguma consolidação e por vezes, mesmo de restauro (como é o
caso do grande “rombo” existente entre os pilares 12 e 13; no entanto tais
intervenções, para além de cuidadosamente planeadas e avaliadas em todas as
consequências, necessitam de uma execução
extremamente
cuidada;
NOTA: as medidas sugeridas de
conservação/ consolidação vão em grande parte ao encontro da chamada 1ª fase do
projecto do Ministerio de Fomento, com as devidas condicionantes e adaptações
quer no que respeita a “limpeza de vegetação”, quer na escolha dos materiais e
metodologias de “restauro” quer ainda no do “nivelamento e reconstrução dos
pilares semiderrubados”.
b) valorização
turístico/cultural ambientalmente integrada
- a reabilitação do uso original (embora
restringido a peões) representa na proposta do Ministerio do Fomento o elemento
fundamental do projecto de valorização; apesar do seu inegável interesse, a
prossecução daquele objectivo mostra-se contudo drasticamente incompatível com
os princípios da conservação quer do bem cultural que se pretende valorizar
quer com a protecção de um bem natural ameaçado (Narcissus); importa pois,
neste campo, encontrar soluções alternativas que sejam compatíveis com a
globalidade dos interesses e valores em presença e que ainda assim permitam uma
aproximação e fruição turística ao monumento, a partir das duas margens;
- essas soluções
deverão, no entanto, ter em conta não apenas as condicionantes de ordem
patrimonial já referidas, mas igualmente as circunstancias próprias de
atractividade tradicional do local, recentemente reforçadas com a recuperação
da Capela de Nª Sª da Ajuda, a melhoria dos acessos e a construção da nova
ponte rodoviária a jusante da Ponte antiga; a procura deste local será
certamente, muito potenciada num futuro breve com os efeitos directos e
indirectos que o Regolfo de Alqueva terão sobre o turismo da região;
- por outro
lado, tendo em conta que grande parte do valor e interesse monumental das
ruínas da Ponte da Ajuda decorrem sem dúvida da sua especial integração
paisagística e ambiental, a solução para a respectiva valorização e fruição
turística deverá obrigatoriamente integrar-se num plano de valorização mais
abrangente que tenha em conta essa situação e que seja extensível a ambas as
margens com ou sem ligação “pedonal” directa;
B- Patrimonio
Natural (documento - ICN)
Situação
de referência
O Narcissus
cavanillesii A. Barra & G. López é um geófito, com floração outonal
(Outubro e Novembro) e pertence à família das Amaryllidaceae. É um endemismo ibero-mauritânico, ocorrendo
sobretudo no sudoeste de Espanha (Extremadura e Andaluzia) e escassamente no
sudeste de Portugal (Alentejo, margem do Rio Guadiana) e noroeste de África
(Argélia e Marrocos) (Valdes et al.,
1987).
Ocupa solos areno-argilosos das zonas baixas do
leito de cheia, entre rochas xistosas ou em pequenas caleiras de tufos de
tamujo (Securinega tinctoria).
Em Portugal encontra-se em perigo de extinção,
tendo a sua população um reduzido número de efectivos, circunscritos a uma área
muito restrita.
Desde 1976, e até recentemente, apenas a população
da zona da Nossa Sra. da Ajuda (159 msm.), concelho de Elvas, era conhecida,
contendo um núcleo principal de cerca de 300 m2, com uma elevada
densidade de indivíduos – entre 12000 e 15000 –, localizado no tabuleiro da
Ponte da Nossa Sra. da Ajuda, sobre solo esquelético para aí transportado (por
acção natural ou antrópica) e outro núcleo de cerca de 6 m2, de
aproximadamente 2000 indivíduos), no solo, a sul da referida Ponte.
Contudo, em 2000, durante os trabalhos de biologia
promovidos pela EDIA e executados por uma equipa do Museu e Jardim Botânico da
Universidade de Lisboa no âmbito do projecto de monitorização de plantas
prioritárias, foi descoberta mais a Sul outra população, com cerca de 1200
indivíduos – Herdade da Defesa (127 msm.), Montes Juntos, concelho do Alandroal
–, ironicamente numa localização a ser submersa pelo enchimento da albufeira.
Assim das duas populações conhecidas, uma foi sujeita a uma acção de
translocação, cujo sucesso está por aferir.
Regimes
de protecção
O Narcissus
cavanillesii está, sob a sinonímia Narcissus
humilis (Cav.) Traub., incluído nos Anexos II (espécies de interesse
comunitário cuja conservação exige a designação de zonas especiais de
conservação) e IV (espécies de interesse comunitário que exigem protecção
rigorosa) da Directiva Habitats (92/43/CEE), transposta para a ordem jurídica
interna pelo Decreto-Lei nº 140/99, de
24 de Abril.
A área de ocorrência está inserida no Sítio
Classificado da Lista Nacional Guadiana/Juromenha (código PTCON0032), área
designada através da Resolução do Conselho de Ministros nº 142/97, de 28 de
Agosto, a integrar a Rede Ecológica Europeia, conhecida como Natura 2000.
Encontra-se em preparação pela EDIA, no âmbito do
Plano de Ordenamento das Albufeiras de Alqueva e Pedrogão, um Plano de Pormenor
para a área circundante à Capela da Nossa Sra. da Ajuda. Este Plano que
pretende ordenar a zona em referência, terá obrigatoriamente em consideração a
existência do Narcissus humilis, a
proximidade à Ponte da Ajuda e o previsível incremento da afluência das
populações (sobretudo locais) ao local, sobretudo face ao espelho de água
criado pelo enchimento da albufeira.
Ameaças
à conservação
De acordo com os critérios da União Internacional
para a Conservação da Natureza (IUCN) esta espécie deverá ser classificada como
em Perigo Crítico (CR) em Portugal, visto que se não forem tomadas medidas
activas para a sua conservação é esperada a extinçõa de cerca de 80% dos seus
efectivos populacionais (Rosselló-Graell, A., Draper, D., Correia, A.I.D. e
Iriondo, J. M. 2002).
Neste momento a degradação da área de ocorrência é
a principal ameaça à sua conservação. Encontrando-se ambas as populações sob
influência da albufeira do Alqueva (com enchimento previsto para uma cota
máxima de 152 msm., eventualmente de 154 msm. e média de 147.5 msm.), tendo a
sua localização mais a Sul – Montes Juntos (127msm.) – sido submersa pelo
enchimento da albufeira do Alqueva, assume ainda mais importância a não
perturbação da população restante (a 159 msm.) por eventuais obras de
recuperação da Ponte de Nossa Sra. da Ajuda e pelos expectáveis impactes
provenientes da proximidade ao regolfo da albufeira do Alqueva, nomeadamente
face ao previsto incremento da influência antrópica.
Estudos
efectuados
A espécie foi alvo de estudo pelo Professor Carlos
Pinto Gomes (Universidade de Évora), no âmbito do projecto “Distribuição
Geográfica e Estatuto de Ameaça das Espécies da Flora a Proteger”,
co-financiado pelo fundo comunitário LIFE e pelo ICN, entre 1994 e 1996.
Tem também, desde há vários anos, sido estudado em
profundidade por uma equipa (dirigida por Antónia Rosselló-Graell e David
Draper) do Museu e Jardim Botânico da Universidade de Lisboa, no âmbito dos
trabalhos relacionados com a minimização dos impactes resultantes do
empreendimento hidroeléctrico do Alqueva.
O Narcissus
cavanillesii é potencialmente a espécie mais afectada pelo enchimento da
albufeira de Alqueva. Trata-se do único caso, de entre todo o património
natural presente na região, em que uma ausência de acções de conservação
poderia efectivamente comprometer a sobrevivência da espécie em Portugal. A
EDIA, em conjunto com o Museu e Jardim Botânico da Universidade de Lisboa e o
Departamento de Geociências da Universidade de Évora, iniciou em 2001, como
mitigação dos impactes causados pelo empreendimento hidroeléctrico do Alqueva,
o processo de translocação da população de Montes Juntos, área a inundar, para
uma nova área susceptível para a espécie, a uma cota superior.
É importante referir que a translocação de
espécies raras, ameaçadas ou em perigo, como medida de minimização, é um tópico
controverso no âmbito da conservação de plantas controversa, devendo por isso
ser entendida como um último recurso. A população translocada será agora
monitorizada durante vários anos, podendo acções correctivas serem executadas
se necessário (Rosselló-Graell, A., Draper, D., Correia, A.I.D. e Iriondo, J.
M. 2002).
Reconstrução
da Ponte da Nossa Senhora da Ajuda
Considerando que a principal população
da espécie Narcissus cavanillesii, em
Portugal, se encontra precisamente sobre o tabuleiro da Ponte da Nossa Senhora
da Ajuda e que o núcleo vizinho, embora fora do monumento, se encontra em zona
de influência de uma obra de reconstrução e que a obra decorre no Sítio
Classificado Guadiana/Juromenha (PTCON0032) constante da Lista Nacional de
Sítios (Resolução do Conselho de Ministros nº 142/97, de 28 de Agosto),
atendendo que o Instituto de Conservação
da Natureza não teve conhecimento oficial do início desta obra e que não lhe
foi solicitada a emissão do parecer
necessário (ao abrigo do Dec.-Lei nº 140/99 de 24 de Abril),
tendo em conta que a outro localização conhecida
desta espécie foi submersa pelo enchimento da albufeira do Empreendimento do
Alqueva, tendo a população sido alvo de uma operação de resgate cujo sucesso
está por aferir, e
tomando nota do
projecto de construção em execução, do seu impacte destrutivo de extrema
magnitude sobre a espécie em causa, da inexistência de medidas de minimização
consentâneas e da incapacidade de reposição da situação anterior,
tendo o Parque
Natural da Serra de S. Mamede constantado, no âmbito das suas frequentes acções
de vigilância (em conjugação com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento
Regional do Alentejo, ex-Direcção Regional do Ordenamento do Território), que
não ocorreu a suspensão dos trabalhos,
manifesta-se a
opinião que a não serem tomadas medidas preventivas, com carácter de urgência,
que impossibilitem a continuação do avanço das obras nos actuais moldes,
acontecerá a destruição do habitat da espécie e a sua consequente extinção, no
seu habitat, em Portugal.
Solicitou o Ministério dos Negócios Estrangeiros
ao ICN (em reunião, a 7 de Abril de 2003) que este não activasse um embargo
administrativo, advogando a conveniência de uma solução diplomática. Embora
considere que esta seria a solução desejável, o ICN entende que, dado o
contínuo avanço das obras, quanto mais tempo se protelar esta solução, mais
perto se estará da necessidade de proceder a um embargo evitando impactes
irremediáveis. O ICN, não podendo permitir a que as obras avancem para o
tabuleiro da Ponte ou sua vizinhança na margem direita do Guadiana, reserva-se
ao direito de agir consoante as suas competências.
Em reunião com o Instituto Português do Património
Arquitectónico foram analisadas as consequências que o enchimento da albufeira
do Alqueva terá no monumento, tendo-se verificado que o regolfo à cota média de
147.5 deixará a descoberto as ruínas dos pilares centrais da ponte (que ficarão
submersos à cota de 152) e que à cota de 154 não será submerso o tabuleiro.
Se devido à presença contínua de água na base da
Ponte, se entender como necessária alguma consolidação do monumento esta deverá
ser feita sem que o tabuleiro da ponte seja perturbado.
Os obras de consolidação nos muretes, paredes,
partes inferiores dos arcos e pilares não constituirão preocupação, desde que
salvaguardado o pisoteio ou qualquer outro impacte sobre o tabuleiro.
Deve ser levada em consideração o facto de uma
impermeabilização lateral poder tornar a ponte num depositório de água da
chuva, não só fazendo perigar a estabilidade do monumento e por consequência o
tabuleiro, como alterando as condições ecológicas no tabuleiro.
A regularização do solo (montíclos ou depressões)
existente sobre o tabuleiro da Ponte terá um significativo impacte negativo
sobre a população de Narcissus pelo que é uma acção inviável.
Também a pouca profundidade do solo despositado
sobre o tabuleiro da ponte inviabiliza possíveis acções de eliminação do
estrato herbáceo existente no tabuleiro da Ponte. Os cortes da azinheira e da
figueira enraizadas na Ponte, com posterior injecção de fitoquímicos, podem ser
efectuados, mas somente desde que não seja tentado o desenraizamento.
Atendendo a que o pequeno núcleo de Narcissus que ocorre no solo, na
vizinhança da Ponte, não será submerso pela albufeira do Alqueva, continuando
por isso viável, deve de igual modo ser poupado a qualquer tipo de perturbação.
Para além de um
incumprimento da Directiva 92/43/CEE, que conduzirá a inevitáveis sanções por
parte da União Europeia, a extinção do Narcissus
cavanillesii, ou N. humilis, com
a irremediável delapidação do património biológico e genético nacional, obrigam
a um extremo cuidado na execução de quaisquer acções que possam acarretar
impactes negativos sobre a espécie.
No dia 2 de Outubro de 2008 fui protagonista de um dos últimos actos formais no âmbito desta tragico-comédia fronteiriça em torno das esquecidas ruínas da Ponte da Ajuda.
Por indicação expressa do Ministério da Cultura português e a solicitação do MNE, desloquei-me de urgência a Madrid, onde deveria representar as autoridades portuguesas em reunião a ter lugar no Ministério das Obras Públicas y Vivienda (talvez não fosse esse o exacto nome do Ministério, pois lá como cá, tudo tem mudado à velocidade da luz neste âmbito) para apreciar uma nova proposta de de um projecto de recuperação da Ponte, encomendado pelas autoridades espanholas à luz do parecer do IPPAR de que eu fora co-autor. Tendo sido designado quase de véspera para aquele efeito, consegui ainda assim lugar no primeiro voo para Madrid, onde cheguei bastante cedo nesse dia 2 de Outubro, de tal modo que por volta das 9 horas locais (8 de Lisboa) estava já a sair da estação de Metro "Ministérios". Recebido por um contínuo, alguns minutos antes da hora aprazada para a reunião, fui conduzido a uma enorme sala de reuniões vazia que recordo através da foto que então tirei. Ali sob o "olhar" do Rei Juan Carlos numa parede, um enorme mapa da Ibéria (sem fronteira) noutra e ainda uma gigantesca planta de época, dos Palácios Reais de Aranjuez, aguardei impacientemente quase toda a manhã na mais absoluta solidão e ignorâqncia sobre o que se estava apassar. A certa altura, já desesperado pela espera, um arquitecto que conhecera de outras reuniões, desceu para me informar do que estava a acontecer. A senhora Directora Geral só nesse mesmo dia, em reunião preparatória com os autores, tivera oportunidade de ver o projecto de engenharia encomendado pelos serviços e este revelava-se de tal maneira desadequado face às condicionantes patrimoniais em causa que decidira desde logo rejeitá-lo. Em todo o caso e como naturalmente seria imperioso que me fosse dada uma qualquer explicação, grande parte da manhã, enquanto "Don Juan Carlos" olhava para mim, fora ocupada a negociar as soluções administrativas mais adequadas com vista à reformulação completa do rejeitado projecto. Perto da hora do almoço despacharam-me finalmente com a promessa de que oportunamente reuniriamos, talvez em Elvas, para finalmente apreciar um novo projecto para a urgente recuperação da Ponte Histórica da Ajuda.
Até hoje, nunca mais tive notícias desse projecto...