Sombras antigas na
arqueologia portuguesa
Muito recentemente e a propósito da indigitação para o
Conselho de Estado dos novos representantes dos partidos com assento
parlamentar, deparei numa entrevista dada ao jornal IONLINE por Domingos
Abrantes, histórico dirigente do PCP do tempo da clandestinidade, mais conhecido
pela rocambolesca fuga de Caxias no carro blindado de Salazar, (http://www.ionline.pt/316582) com uma
referencia a factos relacionados com o agente da PIDE, Farinha dos Santos,
identificado pelo entrevistado como “antigo director do Museu do Carmo”. Apesar
de imprecisões e confusões de datas na narrativa, Abrantes só pode estar a
referir-se ao arqueólogo Manuel Farinha dos Santos que, como todos os
arqueólogos da minha geração sabem, foi agente da polícia política pelo menos
até final dos anos 50, tendo mantido ligações com aquela instituição até ao 25
de Abril, como professor (de História?) da respectiva “escola”, localizada em
Sete-Rios, em instalações hoje já demolidas.
Naturalmente, hesitei um pouco em chamar este assunto para
este “blog”, não só para evitar eventuais e compreensíveis melindres de
terceiros (familiares ou discípulos próximos) mas também porque, tendo conhecido
a pessoa em causa e trabalhado num sítio a que o seu nome está associado (Gruta
do Escoural) isso me poderia limitar o direito de o fazer, pelo menos do ponto
de vista ético. Apesar das dúvidas acabei por considerar que afinal o “assunto”
existe (aí está a entrevista recente a comprová-lo, não valendo a pena esconde-lo
debaixo do tapete) e que apesar de marginal
e certamente muito sombrio, a sua clarificação sem complexos (de direita ou de
esquerda) e sem segundas intenções justicialistas, pode ter interesse para as
memórias da arqueologia portuguesa das últimas décadas do Século XX.
Conheci pessoalmente o arqueólogo Manuel Farinha dos Santos (1921-2001)
a partir do início dos anos 80, dadas as minhas funções no então IPPC. No
âmbito da preparação de uma nova publicação sobre um sítio que o mesmo estudou
(Gruta do Escoural) e a cuja descoberta em 1963 ficará para sempre associado, debrucei-me
recentemente sobre a sua obra e o seu percurso arqueológico o que me permitiu
destacar o seu papel fundamental, ainda que sob orientação do Prof. Manuel
Heleno, para o salvamento daquela Gruta então directamente ameaçada pela
laboração de uma pedreira. No entanto, deu para perceber da leitura da
documentação e da recolha de alguns testemunhos locais, que a “autoridade” que
lhe advinha da sua anterior “experiência profissional”, terá sido um factor
determinante na sua decisiva intervenção no caso do Escoural, numa operação
decidida e concretizada com rapidez, rigor e total eficácia. (“Escoural, uma gruta pré-histórica no Alentejo”,
António C. Silva, Évora, 2011) Mas, à parte essa mera conjetura, nada do
seu passado pré-arqueológico me pareceu relevante evocar nos textos que dediquei
às descobertas do Escoural. Da mesma forma, também se compreende e aceita que o
meu colega João Luis Cardoso, sucessor de Farinha dos Santos na cadeira da
Academia Portuguesa de História e seu testamenteiro arqueológico, tenha evitado
abordar aquela sua faceta nos textos biográficos que lhe dedicou após a sua
morte. Mas se compreendemos e aceitamos a omissão, já pode ser mais difícil admitir
algum enviesamento factual que parece subjacente à alusão, não explicada, à
injustiça “nunca totalmente ressarcida de todos os desgostos sofridos” resultantes
do seu afastamento de um cargo público em 1974… (Cardoso, 2001,” In Memoriam”, O Arqueólogo Português, S.IV vol. 19).
Com efeito e como também é
público, Farinha dos Santos, foi preso na sequencia do 25 de Abril, muito
possivelmente por estar ainda ligado à DGS como professor e eventualmente
indiciado por alguns factos relacionados com a sua antiga actuação como
inspector da PIDE. Mas ao contrário de muitos outros agentes, uns porque
simplesmente acabaram por não ser detidos, outros porque fugiram na primeira
oportunidade, Farinha dos Santos permaneceu em custódia durante cerca de dois
anos, tendo sido um dos últimos presos relacionados com os processos da PIDE a
ser libertado (a comunicação social da época chegou a noticiar a apresentação
de um pedido de Habeas Corpus
relacionado com a sua situação).
Mantive alguns contactos com Farinha dos Santos, alguns anos depois quando assumi responsabilidades de gestão da actividade
arqueológica no Departamento de Arqueologia do IPPC e este arqueólogo, na
sequencia da retoma de trabalhos de campo na Gruta do Escoural (1977) com Jorge
Pinho Monteiro e Mário Varela Gomes, (meus companheiros do estudo da arte
rupestre do Vale do Tejo) ali se dirigia nos anos 80 para tratar do das
autorizações para a escavação do vizinho povoado calcolítico. Recordo um homem algo abatido pelas sequelas da vida mas aparentemente pacificado com o seu
passado, falando abertamente da sua readmissão na função pública por decisão de
Vitor Alves e do Conselho da Revolução e do generoso apoio que estava a ter por
parte da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo (“comunista”, como ele então não
deixou de frisar) para as escavações do Escoural.
Não fora, pois, a entrevista de Domingos Abrantes e o tema
não me ocorreria. Ainda assim, convirá, com os poucos elementos que disponho,
corrigir e contextualizar os eventos narrados pelo agora conselheiro de Estado.
À data dos mesmos, Setembro de 1959, Farinha dos Santos, estava a terminar a
sua licenciatura em História na Faculdade de Letras certamente como aluno
“voluntário” (actual estatuto do “estudante-trabalhador”). Sabemos que atraíra
a atenção do Prof. Manuel Heleno que o convidou no final desse mesmo ano para
seu 2º Assistente na cadeira de Arqueologia. Apesar de ter regido durante
alguns anos várias cadeiras em Letras, Farinha dos Santos acabaria por optar
por carreira diferente e frequentar o curso de conservador de museus que lhe
daria acesso à direção do Panteão Nacional em 1968. Não encontro
referencias à data em que terá terminado a sua carreira como “agente ou
inspector” da PIDE. Entre 1954 e 1956, segundo João Luis Cardoso, encontra-se
na Índia Portuguesa ao serviço do Ministério do Ultramar, mas nada é nos é dito
sobre as funções aí efectivamente exercidas. De qualquer modo a referencia de
Abrantes às funções como Director do Museu do Carmo é incongruente. Farinha dos
Santos só entrou para a Associação dos Arqueólogos Portugueses em 1967, algum
tempo depois da aposentação de Manuel Heleno (que não suportava nem a Associação
nem o seu Presidente, Afonso do Paço) e apenas viria a ser responsável do
respectivo Museu (do Carmo) em 1971, mais de uma década depois destes factos. Ainda assim, pese embora a dúvida razoável quanto ao efectivo envolvimento
de Farinha dos Santos nos eventos narrados por Domingos Abrantes, existe alguma
plausibilidade nos mesmos, até pelos traços de personalidade subjacentes à
descrição. Como recorda Abrantes, perante a provocação que fizera a outro
agente sobre os recentes feitos espaciais soviéticos “o Farinha teve uma tirada à intelectual e disse: não foram os russos
nem os americanos, foi a humanidade. E o outro pide (ficou) com um olhar esbugalhado e eu safei-me de
levar umas trancadas.”
Para além deste testemunho, é também muito conhecida, dada a
autoridade política do envolvido, uma referência directa de Mário Soares à
actividade de Farinha dos Santos na polícia política e registada na edição
francesa do “Portugal Amordaçado” (“Le
Portugal bâillonné- un témoignage, Paris, 1972). Esta referencia é retomada
em obra posterior de Soares que não conheço mas que encontrei citada na
Internet: (ver aqui)
Passo a citar: “Referindo-se em Um Político Assume-se (Círculo de Leitores/Temas e
Debates, 2011) a um período de prisão sofrido em 1949, Mário Soares escreve:
“Numa fria madrugada fui interrogado na sede da PIDE por um tal Farinha Santos,
meu antigo colega na Faculdade de Letras, que era então agente qualificado da
polícia política. Brincando com uma pistola enquanto me interrogava, disse-me:
“Se disparar e o matar, nada me acontecerá. Todos dirão que disparei em
legítima defesa.” (…)” (p. 54).”
Aliás,
pesquisando esta mesma temática na INTERNET, acabei por deparar com um outro
“post” num blog abrantino com um título
curioso (“A PIDE e a Arqueologia”) mas que pouco mais adianta ao que já
conhecíamos (http://porabrantes.blogs.sapo.pt/a-pide-e-a-arqueologia-2254616).
Reafirmando que não me move qualquer inapropriada intenção de avaliação
ética da pessoa em causa, até porque não está entre nós há mais de uma década,
e muito menos qualquer descabido espírito justiceiro para factos há muito
prescritos, não posso deixar de compartilhar mais uma nota memorialista que outros colegas da minha geração recordarão, eventualmente com mais
detalhe. Em 1972 (?) no decorrer de uma das habituais e brutais “invasões” da
polícia de choque à Cidade Universitária, o nosso colega João Ludgero, já então
e apesar da juventude, um activo arqueólogo “especialista no Calcolítico” (por oposição aos colegas Paleolíticos...) ficou encurralado no Bar de Letras, tendo acabado ferido com alguma gravidade. Socorrido
e trazido em braços para fora da Faculdade por Lindley Cintra, um dos
poucos professores que se colocavam ao lado dos alunos, acabou preso pela
polícia que cercava a Faculdade. Ter-se-á entretanto formado uma teia de
cumplicidades arqueológicas, que terminou com a rápida libertação do João
Ludgero, segundo consta, graças à intervenção pessoal de Farinha dos Santos, então Presidente da Secção de Pré-história da Associação dos Arqueólogos Portugueses.
ADENDA (19 de Abril de 2017)
Graças a Gonçalo Pereira, acrescenta-se a este post um LINK directo para o Arquivo Mário Soares ("Casa Comum- Fundação Mário Soares), que dá acesso a um curioso documento, um panfleto dactilografado, anónimo e não datado, mas que pelo contexto se poderá situar no início dos anos 60 (talvez posterior a 1963, pois há já uma referencia à "arte das cavernas", especialidade que viria a dar nome a Farinha dos Santos após as descobertas do Escoural de1963 e 1964). Intitulado "Um exame de Arqueologia", nele se parodia um exame ou interrogatório feito pelo "sapientíssimo Farinha, da doutíssima PIDE", como membro de um júri presidido por Manuel Heleno (o "Porca de Murça") e coadjuvado por "sua burrência", o filósofo Moreira de Sá ("que também é da PIDE mas nunca percebeu..."). Curiosamente, no interrogatório Farinha pretende confirmar que o examinando (ou preso) é "funcionário do Neolítico" e que como tal conspira contra a "Pedra Lascada e contra o Quaternário". O exame termina com Vivas ao Paleolítico e a Salazar "o nosso Troglodita-mor". Quem escreveu o panfleto era certamente aluno de História.
Uma cena envolvendo a pistola do interrogador, parece remeter para uma descrição de um interrogatório feito a Mário Soares na António Maria Cardoso e que este cita no seu livro "Portugal Amordaçado". O autor seria alguém próximo ou conhecido de Soares?
2ª ADENDA (15 de Dezembro de 2017)
Ao folhear a mais recente obra da historiadora Irene Flenser Pimentel, deparou-se-nos entre tantas outras, uma curta resenha biográfica de Manuel Farinha dos Santos que, por uma questão de princípio, aqui transcrevo. Apenas dois comentários. Primeiro, não li a obra e portanto não estou em condições de contextualizar ou avaliar este breve Curriculum Vitae que parece bater certo, no que respeita a datas, com o que já conhecíamos da passagem de MFS pela organização em causa. A crer no entanto nas funções identificadas, MFS teria tido uma carreira meramente "administrativa" o que contrasta um pouco com alguns testemunhos acima citados, nomeadamente o de Mário Soares.
Segunda questão: o horário especial de que MFS terá beneficiado no final dos anos 50, está certamente relacionado com a frequência, enquanto aluno do curso de Histórico-filosóficas, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Farinha dos Santos termina o curso em 1959 e é imediatamente convidado para Assistente pelo Professor Manuel Heleno, altura em que pede a exoneração da PIDE. No entanto, não fará grande carreira na Faculdade, como é sabido, não tendo por isso "chegado a professor catedrático" como é sugerido na ficha. Tendo frequentado o curso de "Conservador de Museus", Farinha dos Santos, após sair da prisão em 1976, seria colocado como conservador do Panteão Nacional da Igreja de Santa Engrácia. O que parece mais estranho na ficha, é esta omitir a posterior colaboração de MFS, até ao 25 de Abril de 1974, com a escola da PIDE, localizada a Sete Rios.
ADENDA (19 de Abril de 2017)
Uma cena envolvendo a pistola do interrogador, parece remeter para uma descrição de um interrogatório feito a Mário Soares na António Maria Cardoso e que este cita no seu livro "Portugal Amordaçado". O autor seria alguém próximo ou conhecido de Soares?
2ª ADENDA (15 de Dezembro de 2017)
Segunda questão: o horário especial de que MFS terá beneficiado no final dos anos 50, está certamente relacionado com a frequência, enquanto aluno do curso de Histórico-filosóficas, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Farinha dos Santos termina o curso em 1959 e é imediatamente convidado para Assistente pelo Professor Manuel Heleno, altura em que pede a exoneração da PIDE. No entanto, não fará grande carreira na Faculdade, como é sabido, não tendo por isso "chegado a professor catedrático" como é sugerido na ficha. Tendo frequentado o curso de "Conservador de Museus", Farinha dos Santos, após sair da prisão em 1976, seria colocado como conservador do Panteão Nacional da Igreja de Santa Engrácia. O que parece mais estranho na ficha, é esta omitir a posterior colaboração de MFS, até ao 25 de Abril de 1974, com a escola da PIDE, localizada a Sete Rios.
SANTOS, MANUEL FARINHA
DOS
Ingressou na PIDE em 1947, com o posto de chefe de
brigada, depois de cumprir o serviço militar como alferes. Entre 1947 e 1948
coadjuvou os inspectores Faria Pais, Ferry Gomes e Porto Duarte, em processos
de imigração clandestina e “contra a segurança do Estado”, trabalhando nos dois
anos seguintes, sob as ordens do Capitão Neves Graça, subdirector da
subdelegação do Porto, participando na instrução de processos de emigração
clandestina e tráfico de brancas. (? sic)
Entre 1950 e 1952 coadjuvou os inspectores Barbieri Cardoso e António José
Rodrigues nos Serviços Administrativos, até ser promovido a subinspector,
chefiando os serviços marítimos do porto de Lisboa entre 1953 e 1954, ano em
que partiu em comissão para a Índia, para preparar a instalação da respectiva
delegação. Considerado um dos “intelectuais” da PIDE, ficou entre 1957 e 1958
no Gabinete de Estudos, com a função de organizar o boletim mensal dessa
polícia, coadjuvando José Aurélio Boim Falcão, à noite, no serviço de
investigação, uma vez que estava dispensado do serviço na parte da manhã por se
dedicar à arqueologia. Em 1959 pediu a exoneração da PIDE para ficar disponível
para aulas na Faculdade de Letras de Lisboa, onde terá chegado a professor
catedrático.