quinta-feira, 10 de dezembro de 2015




Guadalupe-Tourega: uma jornada memorável






Desde que o Francisco Bilou propusera à União de Freguesias da Tourega e de Guadalupe, a edição do manuscrito do Pe Manuel Vidigal, que se assumira o compromisso de convidar para a apresentação o Professor Vitor Serrão, conhecido Historiador de Arte e meu antigo colega de curso. Não foi fácil, entre tantos compromissos do Vitor encontrar uma data disponível. Mas finalmente, acabado de chegar de uma conferencia no Brasil, Guadalupe e Valverde tiveram a honra de mais uma sua visita. Naturalmente não é a primeira vez que o Vitor Serrão anda por estas paragens, que há muitos anos teve oportunidade de descobrir na companhia do saudoso Mestre Túlio Espanca e ainda recentemente por aqui andou revisitando locais que faziam parte do tema do seu mais recente livro “Arte, Religião e Imagens em Évora, no tempo do Arcebispo D.Teotónio de Bragança, 1578-1602”. Mas, numa terra patrimonialmente tão rica como esta, cada passagem pode ser oportunidade para novas recolhas, novos dados para o sempre inacabado puzzle da História. Iniciámos a memorável jornada pela visita à Igreja de Guadalupe, onde a atenta observação dos frescos (retábulo, capela mor. sacristia e nave abobadada) em conjunto com o Francisco Bilou proporcionou a Vitor Serrão novas reflexões e considerações que de imediato divulgou na sua página do Facebook e que, com a devida vénia abaixo transcrevo. Partimos depois para a Tourega, onde se nos juntou entre outros, o P. Fernando Marques, Pároco local, e por coincidência nosso antigo colega de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Curso de 1970-1975). Antes da visita à Igreja e ao seu retábulo que Vitor Serrão tanto tem elogiado, aproveitando as excelentes condições metereológicas, fomos à redescoberta dos vizinhos lugares santos da Tourega, hoje muito esquecidos e abandonados: a "Fonte Santa" e a Capela de Santa Comba, uma das mártires evocada na Tourega. Sobre estes sítios fala-nos naturalmente o texto do Sèculo XVIII agora editado e sobre o seu significado ideológico teoriza o Prof. Vitor Serrão no importante livro já referido. Tudo leva a crer que a importância que estes antigos lugares de culto adquiriram no final do século XVI, início do Século XVII, quase sempre edificados sobre vestígios da época romana que lhe davam a devida "autenticidade", fizeram parte de um programa ideológico de combate contra o paganismo e a "Reforma", decorrente das instruções concretas do Concílio de Trento (ver a este propósito http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/12/a-padroeira-dos-arqueologos-foi-no.html) Desta visita que não esqueceu a Igreja da Tourega propriamente dita e a actual Igreja Paroquial de Valverde, onde se guardam também algumas das preciosidades da Tourega, como uma antiga tábua quinhentista (muito repintada) e uma magnífica Senhora do Leite, aqui deixamos algumas imagens que incluem também a apresentação do livro, bastante concorrida, que teve lugar no Restaurante O Ricardo.


Francisco Bilou e Vitor Serrão, na Igreja de Guadalupe, 5 de Dezembro de 2015
O P. Fernando marques na Fonte Santa da Tourega
Junto às ruínas da Ermida de Santa Comba

Revisitando o retábulo da Igreja da Tourega
Na nova Paroquial de Valverde, analisando a tábua quinhentista ali guardada.



A Senhora do Leite da Tourega, guardada na Paroquial de Valverde
O Vitor Serrão fazendo a apresentação do livro "Notícias da Tourega em 1736"


A notícia no Diário do Sul



MEMÓRIA DE SÍTIO COM OS FRESCOS DE NOSSA SENHORA DE GUADALUPE
A igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, grande templo rural a cerca de 15 kms de Évora, não longe da estrada nacional 114, nasceu no ano de 1609 por esforço de um grupo de cidadãos, devotos desse culto, que a fizeram erguer, altaneira e imponente, dominando a paisagem alentejana do sítio. Esses mordomos da confraria, responsáveis da obra, que o historiador Túlio Espanca, em 1957,registou para memória futura, foram Manuel Carvalho, Mateus Dias, João da Costa e Pedro Fernandes Pichorro, e em 1615 o templo era solenemente inaugurado pelo vereador mais velho, Diogo Pereira Cogominho, depois de visita do Arcebispo D. José de Melo. Sabe-se que o historiador Manuel Severim de Faria, devoto da Senhora de Guadalupe, era um dos frequentadores do imóvel religioso. A igreja destaca-se na mancha da actual aldeia de Guadalupe: apesar de muito depauperada por obras (em 1964) que a privaram do conjunto de casario de romeiros que a envolvia, e lhe dava por certo uma consentânea nota de pitoresco, a arquitectura mantém a volumetria tridentina, de severo gosto ‘teotonino’, acaso devido ao arquitecto Pero Vaz Pereira, o construtor oficial ao serviço do Arcebispado nesses anos.
Desejo falar da pintura mural e registar as minhas notas da visita recente. Grande interesse têm esses frescos, fruto de sucessivas campanhas, a mais antiga das quais decorou a ousia da capela-mor (cerca de 1612), com os tectos da nave e presbitério, e a mais recente o tecto da sacristia (este, datado de 1639). Sabemos que o ‘retábulo fingido’ da ousia se deve ao pintor José de Escovar, o mais prolixo dos fresquistas activos no aro eborense no início do século XVII. Mas é o conjunto de murais que recobrem o presbitério que maior interesse iconográfico oferece, até por ser praticamente omisso nas descrições do templo (incluindo as do sempre atento Túlio Espanca). Esse tecto inclui nove ‘painéis’ escalonados na estrutura fresquista, com cenas de adoração e milagres de Nossa Senhora do Guadalupe, e dão ênfase a um aspecto relevante da iconografia da Senhora: a remissão dos cativos. É por isso que se vêem orantes genuflexionados com suas correntes de ferro, num outro dois fidalgos de gorjeira encanudada evocando a Virgem, e em dois outros o singular ‘milagre de Belmonte’, o que constitui presença raríssima num programa iconográfico como este.
A lenda do cativo de Belmonte (representada apenas, que eu saiba, numa tela setecentista numa igreja de Penamacor e numa tábua maneirista no Museu de Ponta Delgada) narra a aventurosa saga de Manuel, soldado natural dessa vila beirã, que foi preso pelos mouros em Argel, onde foi feito escravo por um mouro muito avaro. Não deixou nunca de invocar Nossa Senhora da Esperança para o auxiliar e, segundo narra o milagre, a Virgem apareceu ao cativo na véspera do dia de Páscoa e anunciou que iria ser brevemente liberto. De facto, a arca em cujo interior Manuel dormia acorrentado, com o mouro deitado sobre a tampa, elevou-se no ar e desapareceu acima do mar, chegando no sábado de Aleluia a Belmonte, onde a população, à hora da missa, viu chegar a arca com o cativo e também com o seu senhor, que assim se converteria ao cristianismo. Foi erguida no local uma capela dedicada a Nossa Senhora da Esperança e existe em igreja de Penamacor, como disse, uma tela do século XVIII (dada a conhecer em monografia de José Manuel Landeiro), que narra este raríssimo milagre mariano.
Também a historiadora Maria Eugénia Diaz Tenas (2007), segundo me informa Francisco Bilou, relata num artigo seu a partir das crónicas do Mosteiro de Guadalupe uma série de outros milagres alegadamente cultuados nesse mosteiro extremenho e registados pelos peregrinos portugueses que já no século XV demandavam o célebre cenóbio, todos eles ligados às curas de maleitas e à libertação de cativos cristãos. Conhece-se ainda, no tomo VI do ‘Santuário Mariano’ de Frei Agostinho de Santa Maria, uma descrição dos milagres da Senhora de Guadalupe, que é preciso analisar, e tomo nota ainda, da autoria de Pilar González Modino, de um livro recente chamado «La Virgen de Guadalupe como Redentora de Cautivos», que ajudará por certo a deslindar o complexo e raro programa iconográfico pintado na cobertura afrescada da igreja eborense.
Sobre o artista eborense que executou este tecto, em data pouco anterior a 1615, trata-se de um pintor maneirista de limitados recursos, mas com certo sabor, por certo um dos oficiais da ‘escola’ de José de Escovar, mas com estilemas diversos, e que me parece afim ao mesmo autor dos frescos da próxima igreja de São Matias e dos da igreja do Sabugueiro (Arraiolos). Pistas para desbravar neste laboratório vivo que é, sempre, o património artístico alentejano !

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