A igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, grande templo
rural a cerca de 15 kms de Évora, não longe da estrada nacional 114, nasceu no
ano de 1609 por esforço de um grupo de cidadãos, devotos desse culto, que a
fizeram erguer, altaneira e imponente, dominando a paisagem alentejana do
sítio. Esses mordomos da confraria, responsáveis da obra, que o historiador
Túlio Espanca, em 1957,registou para memória futura, foram Manuel Carvalho, Mateus
Dias, João da Costa e Pedro Fernandes Pichorro, e em 1615 o templo era
solenemente inaugurado pelo vereador mais velho, Diogo Pereira Cogominho,
depois de visita do Arcebispo D. José de Melo. Sabe-se que o historiador Manuel
Severim de Faria, devoto da Senhora de Guadalupe, era um dos frequentadores do
imóvel religioso. A igreja destaca-se na mancha da actual aldeia de Guadalupe:
apesar de muito depauperada por obras (em 1964) que a privaram do conjunto de
casario de romeiros que a envolvia, e lhe dava por certo uma consentânea nota
de pitoresco, a arquitectura mantém a volumetria tridentina, de severo gosto
‘teotonino’, acaso devido ao arquitecto Pero Vaz Pereira, o construtor oficial
ao serviço do Arcebispado nesses anos.
Desejo falar da pintura mural e registar as minhas
notas da visita recente. Grande interesse têm esses frescos, fruto de
sucessivas campanhas, a mais antiga das quais decorou a ousia da capela-mor
(cerca de 1612), com os tectos da nave e presbitério, e a mais recente o tecto
da sacristia (este, datado de 1639). Sabemos que o ‘retábulo fingido’ da ousia
se deve ao pintor José de Escovar, o mais prolixo dos fresquistas activos no
aro eborense no início do século XVII. Mas é o conjunto de murais que recobrem
o presbitério que maior interesse iconográfico oferece, até por ser
praticamente omisso nas descrições do templo (incluindo as do sempre atento
Túlio Espanca). Esse tecto inclui nove ‘painéis’ escalonados na estrutura
fresquista, com cenas de adoração e milagres de Nossa Senhora do Guadalupe, e
dão ênfase a um aspecto relevante da iconografia da Senhora: a remissão dos
cativos. É por isso que se vêem orantes genuflexionados com suas correntes de
ferro, num outro dois fidalgos de gorjeira encanudada evocando a Virgem, e em
dois outros o singular ‘milagre de Belmonte’, o que constitui presença
raríssima num programa iconográfico como este.
A lenda do cativo de Belmonte (representada apenas,
que eu saiba, numa tela setecentista numa igreja de Penamacor e numa tábua
maneirista no Museu de Ponta Delgada) narra a aventurosa saga de Manuel,
soldado natural dessa vila beirã, que foi preso pelos mouros em Argel, onde foi
feito escravo por um mouro muito avaro. Não deixou nunca de invocar Nossa
Senhora da Esperança para o auxiliar e, segundo narra o milagre, a Virgem
apareceu ao cativo na véspera do dia de Páscoa e anunciou que iria ser
brevemente liberto. De facto, a arca em cujo interior Manuel dormia
acorrentado, com o mouro deitado sobre a tampa, elevou-se no ar e desapareceu
acima do mar, chegando no sábado de Aleluia a Belmonte, onde a população, à
hora da missa, viu chegar a arca com o cativo e também com o seu senhor, que
assim se converteria ao cristianismo. Foi erguida no local uma capela dedicada
a Nossa Senhora da Esperança e existe em igreja de Penamacor, como disse, uma
tela do século XVIII (dada a conhecer em monografia de José Manuel Landeiro),
que narra este raríssimo milagre mariano.
Também a historiadora Maria Eugénia Diaz Tenas (2007),
segundo me informa Francisco Bilou, relata num artigo seu a partir das crónicas
do Mosteiro de Guadalupe uma série de outros milagres alegadamente cultuados
nesse mosteiro extremenho e registados pelos peregrinos portugueses que já no
século XV demandavam o célebre cenóbio, todos eles ligados às curas de maleitas
e à libertação de cativos cristãos. Conhece-se ainda, no tomo VI do ‘Santuário
Mariano’ de Frei Agostinho de Santa Maria, uma descrição dos milagres da
Senhora de Guadalupe, que é preciso analisar, e tomo nota ainda, da autoria de
Pilar González Modino, de um livro recente chamado «La Virgen de Guadalupe como
Redentora de Cautivos», que ajudará por certo a deslindar o complexo e raro
programa iconográfico pintado na cobertura afrescada da igreja eborense.
Sobre o artista eborense que executou este tecto, em
data pouco anterior a 1615, trata-se de um pintor maneirista de limitados
recursos, mas com certo sabor, por certo um dos oficiais da ‘escola’ de José de
Escovar, mas com estilemas diversos, e que me parece afim ao mesmo autor dos
frescos da próxima igreja de São Matias e dos da igreja do Sabugueiro
(Arraiolos). Pistas para desbravar neste laboratório vivo que é, sempre, o
património artístico alentejano !
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