sexta-feira, 11 de setembro de 2015


A coragem do Paulo Varela Gomes

Há alguns meses, um nome (Paulo Varela Gomes) e uma entrevista no Jornal de Letras (“Goa, idade da inocência”, Março de 2015), fizeram-me recuar no tempo, quase meio século. 



É que o Paulo em causa entrou no distante Outono de 1970 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para o curso de História, tal como eu mais uma centena (?) de colegas, a grande maioria raparigas, como era habitual em Letras, quase todos com 17 ou 18 anos (uns adolescentes, pelos padrões actuais). Do ponto de vista das dinâmicas de grupo, este foi certamente um curso especialmente atípico, dadas as circunstâncias do tempo. A agitação política na Faculdade era então uma realidade omnipresente, "obrigando" a frequentes visitas dos “gorilas” inicialmente destacados para pôr na ordem os colegas vizinhos de Direito ou da própria polícia de choque. Mas seria o 25 de Abril, acontecido em pleno 4º ano, com a inevitável interrupção das aulas e as alterações curriculares e administrativas que se lhe seguiram, que acabou por esfrangalhar o que restava do grupo original, encaminhando-nos nas mais variadas direcções profissionais ou políticas. O relativo insucesso das raras reuniões ou jantares do Curso 70-75, ensaiadas ao longo de quatro décadas, são certamente resultado da fragmentação precoce e inevitável dessa geração. Apesar de tudo, uma geração relativamente bem sucedida do ponto de vista profissional. De facto e ainda que as saídas de trabalho estivessem então quase exclusivamente limitadas ao ensino secundário, onde quase todos começámos, muitos acabariam por destacar-se nas mais variadas áreas relacionáveis com a História (Universidades, Museus, Arqueologia, Bibliotecas, Autarquias, etc…) tirando partido das novas necessidades sociais e culturais trazidas pela “revolução”. Pessoalmente, como vários outros colegas do curso de 70, desde cedo estava claramente embrenhado na Arqueologia, graças às descobertas do Ródão e ao envolvimento no estudo a arte rupestre do Fratel, de vários colegas deste curso, nomeadamente o Francisco Sande Lemos, do Jorge Pinho Monteiro e do António Martinho Baptista, entre outros. Demoraria ainda algum tempo, mas esse grupo a que nos habituámos a chamar “geração do Tejo”, acabaria de uma maneira ou de outra por criar e ocupar um espaço disciplinar e profissional até então inexistente, influenciando decisivamente o progresso que a Arqueologia conheceu em Portugal nas duas últimas décadas do século XX.

Uma das primeiras “vítimas” daquela fragmentação pré-25 de Abril, terá sido o próprio Paulo Varela Gomes. Apesar da grande politização estudantil, não sei se na altura todos teríamos consciência da pesada herança política daquele colega (filho de um dos conspiradores da Revolta de Beja de 1961) que já então, apesar da idade, demonstrava  um especial espirito combativo e de liderança, associada a inegáveis qualidades oratórias que o punham sempre na linha da frente da contestação. Recordo em especial, as suas intervenções muito críticas nas aulas de Expansão Portuguesa, então da responsabilidade do professor  Borges Nunes, que fazia por ignorar por completo os contributos de historiadores marginalizados pelo regime, como Vitorino Magalhães Godinho ou Borges Coelho, acabando as aulas na maior das confusões, com a saída do professor ou dos alunos e a entrada dos contínuos, alguns justa ou injustamente conhecidos como informadores da PIDE. Inevitavelmente, com o apertar da repressão que culminou com a invasão da Faculdade pela polícia de choque (evento de que recordo a enorme figura do Prof. Lindley Cintra, levando nos braços o João Ludgero, um dos nossos colegas da arqueologia, brutalmente agredido pela polícia), o Paulo Varela Gomes desapareceu da Faculdade, julgo que algures pelo 2º ano. Pessoalmente, nunca mais nos cruzámos, mas recordo que segui anos mais tarde com toda a atenção e interesse (o autor era meu colega!) os programas que fez para a RTP, numa altura em que já consolidara uma carreira de investigação no domínio da História de Arte. Há apenas um episódio anedótico neste entretanto de algumas décadas em que o seu nome, por interposta pessoa, acabou por estar presente. Fui inesperadamente chamado para a tropa no final de 1977 e, já em Mafra, no dia da incorporação, encontrei um antigo colega dos trabalhos de arqueologia do Tejo, o Mário Varela Gomes que entretanto concluíra Arquitectura. Pouca memória me ficou desse dia, para além do choque da situação em si e do extraordinário contexto espacial da mesma (a caserna que me foi adstrita era a antiga e ainda magnífica capela do hospital conventual!), mas há uma frase que recordo. Em cada sítio em que era necessário dar o nome ao cabo ou sargento de plantão, o meu inesperado companheiro de milícia, declarava alto e bom som, para que constasse, que nenhuma relação familiar o ligava ao “Coronel Varela Gomes”! De facto, vivíamos então ainda na ressaca do 25 de Novembro que pusera em causa o papel do conhecido militar no Movimento das Forças Armadas e o meu colega Mário, não queria confusões...Mas eu lembrava-me do colega Paulo e da franja loira que afastava com gestos bruscos sempre que arengava às massas estudantis...


As circunstâncias pessoais, especialmente dramáticas, que ressaltam da entrevista que comecei por referir e a posterior descoberta do texto “Morrer é mais difícil do que parece”, publicado na revista  GRANTA e que a certa altura teve grande difusão na NET, completada pela recente leitura do romance “Verão de 2012”, redigido pelo Paulo Varela Gomes em plena ressaca do diagnóstico de cancro, estão naturalmente na motivação deste testemunho em que recordo a sua coragem então demonstrada e nas actuais circunstâncias plenamente confirmada.

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