Apresentação dos 14 volumes da 2ª Série das Memórias d'Odiana
Tirando partido das fotos do meu amigo Guilherme Cardoso, e para memória futura (tanto quanto as redes sociais o venham a conservar...) aproveito para transcrever a minha intervenção.
Começo por cumprimentar a Mesa, e
desde logo o Dr. António Dieb, ilustre Presidente da Comissão de Coordenação do
Alentejo, a entidade que reconhecendo e validando o mérito da proposta conjunta
da Direcção Regional de Cultura e da EDIA, tornou possível este projecto,
garantindo o seu financiamento através do INALENTEJO.
Cumprimento também o sr. Presidente
do Conselho de Administração da EDIA, Eng José Salema, empresa pública que
desde a sua criação há duas décadas é uma referência no contexto das boas
práticas da minimização de impactos ambientais, com especial relevância no
âmbito da salvaguarda preventiva do património arqueológico. Aproveito o ensejo
para, através do Sr. Engenheiro, transmitir os meus agradecimentos aos
trabalhadores da Empresa, aos quais tantos laços de amizade me ligam, em
especial aos técnicos da área de ambiente e património, directamente envolvidos
na presente parceria.
Cumprimento também a Sra. Directora
Regional de Cultura do Alentejo, na pessoa da Dra Ana Paula Amendoeira, a minha
actual “chefe”, mas colega e amiga de longa data. O organismo que dirige desde
há um ano, é afinal o herdeiro das sucessivas estruturas desconcentradas da
Administração Pública que, desde o início dos anos 80 sempre acompanharam, na
perspectiva da salvaguarda do património cultural, o dossier Alqueva. No caso
particular deste projecto editorial, a participação da Direcção Regional foi
muito além do mero acompanhamento, obrigando ao envolvimento dos seus próprios
meios, pelo que gostaria tornar extensíveis estes agradecimentos a todos os
meus colegas, destacando em particular o Dr. Frederico Tátá, colocado
actualmente na Direcção Regional do Algarve mas que apesar disso me apoiou
neste processo até à entrega do último volume. Aproveito também a ocasião para
lembrar, o papel da anterior Directora Regional, a Prof. Aurora Carapinha que
assinou o Protocolo com a EDIA em 2010. Devo confessar que, tendo em conta as
dificuldades administrativas verdadeiramente kafkianas que foi preciso
ultrapassar, se não fosse a sua teimosia feminina, hoje não estaríamos aqui… E
já agora, falando em dificuldades, não posso deixar de louvar a empresa editora,
selecionada por concurso público muito concorrido, através do seu responsável,
o Sr Vitor Mateus, que na relação connosco e sobretudo com os autores, dos mais
tolerantes aos mais exigentes, foi sempre muito além do que o profissionalismo
e o caderno de encargos lhe exigiam.
Naturalmente agradeço também a colaboração
neste evento dos meus amigos, Doutor José d’Encarnação e Dr. Luis Raposo.
Também eles têm algo a ver com este processo Alqueva. O Zé d’Encarnação (peço
desculpa pela informalidade fruto de muitos anos de amizade e convívio
profissional) julgo que participou em 1994 em representação da Universidade de
Coimbra, numa importante reunião promovida no INA pelo Ministro Valente de
Oliveira em 1994, onde também estive em representação do IPPAR e que abriu as
portas ao projecto Arqueológico do Alqueva. Por sua vez, o Luis Raposo, foi
membro da Comissão de Acompanhamento instituída em 1997 no âmbito do Protocolo
assinado entre a EDIA e o extinto IPA, comissão que apoiou este programa
arqueológico até à conclusão da Barragem e que teve um papel fundamental para o
seu reconhecido sucesso.
Por fim um especial agradecimento
ao Museu Nacional de Arqueologia na pessoa do seu actual director, o Dr.
António Carvalho, que aceitou entusiasticamente a sugestão para que este evento,
pelo seu significado, se realizasse naquela que é verdadeiramente a “casa-mãe”
dos arqueólogos portugueses.
Exmos senhores e senhoras, caros colegas e amigos
Não é meu hábito, em ocasiões como
esta, recorrer ao apoio escrito mas, desta vez tem de ser. O assunto é-me
demasiado próximo e sensível para que não me desvie de um qualquer fio condutor
por mais largo que esta seja. Mas não será a única regra que hoje vou quebrar.
Fui eu que propus a “ordem de trabalhos” e nela competia-me evocar o Projecto
Arqueológico do Alqueva na sua fase inicial ligada à Barragem, fase agora
finalmente encerrada. Mas pensando bem, não iria fazer mais do que me repetir.
Sobre esse assunto, quase tudo aquilo que do ponto de vista factual deveria ser
registado, já está afinal editado, nomeadamente nos vários volumes da 1ª série
das Memórias d’Odiana ou no extenso “dossier Alqueva” publicado em 2002 pela
Revista Almadan.
Assim sendo, tendo em conta que
esta será talvez a minha última intervenção institucional relacionada com este
tema a que estou ligado pelo menos desde 1975, resolvi ensaiar uma abordagem
mais pessoal, revisitando algumas memórias, daquilo que, passados afinal tantos
anos, alguns dos livros agora editados me evocam
E comecemos pela“A ARTE RUPESTRE DO
GUADIANA PORTUGUÊS”, o primeiro volume, por opção editorial claramente assumida.
Num processo tão complexo como o do Alqueva mas que de uma maneira geral
conseguiu ser bastante consensual (graças a algumas lições aprendidas
anteriormente), as circunstâncias inopinadas e tardias da “descoberta da Arte
Rupestre”, representaram sempre para mim, como responsável técnico do projecto,
uma indisfarçável “pedra no sapato”. Já sobre esse tema me pronunciei em
diversos fóruns e não vale a pena regressar de novo ao assunto. Quer a rápida e
eficaz resposta institucional da EDIA à época dos eventos, a pouco mais de um
ano do fecho das comportas, quer a generosidade e qualidade das equipas
envolvidas na espinhosa missão de resgatar pelo registo sistemático, os
vestígios rupestres do Guadiana espanhol e português tinha que ter um remate
condigno que apenas a publicação científica permitiria atingir. Aproveito,
pois, para aqui reafirmar o reconhecimento pelo excelente trabalho produzido em
Espanha pelo meu colega Hipolito Collado, entretanto magnificamente publicado em
2006, na 1ª série das Memórias d’Odiana. Mas é ao António Martinho Batista, ao
André Santos e a toda a equipa do extinto Centro Nacional de Arte Rupestre, actualmente
integrada no Museu do Côa, que hoje quero prestar homenagem. Fui colega do
António desde o 1º ano da Faculdade. Aliás é talvez o primeiro colega de que me
recordo individualmente, precisamente de uma aula prática algures em finais de
1970, conduzida ao fundo desta mesma ala pelo Dr Luis de Matos em torno de uma
vitrina, modelo Manuel Heleno, cheia de pedra lascada… Poucos meses depois
fomos ambos “recrutados” para participar, com outros colegas de curso, nos
trabalhos de salvamento do complexo de arte rupestre do Vale do Tejo, nas
vésperas do enchimento da Barragem do Fratel (as Barragens perseguem-nos). O
António iniciou então uma já longa carreira inteiramente ligada ao estudo da
Arte Rupestre de que é hoje um dos mais conceituados especialistas a nível
internacional. Após o seu intenso envolvimento no processo de salvamento e
estudo da Arte Rupestre do Vale do Côa em meados dos anos 90, recordo a
generosidade e sacrifício físico (dadas as condições de trabalho) mas também
psicológico, atendendo ao ambiente de suspeição entretanto gerado por alguns
sectores, com que, sem hesitações, aceitou o convite que lhe dirigi em 2001. Com
a equipa que formara no Côa, levaria a cabo de forma absolutamente eficaz, a
prospecção, levantamento e estudo da Arte Rupestre do Guadiana, arte que aliás
ele próprio de algum modo antevira ao publicar com Manuela Martins, ainda nos
anos 70, um pequeno conjunto de gravuras descoberto nas proximidades do Pulo do
Lobo. A publicação deste volume era para ele e para mim, não apenas um
imperativo científico mas também uma questão de honra.
Se pelas razões circunstanciais que
referi, a arte rupestre deveria ser o primeiro volume a ser publicado, a ordem
cronológica, mas não só, impunha que se lhe seguisse o Paleolítico, temática a
que razões também pessoais me ligavam particularmente. De facto, desde a
Faculdade que o meu interesse por este período da Pré-história tinha sido
condicionado pelo convívio com outros colegas no âmbito de uma informal
associação de estudos (o GEPP- Grupo de Estudos do paleolítico Português com
sede neste Museu) grupo que esteve na origem dos trabalhos já referidos na
Barragem do Fratel. Foi também com uma equipa do GEPP (Luis Raposo, Francisco
Sande Lemos, João Ludgero Marques ainda como alunos da Faculdade de Letras e
sob sugestão e com o apoio do Dr José Morais Arnaud, então assistente e hoje
ilustre presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses) que na Páscoa de 1975
participei pela primeira vez em trabalhos de campo no Guadiana, já então com o
pretexto do próximo início de construção da Barragem do Alqueva. As lembranças
já são algo difusas, mas após uma passagem pela aldeia da Estrela, onde
assistimos a uma peculiar procissão dos Passos (com muitos santos e respectivos
andores mas sem padres, o que para um nativo de terras de aquém Tejo era qualquer
coisa de particularmente estranho) recordo ter estado algures num perdido fim
de estrada, sobre uma ravina da margem esquerda do Guadiana, onde o único sinal
da transfiguração anunciada era dado por uma pequena barraca à volta da qual se
acumulavam os restos de carotes, vestígios óbvios de sondagens geológicas e
única prova de que estávamos no sítio onde nasceria um quarto de século depois
o paredão da Barragem do Alqueva. Resultou também dessa expedição o
reconhecimento que para montante do Ardila e do Degebe, o panorama no que
respeitava aos vestígios do Paleolítico não seria muito diverso do observado a
jusante, por Abel Viana nos anos 40 quando acompanhara Mariano Feio no
reconhecimento dos terraços quaternários do Guadiana. Ou seja, muitos materiais
líticos à superfície dos antigos depósitos sedimentares mas de atribuição cronológica
muito imprecisa dada a falta de estratigrafias associadas. Nessa mesma
expedição, entre outros locais de potencial interesse, localizaríamos na zona
do Xerez, num corte da estrada de Monsaraz próximo da velha ponte de Mourão, um
sítio cujos materiais pareciam apontar para o Paleolítico Médio. Poucos tempo
depois eu e o Luis Raposo realizámos aí algumas sondagens e recolhas
sistemáticas de superfície cujos resultados algo inconclusivos nos ajudaram
pelo menos a reflectir sobre as limitações do recurso a modelos interpretativos
construídos apenas em dados tipológicos. Tudo isto a propósito dos resultados,
agora publicados em dois volumes, obtidos pela equipa que se ocupou do estudo do
“Paleolítico” em todo o Regolfo e que encontrou nesta mesma bacia do Xerez, um
dos seus campos mais profícuos. Tratava-se de uma equipa jovem, liderada pelo
Francisco Almeida, doutorado nos Estados Unidos e hoje a trabalhar como
arqueólogo na Austrália (sinal dos tempos) mas que contou com o apoio de
investigadores seniores, também eles de algum modo ligados ao antigo GEPP. Desde
logo da Doutora Ana Cristina Araújo, a responsável pelo exemplar estudo do
sítio mesolítico da Barca do Xerez de Baixo, um sítio especial (identificado
pelo meu antigo braço direito na EDIA, José Perdigão), que revelou vestígios de
um acampamento datado por métodos absolutos da transição entre o Paleolítico e
o Neolítico e testemunho dos últimos caçadores-recolectores do nosso
território. Por outro lado, o apoio do Doutor João Pedro Ribeiro, ex Sub-director
geral do IGESPAR, que dirigiu a escavação nos “Sapateiros”, um dos raros sítios
do Paleolítico Médio encontrado em estratigrafia e localizado junto aos pilares
da nova Ponte de Mourão, então em construção, não muito longe do local que eu e
o Luis Raposo sondáramos em 1980. Ainda uma referência a propósito da Barca do
Xerez. Tendo em conta a raridade e o significado das estruturas aí encontradas,
foi decidido antes do inevitável alagamento, proceder à remoção controlada de
uma “fatia” de um dos perfis estratigráficos mais interessantes, no qual era
possível observar os restos de uma lareira… Depois de alguns anos em armazém, a
EDIA procedeu recentemente à sua “remontagem” com fins didáticos, no átrio da
sua própria sede em Beja.
Uma das vantagens do modelo de
selecção das diferentes equipas que se candidataram em 1997 a executar os
trabalhos de minimização no regolfo de Alqueva, e que hoje seria totalmente
incompatível com as regras do Código da Contratação Pública, era a aceitação, a
par de outros critérios, do princípio da precedência científica. Daí que tenha
sido natural a escolha da equipa do Prof. Vítor Gonçalves para o estudo do
megalitismo e do povoamento neolítico da zona de Reguengos, território onde há
muito vinha desenvolvendo investigação de campo e sobre o qual tinha já então
obra publicada. A minha qualidade de seu antigo aluno na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, no entanto, nem sempre facilitou as nossas relações no
terreno enquanto representante da entidade contratante, a EDIA. Ainda hoje
recordo o formalismo com que era recebido pelas suas assistentes (as Dras Ana
Catarina Sousa, Ana Sofia Gomes e Carolina Grilo) nos diversos sítios em
escavação, arqueólogas recém-formadas, que eu não conhecia mas de quem
entretanto me viria a tornar amigo. Entre elas, recordo em particular o grande
empenho profissional da Ana Catarina, hoje Professora na Faculdade de Letras e com
quem viria muito mais tarde a trabalhar no âmbito das suas funções como
Sub-directora do IGESPAR, a qual acabou por ter um importante papel de
intermediação que se revelou crucial para a ultrapassagem de algumas dificuldades
que pareciam ameaçar a produção destas duas volumosas monografias. Os
monumentos megalíticos mais chegados ao Guadiana ou ao Degebe escavados por
esta equipa, como a Anta do Piornal, acabaram inundados ainda que protegidos da
melhor forma que sabíamos. Mas nem tudo a água cobriu. Um dos sítios escavado
pelo Professor Vitor Gonçalves, Xerez 12, que havia também sido identificado
(mais um) pelo técnico José Perdigão, viria a revelar-se particularmente
significativo atendendo à descoberta de um raríssimo conjunto de “fornos” de
argila, datados do Neolítico Antigo, milagrosamente conservados, alguns apresentando
ainda restos culinários (o que levou o Professor, com a sua conhecida veia
humorística, a falar nas origens do ensopado de borrego à alentejana). A
raridade e importância destas estruturas impuseram a tomada de medidas excepcionais
e, também neste caso pudemos contar com o apoio efectivo do Museu Nacional de
Arqueologia. Foi uma equipa desta casa que procedeu à complexa operação de
desmontagem e embalagem das referidas estruturas, hoje armazenadas nas suas reservas,
aguardando oportunidade para futura exposição.
Há alguns arqueólogos que fazem
parte obrigatória do historial do Alqueva. Entre eles, por certo, destacam-se a
Dra Joaquina Soares e o Dr. Carlos Tavares da Silva. Introdutores da
“arqueologia preventiva” profissional em Portugal nos anos 70, no contexto das
obras da Área de Sines, viriam em boa hora, a integrar a equipa
multidisciplinar que produziu um dos primeiros Estudos de Impacte Ambiental
realizados no país, precisamente o estudo de 1984/86 sobre o Empreendimento do
Alqueva, produzido pelo consórcio EGF/DRENA. Aliás a participação de uma equipa
de arqueologia nesse estudo pioneiro, com a colaboração do Eng. José Manuel
Mascarenhas da Universidade de Évora, viria a ter consequências muito para além
do Alqueva, servindo durante muitos anos de modelo teórico na elaboração do
descritor “património” destes Estudos, entretanto tornados obrigatórios. Foi
naquele âmbito que identificaram, entre muitos outros sítios inéditos, o
Povoado Calcolítico do Porto dos Carretas, sítio que viriam a escavar em
extensão, com grande minúcia e rigor e que tive oportunidade de acompanhar de
muito perto. A importância excepcional deste sítio e a dimensão dos trabalhos aí
realizados (entretanto tema da tese de doutoramento da Doutora Joaquina Soares)
acabaram por impor como opção editorial, que o volume previsto fosse
exclusivamente afeto à sua edição monográfica, resultando numa das obras
graficamente mais conseguida da colecção. Foi sacrificada, para já, a
publicação de informação sobre outros pequenos povoados da transição do
neolítico para o calcolítico que também estudaram e que esperamos possam vir a
ser oportunamente divulgados.
Se há verdadeiramente uma nova
realidade arqueológica trazida pelo projecto do Alqueva (agora falando da sua
globalidade incluindo também e em especial os perímetros de rega), é a de que
existe uma Arqueologia pré-histórica em negativo no território do Alentejo até há
poucos anos totalmente desconhecida. É certo que o António Valera, o
coordenador do volume agora na imagem, tinha integrado ainda como estudante a
equipa da minha colega Ana Carvalho Dias que nos anos 80 identificou e escavou
o povoado de fossos de Santa Vitória, próximo de Campo Maior sítio que, à época,
parecia ser uma excepção. Mas foi aqui no Alqueva, primeiro nas margens do
Guadiana mais tarde um pouco por todo o Alentejo que essa nova realidade se
começou a impor e o António acabou por se tornar um dos responsáveis, se não
mesmo o responsável, dessa verdadeira revolução epistemológica, a partir dos
trabalhos que conduziu na Margem Esquerda do Guadiana, nas escavações da
Malhada dos Mercadores ou da Julioa, na envolvente da Nova Aldeia da Luz.
Naturalmente esta realidade também está presente na margem direita, onde a
equipa dirigida por Manuel Calado identificou e escavou vários sítios com
fossos. Mas infelizmente, neste caso, os dados ainda que disponíveis nos
relatórios arquivados, continuarão para já insuficientemente publicados. Uma
pequena nota a propósito desta arqueologia de “fossos”, que tem no
extraordinário povoado dos Perdigões, próximo de Reguengos de Monsaraz, o
respectivo paradigma. Actualmente objecto de exemplar projecto de investigação
coordenado pelo próprio António Valera, este sítio, embora algo afastado do
Alqueva, teve na sua identificação, a participação da EDIA. De facto deve-se
uma equipa de prospecção liderada no terreno pelo técnico José Perdigão, a
identificação deste povoado, pouco depois de inadvertidamente que ser vítima de
uma profunda surriba para alargamento das vinhas da Herdade do Esporão.
Por razões de melhor visibilidade
topográfica, mas também por antecedentes arqueológicos regionais, (graças aos
antigos trabalhos de Pires Gonçalves em Reguengos ou de Fragoso Lima em Moura)
já havia alguma informação relevante sobre a Proto-história da bacia do
Guadiana, entretanto objecto de dois grandes projectos desenvolvidos em cada
margem durante a construção da Barragem. Infelizmente e apesar de óptimos
resultados em ambos os casos, apenas o projecto coordenado pelo Dr João
Albergaria, chegaria à publicação monográfica, com a estreita colaboração do
Dr. Samuel Melro que havia já participado nos trabalhos de campo. Aliás, quer
um quer outro arqueólogo, são veteranos destas coisas do Alqueva, ainda que em
campos diferentes. O Dr. João Albergaria, evoluiria para empresário prestador
de serviços arqueológicos, tendo naturalmente a EDIA como um dos seus clientes
(num processo evolutivo que foi transversal à generalidade das equipas envolvidas
nesta fase de trabalhos no Regolfo). O Dr. Samuel Melro, actualmente meu colega
na Direcção Regional, é o eficiente e rigoroso representante da Cultura que
desde os tempos do exIPA acompanha junto da EDIA todo o processo de arqueologia
preventiva associada ao desenvolvimento do Plano de Rega. Um detalhe muito
pessoal. Localiza-se nesta área um importante povoado fortificado
proto-histórico, o Castro dos Ratinhos, identificado nos anos 40 por Fragoso de
Lima, sítio que ficaria fora do projecto do João Albergaria por não ser
abrangido pelo Regolfo. Correspondendo a objectivos de futura valorização
patrimonial e tendo em conta a sua relação directa com as infra-estrutras da
Barragem, aí desenvolvi com a colaboração do Prof Luis Berrocal-Rangel da
Universidade Autónoma de Madrid e o total apoio da EDIA, um projecto-piloto
entre 2004 e 2007, cujos resultados seriam entretanto publicados em 2010 numa
parceria com o Museu Nacional de Arqueologia.
A importância da informação
disponível sobre a romanização deste território, balizada pela imponente
presença do Castelo da Lousa, para além de um plano específico de intervenção
neste monumento, determinou a definição de três zonas de projecto sobre esta
temática. Uma abrangendo o Alandroal e parte de Reguengos. Uma outra mais a Sul
centrada na Bacia do Degebe e finalmente, uma outra na margem esquerda (Mourão
e Moura). Considerando que os novos estudos e levantamentos efectuados na
sacrificada Lousa, sob a orientação do prof. Jorge Alarcão, foram já objecto de
extensa e cuidada publicação monográfica pelo Museu Nacional de Arte Romana de
Mérida em 2010, numa exemplar cooperação transfronteiriça apoiada pela EDIA e
que os resultados da escavação da Julioa 24 (um “casal romano” vizinho da Nova
Aldeia da Luz) foram também oportunamente publicados, podemos afirmar que com
estas duas edições coordenadas pela Doutora Conceição Lopes para a Margem
Esquerda e Sofia Gomes, Sandra Brazuna e Marta Macedo, para a margem direita, fica
à nossa disposição todo um conjunto de dados que nos facilitam uma visão global
da romanização dos territórios inundados. Cabe aqui, no entanto, uma nota de
pesar. Para o processo ficar completo, ficou-nos apenas a faltar a monografia
sobre a romanização da Bacia do Degebe, dado o infortúnio com o precoce
falecimento por doença súbita do responsável do projecto, o arqueólogo João
Carlos Faria. Apesar de, como era seu apanágio, o João Faria ter entregue
pontualmente todos os relatórios, ficou em falta o indispensável tratamento
editorial dos dados, de modo a que a monografia pudesse ser incluída na
presente série.
A proposta de formalização de 3
áreas de projecto no domínio do Medieval, em paralelo com o plano de estudo da
romanização, resultou da percepção decorrente dos dados disponíveis, que
denunciavam um modelo de povoamento disperso, reflectido numa miríade de
pequenos sítios distribuídos por todo o vale, sítios muitas vezes de difícil
classificação cronológica (o que proporcionou algumas dificuldades e confusões
no terreno) diferenciando-se entre si, normalmente apenas pela presença ou
ausência da característica “Tegula”, assumida como fóssil director da
cronologia romana. A estes três blocos de estudo, numa perspectiva
historicamente mais próxima, acrescentava-se o estudo de um importante conjunto
de atalaias identificadas ao longo da margem direita do Guadiana, relacionadas
com as guerras da restauração. Deste último projecto, pese embora a sua plena
concretização no terreno, não foi possível também chegar à fase monográfica.
Resta-nos no entanto a satisfação de termos hoje à disposição três monografias
sobre uma temática arqueológica normalmente pouco valorizada. Os coordenadores
destas equipas, merecem-me uma referencia especial. O Dr. João Marques, é actualmente
técnico da DGPC onde, a par de outras funções, acompanha junto da Autoridade do
Ambiente, com o mesmo rigor e determinação com que orientou no terreno os
trabalhos de salvamento arqueológico, os processos de AIA do Plano de Rega do
Alqueva. O Dr. Fernando Ferreira, arqueólogo que conheci nos anos 80, no âmbito
de escavações que solitariamente levava a efeito no Convento de S.Vicente de
Fora em Lisboa e que apenas viria a reencontrar nos ermos perdidos do Guadiana.
Investigador nem sempre consensual, não me ficaram quaisquer dúvidas sobre a
qualidade e o rigor do trabalho que produziu no Alqueva, embora tenhamos
discutido acaloradamnte algumas das suas conclusões teóricas que, de qualquer
modo, ele defendeu depois em Tese de Doutoramento na Universidade de Salamanca.
Uma última palavra para a Heloísa Santos e Paula Abranches, hoje empresárias da
área da arqueologia, com trabalho divido entre o Alto Alentejo e o Porto.
Coube-lhes em sorte, na margem esquerda, a descoberta de uma aldeia perdida, de
que restavam apenas algumas lendas locais. Afinal a Vila Velha existia mesmo,
com a sua Igreja, cemitério, casas e ruas…Já não foi possível (nem
interessaria) escavá-la na totalidade. Mas a equipa manteve-se no terreno até a
pequena península formada com a subida da cota do Rio ficar ameaçada de
submersão.
Por fim, e ainda que este tema
tenha já sido abordado, um último comentário a propósito do livro de fecho da
colecção. Se, pelas razões que assumi, a Arte Rupestre tinha de ser o primeiro
volume, este por diferentes motivos seria obrigatoriamente o último… No plano
arqueológico do Alqueva que elaborámos em 1997 e que o então Ministério da
Cultura aprovou através do Instituto Português de Arqueologia, previa-se no
âmbito das várias medidas de acção, todo um capítulo específico para a minimização
dos impactes arqueológicos acompanhando o desenvolvimento do Plano de Rega. Tal
necessidade decorria não apenas do senso comum, mas fazia parte das conclusões
de um novo estudo de impacto ambiental realizado em 1994, alargado à avaliação
do Plano de Rega por exigência da Comunidade Europeia e que na componente
patrimonial foi coordenado pelo Prof. João Luis Cardoso. Passo a citar um
extrato das conclusões: “Tal preocupação
é especialmente evidente nas zonas de solos de maior aptidão agrícola, que constituem
por um lado as que maiores transformações irão conhecer, decorrentes da
implantação dos sistemas de rega, sendo, por outro, como ficou demonstrado, os
mais ricos do ponto de vista arqueológico”.
Ora a realidade veio a confirmar
inteiramente, ainda que com algumas novidades e sobretudo muitas surpresas,
estas avisadas palavras, como se demonstrou pelos resultados do 4º Colóquio de
Arqueologia realizado em 2010 e no qual se fez um primeiro e alargado balanço
dos trabalhos de campo associados ao Plano de Rega.
Daí a importância de,
simbolicamente, encerrar esta colecção com a divulgação dos resultados desse
encontro, ficando este último volume como verdadeiro “interface” entre a grande
aventura dos sete anos de escavações no Vale do Guadiana, só agora
definitivamente encerrada, e a nova e não menos excitante aventura da
descoberta de uma pré-história desconhecida, a ser revelada, em negativo, ao
longo das centenas de quilómetros de canais com que se vão hoje rasgando os
barros alentejanos.
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