quinta-feira, 26 de outubro de 2017


Os "degolados de Mértola"

A propósito das novas e fantásticas descobertas no "ùltimo porto do Mediterrâneo"




A recente descoberta de um conjunto de estatuária monumental em Mértola, teve o devido e justificadíssimo destaque mediático e, ao contrário do que tantas vezes se apregoa, constitui de facto uma descoberta da máxima importância científica e cultural. Para além das ilações histórico-arqueológicas que se poderão retirar desta descoberta rara, nomeadamente sobre o estatuto e importância económica e política do “Mértola, o último porto do Mediterrâneo”*, como o apelidou Santiago Macias na sua tese de doutoramento, esta descoberta também vem trazer novos dados de cariz historiográfico-arqueológico sobre o “percurso” de outras três estátuas monumentais há muito referenciadas na Arqueologia portuguesa. Falamos dos célebres “togados” de Mértola, representações cerimoniais de importantes figuras públicas (“Vips” na linguagem contemporânea), exibindo a tradicional “toga” imperial (no caso à moda do Século I) e cujo achado em Mértola só é compreensível no contexto de um grande edifício público entretanto desaparecido. Uma dessas estátuas, felizmente encontra-se ainda em Mértola, e é peça central do chamado núcleo romano do Museu de Mértola, inaugurado em 1989 e localizado na cripta dos próprios Paços do Concelho, onde se conservam as ruínas de uma “casa romana” descobertas durante as escavações que se seguiram à reconstrução do edifício na sequencia de um grande incêndio. (Estou de algum modo ligado a estas escavações dos anos oitenta mas deixo as reminiscências para outra ocasião…). 
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* De acordo com informação que me chegou já depois de muito divulgado o presente post, a frase "Mértola, o último porto do Mediterrâneo", dever-se-á ao arqueólogo José Luis de Matos, o meu primeiro professor de Arqueologia e Pré-história na Faculdade de Letras de Lisboa, no distante ano de 1970...

O "togado" do Núcleo Romano do Museu de Mértola (foto CMM)
As duas outras estátuas estão quase há um século, no Museu Nacional de Arqueologia, aos Jerónimos, onde são peças fundamentais da coleção de estatuária romana. As condições da descoberta destas três estátuas, época, localização e contexto, permanecem ainda nebulosas, embora as recentes descobertas possam vir trazer alguma luz sobre o tema. É aceite pela historiografia, com base nas referencias de Frei Amador Arrais e André de Resende, mais tarde retomadas por Estácio da Veiga (a quem se deve a primeira grande monografia sobre as antiguidades de Mértola, ainda editada no Século XIX) que o par de estátuas do Museu Nacional de Arqueologia terá sido descoberto durante as obras de alargamento da Igreja da Misericórdia, realizadas nos finais do Século XVI. Dali, e não se sabe porque artes mágicas, as duas estátuas seriam levadas para a casa senhorial da Quinta da Amoreira da Torre, nos arredores de Montemor-o-Novo, onde ainda se encontravam nos anos 20 do século XX (pelo menos a crer na descrição, a pg. 34 do volume Guia de Portugal, de Raúl Proença, -Estremadura, Alentejo, Algarve) “Em dois nichos de casa de entrada, duas notáveis estátuas, que parecem ter vindo de Mértola no século XVII (…)” A casa pertencia no século XVII a D. Martinho de Mascarenhas, marquês de Gouveia, que, entre muitas outras prebendas e títulos, era alcaide-mor de Mértola, o que explicaria na opinião de Túlio Espanca quando faz o inventário da Quinta da Torre da Amoreira, a presença das estátuas, entre outras pedras e inscrições. O que se confirma pela referencia do Mestre Espanca é que à data em que faz o seu registo (anos quarenta ou cinquenta) as estátuas já tinham sido transferidas para Lisboa, muito provavelmente por ação do próprio Leite de Vasconcelos, director do então Museu Etnológico (hoje Museu Nacional de Arqueologia). 
"Togado" do Museu Nacional de Arqueologia (foto arquivo MNA)

O “Guia de Portugal” que citámos, regista ainda uma história saborosa sobre estas estátuas às quais, “O povo, sob a sugestão da tragédia dos Távoras, deu o nome de marquês e marquesa degolados”. Estamos de facto perante estátuas acéfalas, preparadas à boa maneira do sentido prático romano, para “mudarem de cabeça”, se necessário… E, explicando a tradição popular, um dos descendentes de D.Martinho, o 8º Duque de Aveiro, D.José de Mascarenhas,  titular da casa da Amoreira, na sequencia do atentado contra D.José I, sofreria a pena capital no patíbulo de Belém (próximo da hoje célebre Casa dos Pastéis e a poucas centenas de metros do actual paradeiro dos dois “degolados” de Mértola…). Apesar de certamente haver alguma relação entre estas estátuas e a que hoje se conserva na cripta da Câmara Municipal de Mértola, o contexto do achado é aparentemente divergente. A primeira referencia que conheço à mesma, é uma pequena nota de Abel Viana, publicada em 1950 na “sua” revista “Arquivo de Beja”. Segundo este arqueólogo minhoto, alentejano por opção (ver aqui sobre A Viana), a estátua então guardada na residência do médico Manuel Francisco Gomes, teria aparecido na encosta oriental do Castelo… De referir que só o facto desta peça ser propriedade de alguém com poder e prestígio, como era certamente o caso deste médico hoje representado na toponímia mertolense, terá evitado que a estátua tenha levado descaminho para outras paragens... Pelo menos Leite de Vasconcelos deve ter tentado levá-la para Lisboa, felizmente neste caso sem sucesso.



Nota de Abel Viana publicada no "Arquivo de Beja, nº7, 1950, sobre o togado de Mértola, que se conservou na vila alentejana.

Temos assim, actualmente, três hipóteses de localizações alternativas para este achado ocorrido em data incerta. Na encosta Oriental do Castelo de Mértola, na Misericórdia em conjunto com o par do MNA, e por fim, nas obras de construção da casa onde já se encontrava pelo menos nos anos 40 do século passado. Este edifício é hoje conhecido como “Casa Côr de Rosa” e localiza-se na Rua 5 de de Outubro, tendo sido entretanto adquirido pela Câmara Municipal de Mértola. Dois dados parecem fazer pender a balança para que esta última hipótese seja a mais correcta. Desde logo os recentíssimos achados de estatuária aqui verificados nas profundas escavações levadas a cabo pelo Campo Arqueológico de Mértola, no âmbito de um projecto de requalificação do edifício. Por outro, a relativa proximidade da zona do Largo da Misericórdia, o que cruzando os dados das presentes escavações com a informação já disponível, permite pensar na existência de um grande edifício público nesta zona da vila velha de Mértola.

Acto de assinatura do contrato de doação pela família Allen Gomes do "togado" de Mértola à Câmara Municipal de Mértola, representada pelo seu Vice-presidente João Serrão (à direita), no dia 23 de Junho de 2017 (Foto SITE_
 CMMértola)

Para finalizar, uma outra curiosidade sobre o “togado” de Mértola…Acabo de tomar conhecimento através do Site da Câmara Municipal de Mértola, que representantes da família Allen Gomes, os actuais herdeiros do Dr. Manuel Francisco Gomes, acabam de formalizar por contrato de doação assinado em 23 de Junho último, a oferta da estátua à Câmara. É o último e esclarecedor acto de um "qui pro quo" que tive oportunidade de acompanhar como Director do Departamento de Arqueologia do IPPC, no início do ano de 1986 e que passo a documentar. Tendo em contas as compreensivelmente difíceis relações entre Cláudio Torres e o então Director do Serviço Regional de Arqueologia do Sul, Caetano Mello Beirão (a que já aludi neste “blog”, uma vez que o primeiro vinha praticamente da “oposição clandestina” ao regime salazarista e o segundo se inscrevia na via do mais puro “integrismo lusitano”), era a miúde contactado directamente pelo Cláudio Torres para resolver em Lisboa questões pendentes que normalmente deveriam ser canalizadas através de Évora. É nesse contexto que se explicará um ofício que em Janeiro de 1986 o IPPC endereçou à Câmara Municipal solicitando que aquela autarquia tomasse as necessárias providências no sentido de encontrar um local de armazenamento mais condigno e adequado à conservação, para uma estátua que se encontrava em péssimas condições num armazém municipal instalado num edifício particular alugado pela autarquia. Sobre o que se passou de seguida apenas o podemos depreender de um segundo ofício, já datado de Maio do mesmo ano e em que se solicitam uma série de esclarecimentos à autarquia, uma vez que decorria um processo de averiguações na Polícia Judiciária envolvendo a referida estátua. 

Ofício de Maio de 1986 que dá conta à Câmara Municipal de Mértola da existência do processo de averiguações na Polícia Judiciária

Finalmente, em Julho chegariam ao IPPC os necessários esclarecimentos. Com efeito, a autarquia por precipitação ou excesso de zelo, antecipara-se ao indispensável processo negocial com os proprietários do edifício (herdeiros do Dr.Manuel Francisco Gomes, já então falecido) e um destes, por coincidência inspector da Polícia Judiciária, penso que à época, director da própria brigada de “Obras de Arte”, não esteve com meias medidas…e avançou com um processo de averiguações por “furto”. Naturalmente, tudo se viria a esclarecer, tendo então a estátua sido “emprestada” para figurar na exposição inaugurada dois anos depois e onde ainda hoje permanece. Aliás, entre os herdeiros que assinaram há poucos meses o contrato de doação ao município, figura o nome de Maria Judite Ramos Allen Gomes, viúva do inspector Alfredo Barreto Allen Gomes.




Resposta da C.M. de Mértola de Julho de 1986 em que se dá conta do acordo de empréstimo alcançado com a família Gomes

Descrição da estátua romana "togado-Mértiola", pela arqueóloga Susana Correia. Na hipótese de se gorarem as negociações entre a autarquia e os legítimos proprietários da estátua, os serviços estavam a preparar a sua "inventariação" administrativa, acto indispensável para precaver uma eventual transação legal da mesma para o estrangeiro.






3 comentários:

  1. Caro António Carlos:
    sobre as estátuas de Mértola encontradas no séc. XVI sabe-se que o foram nos alicerces da Igreja da Misericórdia, Resende menciona, mas Arrais afirma que as viu:
    . Em meu tempo nos fundamentos da misericordia desta Villa se acharão sinco, ou seis estatuas de mármore, que eu vi"
    (Dialogo IV, Cp. IX, p. 113); foi o Gabriel Pereira que reencontrou as duas estátuas que estão no MNA, em Montemor-o-Novo e a identificação com os marqueses é deliciosa:
    “Um certo conde se S. Cruz, comendador mór de Mertola, era amador de artes e antiguidades, e trouxe com grande despeza de Mertola para a sua quinta de Montemór, a Amoreira, onde residia habitualmente, estatuas romanas, lapides, etc.O povo de Montemór por ocacasião do atentado contra el-rei D. José, correu á quinta dos Aveiros, quebrou, destruiu brazões, moveis, etc. e decapitou o marquez e a marqueza.”
    Gabriel Pereira percorreu com o caseiro a propriedade em busca das referidas antiguidades, mas em vão, nada pôde identificar, até que o caseiro lhe pergunta:
    “Talvez queira ver as figuras do marquez e da marqueza (…) e levou-me a uma casa aonde fiquei por alguns momentos enlevado. Os marquezes decapitados são duas estatuas romanas, as mais perfeitas, mais elegantes, de mais nobre arte que temos em Portugal, duas etatuas collossaes, de mármore, sem cabeças, nem mãos, mais de 2m de altura, homem e mulher”
    Pereira, G. (1887) Antiguidades de Montemór-o-Novo. Revista de Archeologia e História, I (9), p. 129-133.
    As estátuas foram posteriormente doadas ao MNA, com publicação de louvor ao doador como Vasconcellos publicou em OAP.
    Embora isso não seja claro, o Gabriel pereira diz que a cabeça colossal de Augusto estava encaixada no corpo masculino e a da Tiche/fortuna com corona muralis na feminina.
    Creio que a mais forte possibilidade é a de que as estátuas do séc. XVI e as de agora pertençam a um mesmo contexto de amortização dos ídolos pagãos, por isso estas aparecem amontoadas numa cavidade e das outras só saibamos que apareceram juntas.
    Concordo contigo é mesmo uma descoberta absolutamente extraordinária, que vem sublinhar o que os conjuntos da Antiguidade Tardia já demonstravam: Myrtilis era mesmo uma cidade extraordinária, perdoem-me os mertolenses, muito mais importante em época romana do que alguma vez foi em período islâmico.

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    1. Obrigado Carlos, pelos teus esclarecimentos mais do que oportunos e que vêm enriquecer este meu modesto contributo que, antes de mais, visava valorizar esta descoberta excepcional. Apesar de tudo há outras duas situações, nossas contemporâneas, que se lhes comparam de algum modo: o conjunto escultórico descoberto pelo nosso amigo António Carvalho na Villa Romana da Quinta das Longas (Elvas) associado a um antigo ninfeu, e os teus achados e do Amilcar Guerra, em São Miguel da Mota, na retoma das escavações do Santuário do Endovélico que se julgava "esgotado" pelo incansável Leite de Vasconcelos.

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  2. Caro António Carlos, lembras bem o magnífico conjunto da Quinta das Longas (Elvas), um dos mais notáveis conjuntos escultóricos privados,de uma villa do território emeritense; bem como as estátuas do Santuário de Endovélico, no Alandroal. Mas isto é diferente, é "farinha de outro saco", mais fina, são esculturas de um centro urbano presumivelmente de um espaço consagrado ao culto imperial - o retrato feminino divulgado pelo vídeo da NGM parece uma Agripina (pelas feições e pelo penteado). Isto é mesmo especial, é mesmo extraordinário, a começar pela thoracata colossal (que, se calhar, deveria ser já classificado como tesouro nacional, antes mesmo de sair da terra), estamos a falar da Grande Escultura Clássica (com letra maiúscula), uma daquelas coisas que mereceria grande destaque mediático, que teria eco internacional - vamos ver se assim é com a notícia do NGM...
    Abraço

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