quinta-feira, 30 de março de 2017

O colar de Sintra


O caso é bem conhecido entre os arqueólogos mas poucos portugueses saberão que a mais fantástica joia pré-histórica encontrada em Portugal, um "torques" ou colar da Idade do Bronze (produzido há cerca de 3 000 anos) com origem bem documentada, se encontra há mais de um século no Museu Britânico, inventariada com o nº de código 1900-7-27. Em Portugal, como consolação, existe uma cópia envergonhadamente exposta no Museu Nacional de Arqueologia. Dir-se-ia que a "Xorca de Sintra", como também é conhecida, está para a arqueologia portuguesa, como o friso do Pártenon (os "mármores" que Lord Elgin levou para o Museu Britânico, no início do Século XIX) está para a arqueologia grega... Com uma grande diferença. Nunca nenhum ministro ou ministra portuguesa, ousou reclamar a sua posse, a exemplo da grande Melina Mercouri, enquanto Ministra da Cultura...

As circunstâncias que rodearam quer a descoberta quer a posterior "exportação" do colar de Sintra, são bem conhecidos porque foram à época registadas pelo próprio Leite de Vasconcelos, o fundador do MNA (então denominado Museu Etnológico) na revista "O Arqueólogo Português".  A descoberta teria acontecido por volta de 1895 no Casal de Santo Amaro, tendo chegado ao conhecimento dos meios arqueológicos por uma comunicação à Associação dos Arqueólogos na sequencia de uma notícia publicada no Século (19 de Junho desse ano). Com a cumplicidade do achador, naturalmente interessado em obter uma peritagem que  valorizasse o  artefacto para além do já seu invulgar peso em ouro (1262 gramas), Leite de Vasconcelos teve então acesso directo ao colar, tendo publicado os resultados do seu estudo no ano seguinte. Só voltamos a ter notícias sobre o colar, novamente através da pena de Leite de Vasconcelos, em curta mas indignada nota mais uma vez publicada n"O Arqueólogo Português" em 1902. Nela Leite de Vasconcelos dá conta do que considera uma verdadeira "catástrofe" nacional: a venda para um museu inglês da "Xorca de ouro de Cintra" que mais uma vez classifica como "o mais belo objecto arqueológico de ouro que existia em Portugal". Dá então a conhecer as suas próprias tentativas frustradas de adquirir a peça em 1895, altura em que o achador e detentor teria pedido uma quantia exorbitante (4 000 réis) o dobro do valor afinal conseguido com a venda para Inglaterra, negócio provavelmente concretizado em 1900 (o nº de inventário do British, parece indicar isso, embora no artigo de 1902 Leite de Vasconcelos, que desconhece ainda embora suspeite, do museu comprador, se limite a falar de um negócio já "com alguns meses".

Julgo que, para além da produção da cópia hoje exposta na "Sala dos Tesouros", em época e circunstancias que desconheço, esta lamentável história da nossa arqueologia, poucos outros episódios terá a registar. No entanto, há dias, graças mais uma vez à atenção e generosidade intelectual do editor português da National Geographic, Gonçalo Pereira, tive acesso a uma pequena notícia publicada no Diário de Notícias de 2 de Abril de 1878, que veio afinal trazer novos dados para esta história. Assim ficamos a saber que a descoberta ocorrera quase duas décadas antes da sua apresentação na Associação dos Arqueólogos, no decorrer de trabalhos numa pedreira localizada no Sítio da Riba Fria, a três quilómetros de Sintra, numa antiga propriedade do Vice-rei da Índia, D.João de Castro. Como proprietário da pedreira aparece já citado Joaquim Paulo (o futuro vendedor do colar ao British Museum) que a havia adquirido algum tempo antes ao Conde de Penamacor. Pela releitura do artigo publicado 17 anos depois no jornal "O Século", percebemos que a descoberta e o valor em causa, terá originado um longo pleito judicial, eventualmente com o anterior proprietário, só resolvido em 1895 altura em que chega ao conhecimento de Leite de Vasconcelos. (Recordemos a propósito que estes assuntos de litígios em torno de achados arqueológicos, não são assim tão raros como parece. Veja-se por exemplo:  http://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/06/afinal-ainda-ha-tesouros-para-alguns.html

A notícia encontrada pelo Gonçalo Pereira, dá-nos ainda uma outra pista interessante. De acordo com informação recolhida pelo próprio aqui http://palacio-de-sintra.blogspot.pt/2011/05/lendas-e-tradicoes-do-solar-quinta-de.html, estará associada à Quinta da Riba Fria a lenda de um tesouro escondido, trazido da Índia por um dos descendentes de D.João de Castro. Se a descoberta do colar pré-histórico deu origem à lenda, ou se pelo contrário veio contribuir para o exacerbamento da mesma, é coisa que não posso adiantar, mas de facto, a primeira notícia refere já a possibilidade do achado se tratar de "algum adorno alegórico da Índia". No entanto, lendas de tesouros perdidos  é coisa que não falta no imaginário nacional e Sintra, não é excepção, bem pelo contrário. Eu próprio, enquanto responsável pelos serviços de arqueologia do IPPC, fui testemunha há cerca de três décadas, de uma rocambolesca mas verídica história de "busca ao tesouro" num dos Palácios de Sintra que (feliz ou infelizmente segundo as perspectivas) acabou em nada...Mas sobre esse assunto (que dava quase um folhetim do tipo "Mistério do Palácio de Sintra" se ainda houvesse um Eça ou um Ramalho) envolvendo descendentes de um Engenheiro alemão ao serviço de D.Fernando II de Saxe- Coburgo-Gota, relatos da fuga da família real para o Brasil e o (histórico)  desaparecimento de grande parte das joias da corôa portuguesa, pouco poderia adiantar para além do que então, como funcionário público me foi dado observar a uma conveniente e higiénica distância.

Para documentação da triste história da xorca, torques, ou simplesmente colar de Sintra, aqui deixo os artigos de jornal citados, bem como parte das notas publicadas por Leite de Vasconcelos n'O Arqueólogo Português, felizmente hoje totalmente acessível graças à NET. Para os não arqueólogos, fica também a página do catálogo referente ao "Colar de Sintra" da grande exposição sobre a Idade do Bronze coordenada pela minha colega e amiga Susana Lopes (A Idade do Bronze em Portugal-discursos do poder)  ver aqui

Diário de Notícias, 2 Abril de 1878_ a descoberta do colar
O Século, 19 de Junho de 1895


A primeira nota de Leite de Vasconcelos (1895)



Primeira página do estudo de Leite de Vasconcelos sobre o Colar de Sintra

A indignada nota de J.L. de Vasconcelos sobre a venda para o estrangeiro do Colar de Sintra (1902)
























terça-feira, 28 de março de 2017

Antropologia,  Ortodoncia e Arqueologia

Página de um dos relatórios das campanhas de Afonso do Paço e Joaquim Bação Leal, no Castelo da Lousa (Mourão)


Tenho estado a reler, com imenso prazer (ainda que na versão espanhola que adquiri em 1998 numa banca de alfarrabista em Tarifa) uma espécie de memórias do grande arqueólogo e etnólogo André Leroi-Gourhan, um conjunto de conversas com Claude-Henri Rocquet, editadas em França em 1982 sob o título "Les racines du Monde" (Pierre Belfond). A certa altura, falando da amplitude da sua formação pluridisciplinar, das ciências naturais à etnologia, da museologia à arqueologia, Gourhan contou ao seu entrevistador, como escolhera, por acaso, o tema do seu doutoramento em ciências, "As linhas de equilíbrio mecânico do crânio nos vertebrados terrestres" (um assunto que retomaria por razões de contextualização paleo-antropológica, na sua obra clássica "Le geste et la parole"). Traduzo a justificação avançada pelo próprio:"É um tema muito ambicioso cujo estudo comecei de maneira totalmente fortuita: foi no decurso de conversas com a a minha dentista; eu era o paciente e ela, ortodontista, perguntou-me o que pensavam os antropólogos da evolução do rosto das crianças e das correções que se podem fazer utilizando o crescimento para rectificar as mandíbulas, para trás ou para diante. Discutimos algum tempo sobre isso até que um dia lhe disse: tudo bem, tratarei de ver e assim o compreender melhor"

Esta pequena e quase irrelevante história não me podia ser indiferente. Até porque, guardadas as devidas distâncias comparativas, também guardo agradáveis recordações de longas conversas com um ortodontista, no caso o Dr. Fernando Mendonça, que tive o prazer de conhecer no final dos anos 90, ao recorrer, por recomendação amiga, aos seus serviços para correção de problemas de deformação facial do meu filho David, cuja gravidade representaram claramente um desafio aos conhecimentos e experiência daquele médico. Através das conversas que então mantivémos (normalmente aos Sábados à tarde, quando o Dr. Fernando atendia no consultório da Avenida da República os clientes "da província") e que também abordaram algumas questões do foro antropológico, apercebi-me do nome do seu grande mentor, que não me era totalmente estranho e que ele considerava como o introdutor da especialidade da ortodoncia em Portugal, o Professor João Bação Leal. De facto, por coincidência, algum tempo antes havia conhecido em Mourão (onde acabara de instalar o gabinete de Arqueologia do Alqueva), o Dr. Joaquim Bação Leal que já idoso e com a ajuda de um filho me procurara para entregar alguns materiais arqueológicos que conservava em sua casa. João e Joaquim Bação Leal, percebi então, eram dois conhecidos dentistas de Lisboa, irmãos originários da pequena vila alentejana de Mourão, ambos com consultório na Avenida da Liberdade. João especializara-se no estrangeiro (países nórdicos) em ortodoncia e Joaquim, a par da sua actividade profissional como dentista, colaborara com vários arqueólogos  em trabalhos investigação, em particular com Afonso do Paço, nalguns dos quais recorreria à sua formação de antropologia física (caso do estudo de alguns dentes humanos encontrados nas sepulturas de S. Pedro do Estoril que já aqui referimos neste blog (ver necrópole de S.Pedro do Estoril ).

Mas será em particular pelos seus trabalhos no Castelo da Lousa, que o nome de Joaquim Bação Leal ficará ligado à história da Arqueologia portuguesa. Terá sido através dele que Afonso do Paço, que mantinha colaboração também com outro conhecido médico da região (José Pires Gonçalves, de Reguengos de Monsaraz), iniciou trabalhos na margem esquerda do Guadiana, estudando algumas necrópoles "argáricas" (Herdade da Queijeirinha, Folha da Palmeira) aí descobertas. Foi também pela mão de Joaquim Bação Leal que Afonso do Paço se dedicaria ao seu último grande projecto de arqueologia: o estudo e escavação do Castelo da Lousa, uma imponente estrutura romana confundida décadas antes pelo General João de Almeida, com uma "atalaia islâmica". As escavações sazonais aí iniciadas em 1962 seriam interrompidas em 1969, devido à morte de Afonso do Paço. Joaquim Bação Leal, porém, ainda realizaria por sua conta e risco mais uma campanha em 1970.

Um quarto de século depois, enquanto arqueólogo responsável pelo salvamento arqueológico no Alqueva, tive oportunidade de ali promover novos e definitivos trabalhos (o monumento está hoje debaixo de água) os quais viriam a confirmar o rigor das observações e considerações de Joaquim Bação Leal. Aqui divulgando o texto do relatório da campanha de 1970, já dirigida apenas por si, procuro render homenagem ao homem que em 1996 me procurou no escritório de Mourão, para conscienciosamente, entregar algumas pesadas "mós manuais" que, certamente pela dificuldade de transporte, não entregara em 1970 ao Dr. Farinha dos Santos, arqueólogo que na sequencia do desaparecimento de Afonso do Paço seria o representante da Administração Pública nestes trabalhos. De referir que os materiais das antigas campanhas estão depositados e parcialmente expostos no Museu de Évora enquanto os recolhidos nas campanhas promovidas pela EDIA, fazem parte do acervo do Museu da Luz (Mourão). http://pedrastalhas.blogspot.pt/2015/12/a-reinvencao-do-castelo-da-lousa-2.html












sexta-feira, 24 de março de 2017


Na Serra da Estrela em Junho de 1974



Dentro de poucas semanas estaremos a celebrar mais um aniversário do 25 de Abril (o 43º), a tal madrugada que nos abriu portas tantos anos fechadas. Há dois anos, por esta ocasião lembrei de novo o amigo e companheiro Eduardo Osório, já falecido, que nessa mesma manhã me acordou para o meu primeiro dia de liberdade ( ver o texto "Filhos da Madrugada" ). Referi então nesse texto, entre tantos outros factos comuns, a aventura vivida em Junho desse mesmo ano de 1974, na Serra da Estrela. Transcrevo parte do que escrevi há dois anos:

Em Junho de 1974, poucas semanas depois do 25 de Abril, o grupo da Amadora ainda se envolveu no que seria uma das derradeiras iniciativas em comum. Organizada pelo próprio Eduardo, cuja família era natural de Nespereira (Gouveia) onde ainda possuía uma casa meio senhorial, fizémos uma inesquecível excursão pedestre à Serra da Estrela (a segunda paixão do Eduardo, depois da Arquitectura). Durante uma semana, sob a orientação do Eduardo "perdemo-nos" pelos vales mais recônditos da Serra, acampando onde calhava, bebendo água dos ribeiros e fugindo sempre que podíamos das estradas. Ainda que já imbuídos no maior respeito pela mãe natureza e com interesses diversos que decorriam já da nossa formação universitária, pelo menos dos mais velhos, não resistimos a uma pequena tropelia, própria da juventude e dos tempos. Não muito longe da Torre, do lado do Gouveia, havia à época sobre um penedo bem destacado na paisagem, uma grande  estátua de cimento, cópia algo tosca de um dos célebres guerreiros castrejos, de que o Museu nacional de Arqueologia conserva alguns exemplares. Uma inscrição remetia a figura, para Viriato, o guerreiro lusitano, erroneamente associado por alguma historiografia tradicional, aos Montes Hermínios, ou seja à Serra da Estrela. É certo que o fascismo português, bem ao contrário do italiano, alemão ou mesmo espanhol, nunca viu na arqueologia qualquer interesse apologético especial, à parte de uma única excepção, Viriato. De tal modo que os portugueses que participaram pelo lado nacionalista, na Guerra Civil Espanhola, se denominavam "os Viriatos". Fosse por isso, ou por simples rebeldia fruto da época e da juventude, não descansámos enquanto não mandámos encosta a baixo o fraco arremedo do Viriato de cimento, que na queda se desfez em mil bocados...Aqui fica a confissão vandálica, tardia e certamente prescrita...


Sabia que guardava algures, um certo número de diapositivos obtidos nessa invulgar excursão de descoberta da Estrela, fora das estradas, já na época, algo concorridas pelo turismo. Como registo pessoal aqui deixo as fotos que consegui recuperar e que terão especial significado para aqueles que se reconhecerem nelas. Do pequeno grupo já desapareceu o Eduardo Osório, na altura ainda estudante de Arquitectura e que não sonharia sequer que um dia viria a ser Director do Parque Natural da Serra da Estrela (que nem existia ainda pois apenas seria criado em 1976), cargo que viria a exercer entre 1988 e 1996.

Primeira etapa: entre Nespereira e Gouveia





Em Gouveia

De boleia até à Torre


O Tó (António Araújo) ficou para trás


Encontros imprevistos
Já fora de estrada






Banho na Lagoa Escura (?)















quarta-feira, 22 de março de 2017


De Moscavide ao Ródão_ geografias da memória


Fachada da Igreja de Santo António de Moscavide, interior e exterior (fotos site do SNPC)































A propósito da recente passagem do 90º aniversário de Mestre Manuel Cargaleiro, Vitor Serrão, num dos seus extensos mas sempre oportunos e interessantíssimos textos com que de algum tempo a esta parte alimenta a sua página do Facebook (partilhando assim de forma generosa o seu hábito, desde os nossos tempos de faculdade, de registo em "diário" das suas múltiplas descobertas e reflexões...) referiu-se expressamente a uma das grandes obras, enquanto ceramista, daquele reputado artista : a fachada da igreja de Santo António de Moscavide. E aqui transcrevo o texto de Vítor Serrão:

PARABÉNS, MESTRE CARGALEIRO. O pintor e ceramista Manuel Cargaleiro comemorou esta semana que finda os 90 anos de existência e mais de 70 de actividade. Nascido em 1927 numa aldeiazinha tagana, Vale do Cobrão (Vila Velha de Ródão), é um dos nomes maiores da cerâmica portuguesa. Passam também sessenta anos sobre a execução do gigantesco painel cerâmico que recobre a fachada da igreja de Santo António em Moscavide, concebido em 1956, e que constitui uma das obras-primas do artista. O painel da matriz de Moscavide é um deslumbramento de sugestões tácteis e polícromas a envolver um espaço, todo um jogo de seduções cromáticas e luminosas, absolutamente original no contexto da sua época. Aliás, também a igreja, traçada em 1955 pelo arquitecto António Freitas Leal, se vinha integrar no quadro de renovação da arquitectura religiosa (de que são exemplos lisboetas as igrejas de Nossa Senhora de Fátima, de Pardal Monteiro, e de São João de Brito, em Lisboa, de Vasco de Morais Palmeiro). É o próprio Cargaleiro a afirmar a primazia da cerâmica na sua obra de pintor: «Comecei a minha vida de artista como ceramista e sou ceramista mesmo quando faço pintura a óleo. Não consigo imaginar uma coisa sem a outra. As minhas duas práticas, claro que se influenciam mutuamente. Não posso esquecer todos os meus conhecimentos sobre a história da faiança ou sobre a decoração mural quando pinto, assim como não esqueço a minha cultura pictórica quando crio em cerâmica. Está tudo muito ligado, e é isso que constitui a minha especificidade. Eu não copio os meus quadros nos azulejos: pinto diretamente sobre a faiança, sem desenho prévio, como numa tela»... Recordo, a propósito, os meus contactos com a obra do artista em Paris, nos anos setenta, as conversas frutuosas sobre arte portuguesa (e o azulejo), e a sua visita ao complexo de arte rupestre do vale do Tejo (Fratel, V,. Velha de Ródão) em 1972 ou 73, mostrando-se extasiado, junto dos jovens arqueólogos de que eu fazia parte, pelo poder criativo manifestado pelos artistas pré-históricos na sucessão de meandros, círculos, espirais e figuras incisas nas rochas das margens do Tejo. Via nesses seus antepassados artistas um idêntico fulgor na busca da criação aurática -- porque as obras de arte são trans-contextuais e assim enfrentam os tempos, com a sua carga de afectos incólume. Parabéns, mestre Cargaleiro, e votos de que continue a sua longa obra !

Que memórias me conseguiu afinal evocar este texto? Poderia desde logo começar pelo precoce reconhecimento da obra e das origens de Mestre Cargaleiro, personalidade com que nos fomos cruzando em Vila Velha de Ródão, sua terra natal. Não só nos "heróicos" anos setenta do "salvamento" da Arte Rupestre do Tejo ainda como estudantes (em que o Vítor também participou) mas também mais tarde, já nos anos oitenta, pela mão do Professor Baptista Martins, enquanto Presidente da Câmara Municipal ver aqui e que nessa qualidade tudo fez para promover a cultura na sua terra, cruzando iniciativas entre a arqueologia, a arte pré-histórica e a arte contemporânea, muitas vezes sob a presença tutelar, mesmo que à distância, da enorme figura de Cargaleiro. Mas, graças à escrita do Vítor, apercebi-me finalmente da especial ligação do Mestre ceramista a um edifício, a Igreja de Moscavide, a que tantas memórias de infância me ligam. Obra invulgar para a época, fugindo de modelos revivalistas tão comuns na construção religiosa sua contemporânea, vim assim a descobrir, que ela incluía também obras de grandes artistas contemporâneos, como as esculturas do Cristo e de Santo António de Mestre Lagoa Henriques (professor nas Belas Artes da Isabel, a minha mulher), para além da magnífica fachada de azulejos de Cargaleiro. ver texto neste site, donde retirei algumas das fotos aqui usadas Naturalmente obras de que retenho desde criança fortíssimas imagens, até pelo seu inusitado, mas cuja autoria desconhecia até hoje.

A Igreja de Moscavide na actualidade (foto do Site do SNPC)
O Santo António de Lagoa Henriques, que tantos comentários depreciativos provocava na maior parte dos paroquianos. (foto SNPC)
DE facto, as minhas mais remotas memórias, relacionam-se com a praça onde em 1956 se inaugurou esta Igreja e que eu recordo ainda sem a torre, construída mais tarde. Tinha entre 3 a 4 anos quando a minha família se mudou para Moscavide, pelo que as recordações da aldeia próxima de Torres Novas onde nasci ( Carvalhal da Aroeira ), são meros "flashes" que talvez se confundam com histórias ouvidas mais tarde. O meu pai, por razões de saúde deixara a dura vida de jornaleiro agrícola na aldeia e arranjara emprego (graças à "cunha" de um parente padre) como porteiro na Quinta dos Olivais, onde funcionava o Seminário Maior do Patriarcado de Lisboa. A minha mãe, operária na antiga fábrica de fiação e tecidos de Torres Novas (uma "privilegiada" para os padrões da época, uma vez que beneficiava já de algumas regalias impensáveis para a generalidade do "proletariado" nacional), ficara na "terra", onde criava o filho António com a ajuda de numerosas tias ainda solteiras. A construção da nova igreja de Moscavide, um bairro operário às portas de Lisboa que começava a expandir-se com a emigração interna do pós-guerra, encaixado entre quintas como a dos Olivais, Candeeiro, Ferro, e Patacão... (alguma delas onde hoje é o bairro da Portela) e a linha de caminho de ferro do Norte, seria a oportunidade que o meu pai procurava para poder reunir a família, entretanto aumentada com o nascimento da minha irmã do meio, a Isabel. O pároco designado procurava um "sacristão" e embora a paga não fosse melhor, a promessa de casa e de algum trabalho para a minha mãe na limpeza da nova igreja, terá sido decisiva para a mudança. 


O meu pai, João da Silva (1922-2012) no escritório da Igreja de Santo António de Moscavide, onde foi empregado (sacristão e escriturário do cartório) entre 1956 e 1965. A minha mãe, Conceição Sousa (1925-2007) ocupou-se no mesmo período da limpeza da nova igreja.
Eu e as minhas irmãs (a mais nova, Leonor, já nasceu em Moscavide) com uma vizinha, frente à Igreja de Santo António de Moscavide. A solidariedade entre a vizinhança, condição de sobrevivência em tempos difíceis, reflecte-se na partilha do tecido para a vestimenta feita em casa. A vizinha, animadora das festas populares na "vila", emigrou pouco tempo depois para a Venezuela com toda a família e nunca mais voltou mas manteve contactos epistolares regulares com a minha mãe.
Ainda morámos alguns meses numa casa à espera de demolição (e onde mais tarde se construiu o posto local da PSP) mas depois mudámos para uma casa ao lado da igreja, que fazia parte da "Vila Fernandes", um tradicional conjunto de casas (final do século XIX?) dando para um pátio comum, em cuja frente passava ainda a velha calçada da estrada entre Lisboa e Sacavém, memória da estrada romana que entroncaria nas ruínas de uma ponte ainda visíveis no tempo de Francisco de Holanda (Século XVI). Segundo as imagens do Google Earth de 2015, esta casa mais uma ou outra vizinhas, são tudo o que resta dessa estrutura urbana original, mas deverão estar condenadas face às intenções de renovação urbana. Com efeito, por pura coincidência, soube há um par de anos que o Atelier do Arquitecto Nuno Simões (que trabalhou comigo na requalificação das estruturas de visita da Gruta do Escoural) estava a concorrer para um "projecto de revitalização do centro urbano de Moscavide", com especial incidência neste "meu espaço de infância". 

A casa da "Vila Fernandes" na actualidade, ao lado da Igreja de Santo António de Moscavide

A proposta do Atelier do Arqto Nuno Simões (desconheço  o seguimento co "concurso") de remodelação do largo da Igreja de Moscavide

De facto a "Vila Fernandes" representa para mim a origem remota do auto-reconhecimento, um difuso espaço temporal que se perde nos confins da memória e de que persistem apenas fragmentos. Aqui conheci os meus primeiros amigos e vizinhos, gente de pobre a remediada, que passava na rua as quentes noites dos Santos Populares mas cujos rostos já são apenas bruma. Das janelas que davam para a rua, ouviam-se com muito respeitinho, o soar na calçada dos cascos dos cavalos das patrulhas nocturnas da GNR, cujos capacetes prussianos nunca mais esqueci. No Café Mimoso na esquina em frente (e que curiosamente, sessenta anos depois, ainda resiste com a mesma designação) vi televisão pela primeira vez, por certo num domingo à tarde, em programa juvenil apresentado pelo eterno Júlio Isidro. Aqui fui cedo alertado para não "dar muita confiança" a um vizinho que era "político" (uma espécie de "peçonha" para os meus pais acabados de chegar de uma aldeia onde a religião ainda presidia a todo o ciclo da vida) porque lia um jornal suspeito, o "República"... e em nossa casa, à excepção dos jornais comprados ao quilo na mercearia (para forrar gavetas) só entrava, com muito atraso, algum "Novidades" ou alguma "Flama", esquecidos na vizinha sacristia. Daqui partia diariamente, após os seis anos de idade, sozinho ou com os colegas da vizinhança, para a escola primária da "Câmara", explorando as ruas movimentadas mas seguras do bairro de Moscavide. Primeiro para a escola do Leitão, uma sala infecta e ruidosa, localizada sobre o próprio mercado. Depois, a partir da segunda classe, para uma escola "a sério", do Estado Novo, que ainda hoje subiste com outras funções mas engolida pelo caos urbanístico.


A minha segunda escola primária (1959-1962). com dois corpos bem separados, para os rapazes e raparigas não se misturarem. Aqui me preparei para o exame de admissão à escola comercial e industrial que Liceu não era para todos...
Apesar de aprovado nos exames de admissão à escola industrial ou comercial  (1962) acabei por rumar, por força de todo o contexto sócio-familiar, ao seminário de Santarém, uma saída airosa para os melhores alunos das famílias remediadas (como ainda há pouco Clara Ferreira Alves lembrou na lúcida crónica do Expresso sobre os tempos do fascismo "Tão felizes que nós éramos"). Um curso próximo do currículo liceal (mas sem equivalência já que nestas como em muitas outras coisas, o Salazar não facilitava com o seu antigo colega Cerejeira...), preparava-nos para os exames no Liceu, em especial na área das Humanidades, o que me abriu alguns anos depois, as portas da Faculdade de Letras (1970). Daí às Portas do Ródão, onde viria a descobrir na ca Arqueologia, há mais de quarenta anos, seria apenas um pequeno mas decisivo passo. assunto já várias vezes aqui abordado

segunda-feira, 20 de março de 2017

Arqueologia Urbana


A propósito da próxima realização de um Congresso Internacional em Mérida sobre Arqueologia Urbana nas cidades da Hispania Romana, o meu companheiro e amigo Francisco Sande Lemos (um dos pioneiros desta vertente tão específica da Arqueologia) recordou no Facebook a 1º Encontro Nacional de Arqueologia Urbana, realizado em Maio de 1985 em Setúbal.


Conforme consta da "nota prévia" editada com as respectivas actas publicadas em 1986 pelo Departamento de Arqueologia do IPPC (que eu então dirigia), o encontro foi organizado pelo Museu de Arqueologia e Etnografia de Setúbal, entidade que mantinha à época naquela cidade várias frentes de trabalhos arqueológicos, condicionados pelas premências de obras públicas ou privadas. Escusado será recordar, conforme se pode confirmar pela leitura das conclusões então aprovadas, que estas intervenções do Museu de Setúbal, como aliás acontecia então noutras (poucas) cidades portuguesas, decorriam quase exclusivamente da motivação cultural e científica dos arqueólogos intervenientes e, na melhor das hipóteses, de alguma boa vontade das entidades promotoras de obras e projectos públicos ou privados. Recordamos os casos de Tomar (onde escavava a Salete da Ponte), Almada (Centro de Arqueologia de Almada), Cascais (Guilherme Cardoso) ou Silves (Mário e Rosa Varela Gomes), para citarmos apenas os que apresentaram então resultados em Setúbal.



Nota prévia e conclusões do I Encontro de Arqueologia Urbana, Setúbal, 1985 (edição DA do IPPC, 1986)

A única excepção a este modelo extremamente precário, acontecia na cidade de Braga. Aí, a incontrolada expansão urbanística para zonas onde eram conhecidas importantes ruínas de Bracara Augusta, obrigara finalmente o Estado a intervir, graças também à forte pressão pública enquadrada pelo associativismo cultural emergente com o 25 de Abril. Em 1976, seria publicada legislação específica de salvaguarda e instituído o Campo Arqueológico de Bracara Augusta, enquadrado pela Universidade do Minho. Sobre o papel desta estrutura, dirigida inicialmente pelo Francisco Alves, quer para o conhecimento e salvaguarda dos vestígios romanos de Braga, quer para a transformação da própria arqueologia portuguesa a partir dos anos 80, já nos referimos várias vezes neste blog (por exemplo aqui, a propósito do Museu D.Diogo de Sousa ; ou aqui, Bracara Augusta revisitada ). Naturalmente, a intervenção em Setúbal de Alexandra Gaspar, Francisco Sande Lemos e Manuela Delgado, fazendo um balanço de quase uma década de arqueologia urbana em Braga, uma situação única a nível nacional, representou um dos momentos marcantes do Encontro. Aliás. esta reconhecida liderança destacada de Braga, faria com que um novo encontro sobre esta temática arqueológica, que teve lugar uma década depois, se viesse a realizar em Braga.





Não é pois, por acaso, que de entre as poucas intervenções de arqueologia urbana portuguesas programadas para o congresso de Mérida que terá lugar esta semana em Mérida, se destaque de novo a experiência de Braga. Manuela Martins, que após a frequência da Faculdade de Letras de Lisboa e a sua participação de campo na arqueologia do Vale do Tejo (como tantos de nós das gerações universitárias dos anos 70) faria posteriormente o seu "tirocínio" e, afinal, toda a carreira como arqueóloga no Campo Arqueológico de Bracara Augusta e na Universidade do Minho, irá apresentar em Mérida uma comunicação sobre a "Colina do Alto da Cividade", na sessão intitulada "Projectos integrais consolidados".

Merece também destaque no programa de Mérida, a intervenção de Lídia Fernandes, sobre o "Teatro romano de Olissipo", com o subtítulo de "Consolidação de um projecto de Arqueologia Urbana". A este propósito e regressando de novo ao Encontro de Setúbal de há três décadas atrás, recordamos que a arqueologia urbana de Lisboa, esteve então ainda representada por Irisalva Moita (1924-209) e Ana Cristina Leite, que ali fizeram um balanço dos conhecimentos sobre o passado arqueológico da cidade, muito limitados e condicionados pela coincidência absoluta do seu núcleo antigo com a cidade actual (situação muito diversa da de Braga, por exemplo). Irisalva Moita como já aqui recordámos ( ver aqui ) , com as suas escavações dos anos 60 do século passado na Praça da Figueira e no Teatro Romano, ficará como a pioneira da arqueologia urbana em Portugal, tendo honrado o encontro de Setúbal com a sua presença e o seu nome. Naturalmente, não faltou à chamada de Setúbal, o projecto de intervenção na "Casa dos Bicos" que, como é geralmente reconhecido, trouxe de novo no início dos anos 80, o interesse da Arqueologia pelo subsolo urbano de Lisboa . Quer o contexto geral da intervenção da Arqueologia no projecto de recuperação do emblemático edifício do Campo das Cebolas ("mais consentida do que desejada", porque afinal, a recuperação se enquadrava na XVII exposição europeia de Cultura...), quer sobretudo as difíceis condições operacionais e logísticas em que os arqueólogos, coordenados pelo Clementino Amaro, tiveram de intervir na obra, são bem destacadas no artigo publicado nas Actas de 1986. Felizmente a arqueologia urbana em Lisboa evoluíu desde então de forma extraordinária (também nos aspectos logístico-operacionais) e a cidade, nomeadamente o seu centro histórico conta hoje com várias "janelas museológicas" sobre o seu passado mais remoto, destacando-se para além do Museu e ruínas do Teatro Romano, o renovado núcleo arqueológico da Casa dos Bicos, as Ruínas romanas da Rua da Prata (Fundação Millenium), a zona arqueológica do Castelo, etc...esperando-se que no anunciado projecto de recuperação do Claustro da Sé, também venha a ser considerada a musealização, pelo menos parcial, das estruturas aí escavadas durante largos anos.