terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Regresso aos Capuchos e à Ponta do Cabedelo






No último fim de semana o Coro Eborae Musica (agremiação musical dedicada sobretudo à divulgação da tradição musical barroca da Sé de Évora e que integro há alguns anos) andou praticamente em tournée. Começou na tarde de Sexta-feira (16 Dezembro 2016) com uma intervenção na Câmara Municipal de Évora, por ocasião do 110 aniversário do nascimento de Fernando Lopes Graça, compositor sempre presente nos reportórios do Eborae Musica e de quase todos os Coros nacionais. Seguiu-se nessa mesma noite um concerto inteiramente dedicado à obra de Manuel Cardoso na matriz de Fronteira, para encerramento das comemorações  dos 450 anos do nascimento daquele compositor, um dos grandes mestres da Escola da Sé de Évora. No sábado voltámos à estrada, para um duplo concerto de Natal. Primeiro no Convento dos Capuchos, Almada, depois na Igreja de Santiago em Alcácer do Sal. Finalmente, no domingo 18, encerrámos esta maratona musical com o Concerto final do Ciclo Música de Inverno, na Igreja dos Remédios em Évora, também dedicado ao Natal.


Detalhes da folha de sala do concerto dos Capuchos


Pessoalmente e por razões várias tocou-me especialmente o regresso aos Capuchos e ao seu recuperado "Convento", hoje transformado em activo "centro cultural" gerido pelo município  de Almada depois de adquirido em avançada ruína em 1952. De facto ligam-me a este local antigas memórias familiares com quase meio século, naturalmente ligadas ao veraneio na vizinha Caparica.

A galilé da Igreja do Convento dos Capuchos, em foto do album de família, datada de Agosto de 1972

 Mas, o motivo principal deste "post" são algumas referências arqueológicas com algum significado indissociáveis do topónimo "Capuchos". Para além de ter chegado a funcionar no Convento nos anos 80 uma estrutura arqueológica municipal dinamizada pelo "Centro de Arqueologia de Almada" (cheguei aqui a participar em encontros promovidos por aquela Associação), o retorno a este lugar trouxe-me à memória um significativo sítio arqueológico, hoje quase esquecido. Refiro-me à Ponta do Cabedelo,  onde nos anos 40 Henri Breuil (na sua estadia em Portugal, durante a II Guerra Mundial), Zbyszewski, Afonso do Paço e o inevitável Maxime Vaultier, o dono do automóvel, recolheram abundantes materiais líticos então classificados como "Languedocenses" (conceiro introduzido em França/Languedoc pelo próprio Breuil) e classificados genericamente como Paleolíticos.  sobre Vaultier, ver . Mas o que trouxe alguma notoriedade a este local, seria um artigo publicado uma década depois no Arqueólogo Português (2ª série, vol.1) por Bandeira Ferrreira  aceder aqui ao texto em PDF . Este arqueólogo não chegou  fazer escavações, mas aí recolheu novos materiais no início os anos 50, incluindo também numerosos fragmentos de cerâmica pré-histórica. Este facto motivou em Bandeira Ferreira uma importante reflexão sobre a identidade cronológico-cultural do chamado "Languedocense", uma indústria essencialmente produzida a partir dos seixos rolados, matéria prima abundante nos antigos terraços marítimos ou fluviais. Afrontando corajosamente a "autoridade" de Breuil e de Zbyszewski, Bandeira Ferreira refere em nota de pé de página que, a frescura do talhe de muitas peças ditas "Languedocenses", permite colocar a hipótese de elas serem contemporâneas dos fragmentos cerâmicos ali recolhidos e portanto post-paleolíticos. E refere em apoio desta tese, a descoberta de "picos asturienses", uma indústria lítica caracterizada no Noroeste Ibérico aparentada com o "Languedocense", em estações da Idade dos Metais. 

Esta problemática oportunamente abordada por Bandeira Ferreira, viria mais tarde, anos 70, a ser aprofundada pelos resultados de escavações de Luis Raposo e eu próprio, nas margens do Guadiana (Xerez de Baixo), numa zona hoje submersa pela Barragem do Alqueva. A recolha de materiais tipicamente "languedocenses" em níveis neolíticos, esteve na origem de vários trabalhos que viríamos a publicar nas revistas "Setúbal Arqueológica" e "O Arqueólogo português".  Hoje, embora o assunto possa naturalmente continuar a justificar alguma atenção, sobretudo após os trabalhos sistemáticos realizados nas margens do Guadiana, no âmbito do Alqueva, já ninguém se referirá ao "Languedocese" como uma entidade de base cronológico-cultural. Estas indústrias sobre seixos agora normalmente apelidadas de "macrolíticas", na falta de melhor expressão, e parecem corresponder essencialmente a um padrão de exploração tecnológica expedita da abundante matéria prima (seixos rolados) existentes em zonas de antigos terraços fluviais ou marítimos. Parecendo surgir no final do Paleolítico (Epipaleolítico), há cerca de 10 000 anos, esta técnica de trabalho da pedra, perduraria no tempo. Leite de Vasconcelos ainda observou pescadores que nas praias portuguesas, fabricavam "pesos para as suas redes", lascando seixos rolados...

Apesar da sua importância, porém, a Ponta do Cabedelo (tanto quanto eu saiba) nunca foi objecto de escavações e desconheço mesmo a sua actual situação, embora a localização em plena arriba fóssil da Caparica, possa favorecer a sua salvaguarda. No entanto, o Centro de Arqueologia de Almada viria a realizar uma intervenção de emergência no final dos anos 70, junto ao Miradouro dos Capuchos, julgo que motivada por obras de arranjo dos acessos. Ainda que, muito provavelmente ambos os sítios estejam correlacionados, a Carta Arqueológica do Distrito de Setúbal e a base de dados "ENDOVÉLICO" identificam este último como uma nova estação, o "Miradouro dos Capuchos". Também aqui, a par dos abundantes materiais líticos "de técnica languedocense" foi recolhida cerâmica "Campaniforme" (final do Calcolítico), confirmando a justeza das precoces reflexões de Bandeira Ferreira.


A publicação da Carta Arqueológica do Distrito de Setúbal, uma edição da Associação de Municípios do Distrito de Setúbal de 1993, e na qual houve uma muito significativa participação do Departamento de Arqueologia do IPPC, iniciada ainda sob a minha direção e continuada pelo meu sucessor Fernando Real. Pelo Departamento colaboraram activamente na recolha e tratamento dos dados, o malogrado Carlos Jorge Ferreira e Fernando Severino Lourenço, aposentado há alguns anos.


A localização da Ponta do Cabedelo e do Miradouro dos Capuchos, segundo a Carta Arqueológica do Distrito de Setúbal


Cerâmica campaniforme do "Miradouro dos Capuchos", publicada por Thomas Bubner em 1979. De referir que Bandeira Ferreira havia já recolhido na "Ponta do Cabedelo" e publicado no artigo citado, cerâmica campaniforme





sexta-feira, 16 de dezembro de 2016


Tourega, património em meio rural

Exposição na Igreja do Salvador, Évora


Sem grandes pretensões e procurando apenas dar continuidade ao programa de divulgação e de envolvimento da comunidade local na salvaguarda e valorização do património cultural de Valverde e Guadalupe, a Direção Regional de Cultura do Alentejo, com a colaboração dos restantes parceiros (União de Freguesias, Paróquia e Câmara Municipal), organizou uma pequena exposição sobre os alguns bens móveis (imagens religiosas) da Igreja da Tourega, que foram objecto de conservação no âmbito deste projecto "piloto".

A mostra que irá estar patente ao público durante a época natalícia e o próximo mês de Janeiro, pode a partir de ontem (15 de Dezembro de 2016) ser visitada na lindíssima igreja do Salvador, na Praça do Sertório, em Évora. No acto da sua inauguração, para além das palavras de circunstância dos representantes das várias instituições, nomeadamente da Directora Regional de Cultura, Ana Paula Amendoeira, tivémos o grato prazer de poder escutar algumas modas de Cante Alentejano, proporcionadas pelas extraordinárias vozes do Grupo Coral de São Brás do Regedouro (pequena aldeia da freguesia, localizada entre a Tourega e as Alcáçovas), muito valorizadas pelas excelentes condições acústicas da Igreja do Salvador.

Deste evento simples mas pleno de significado, deixamos para registo algumas imagens bem como o LINK https://www.youtube.com/watch?v=fdzekVy4h9o&feature=share para uma das modas ontem ouvidas.

Como forma de documentação e divulgação para aqueles que não tiverem oportunidade de visitar a exposição, aqui deixamos também os "posters" e respectivos textos presentes na Igreja do Salvador.




















O SÍTIO
“É esta freguesia das mais antigas e a mais nobre do termo da cidade de Évora”
P. Manuel Vidigal (1736)
Perdem-se no tempo as origens da Tourega.
A proximidade à via de Ebora a Salatia (Alcácer do Sal), a abundância de águas, a qualidade dos solos ou a amenidade do clima remetem-nos, pelo menos, para a colonização romana.
Desconhecemos o fundamento das lendas que colocam neste local (Cova dos Mártires) os primeiros martírios cristãos, ainda em época romana. No entanto, as ruínas de uma antiga capela permitem supor a continuidade de ocupação deste local para além do final do Império Romano.
Mas a tradição manteve-se, explicando a fundação de uma nova igreja no Século XV, ainda hoje e apesar das muitas transformações, a matriz da paróquia da Tourega. Outras construções anexas, algumas muito arruinadas, testemunham a importância social deste local como centro religioso para as comunidades vizinhas, confirmado ainda no Século XIX com a construção do cemitério da freguesia.
O represamento das águas da Ribeira pela Barragem do Barrocal, já em pleno Século XX, transformou a paisagem envolvente mas trouxe outros atrativos à Tourega, enquanto local de lazer.
Hoje, tal como tantos outros sítios por todo o Alentejo, a Tourega agoniza como espaço humanizado.
A valorização das suas “memórias”, poderá propiciar-lhe uma nova, ainda que diferente vida?





AS RAÍZES ROMANAS
“Mostram hoje estas minas que foram antigamente lagos ou tanques de banhos dos que usaram os Romanos”
P. Manuel Vidigal (1736)
As mais antigas referencias escritas aos vestígios romanos da Tourega, remontam ao Século XVI, quando André de Resende fala de uma lápide que estaria na Igreja. Mas o reconhecimento das ruínas era anterior, explicando a origem da tradição martirológica do local.
A lápide funerária, hoje no Museu de Évora, foi recolhida no início do Século XIX, por Frei Manuel do Cenáculo, arcebispo de Évora e amante de antiguidades. A inscrição nela gravada, é dedicada por uma dama romana, aos filhos e ao marido Quinto Junio Maximo, um alto funcionário do Império cuja “villa” (casa de campo) se localizava na Tourega.
A dimensão das “termas” ou “banhos”, a parte melhor estudada e conservada destas ruínas, fazem supor a existência de uma grande casa agrícola, condizente com o elevado estatuto social dos proprietários.
Estas ruínas arqueológicas foram objeto de um programa de escavações conduzido nos anos 80 e 90 do século passado. Posteriormente a Câmara Municipal de Évora promoveu a respetiva “musealização”. Apesar de evidentes problemas de conservação, estas ruínas romanas são atualmente as únicas visitáveis no meio rural de Évora.





A TRADIÇÃO RELIGIOSA
“Foi esta Senhora da Gloria nos séculos antigos milagrosa donde concorriam romeiros de toda a parte do Alentejo”
P. Manuel Vidigal (1736)


A Igreja Matriz da Tourega remonta ao Século XV mas foi remodelada no final do Século XVI por iniciativa do Arcebispo de Évora, D. Teotónio de Bragança (1578-1602). A capela-mor recebeu então uma cobertura semi-esférica, com decoração de estuque, e um belíssimo retábulo de madeira lavrada com nove pinturas coevas.
O interesse pela Tourega de D. Teotónio e do seu antecessor Cardeal D. Henrique (1574-78), fundador do vizinho Convento do Bom Jesus de Valverde (Mitra), obedecia a um programa apologético da igreja eborense, legitimado pela presença das antiguidades romanas, assumidas como provas das lendas fundacionais do próprio Arcebispado. Os vestígios romanos, a par das ruínas da Ermida e da Fonte Santa, davam corpo às narrativas que colocavam nestas paragens os martírios de São Jordão, segundo Bispo de Évora e sucessor de São Manços, e das suas irmãs Santa Comba e Santa Inominata.
A Tourega ganharia então um estatuto especial como centro de concorrida devoção, centrada sobretudo na sua Fonte Santa, a “Cova dos Mártires”, a cujas águas eram atribuídas propriedades curativas.
No Século XIX, apesar da crescente perda de importância face à emergência de outros cultos, como a Senhora d’Aires, a Tourega manteve o estatuto paroquial, confirmado pela construção do cemitério.


Desta antiga e forte tradição religiosa, edificadas que foram no final do Século XX, uma nova igreja e um novo cemitério em Valverde, o povoado que cresceu à sombra da “Escola Agrícola da Mitra”, resta hoje apenas a antiga fama, evocada anualmente pela “missa de finados”.




TOUREGA_ PRESENTE E FUTURO
“É possível e desejável transformar o sítio da Tourega, outrora aprazível e habitado, num polo de visita turístico-cultural no contexto das rotas patrimoniais eborenses”
Prof. Vítor Serrão (2015)

A Tourega como sítio religioso, já não tem futuro, sobretudo a partir do momento em que o Cemitério também perder a sua função. Se a queremos preservar como “memória e património”, teremos de encontrar-lhe outros destinos.
Atualmente, ainda que conjugando boas vontades de vários parceiros (Junta de Freguesia, Paróquia, Câmara Municipal e Direção Regional de Cultura), as intenções são limitadas:
- estabilizar e conservar o património mais sensível da Igreja (imagens, retábulo, pinturas);
- manter limpas as ruínas romanas;
- divulgar a importância cultural deste património, através de iniciativas que envolvam a comunidade local;

Mas apenas um plano de recuperação do conjunto patrimonial e paisagístico da Tourega, integrado numa estratégia sustentável de valorização do património rural eborense, poderá salvar a Tourega do destino de outros núcleos semelhantes, hoje irremediavelmente perdidos:

- recuperação arquitectónica da Igreja Matriz e reintegração do seu património móvel;
- conservação, restauro e interpretação in situ das ruínas da Villa Romana da Tourega;
- estudo, consolidação e interpretação in situ das ruínas da Ermida de Sta Comba e da Fonte Santa;
- melhoria das condições da “morada” anexa à igreja, favorecendo a continuidade da sua habitabilidade, como condição fundamental de sustentabilidade do sítio;

- programa de arquitetura paisagista e valorização cultural, para o conjunto patrimonial da Tourega, prevendo áreas de estacionamento e de lazer; percursos de acesso às diversas ruínas e ao plano de água; núcleo interpretativo na Igreja;

terça-feira, 13 de dezembro de 2016


 Caetano Mello Beirão (1923-1991). 
Nos 25 anos do seu desaparecimento

Caetano Beirão, à esquerda com Susana Correia, acompanha trabalhos de escavação em Garvão.


Apesar de óbvia, tendemos a ignorar a evidência... mas certas circunstancias ou factos logo nos recordam que o envelhecimento tem importantes efeitos de natureza psicológica, nomeadamente sobre a nossa percepção da "velocidade" do tempo. E de facto, ao deparar recentemente com alguns "recorte"s datados de Outubro de 1991 entre os meus papéis, tomei consciência que haviam já (!) passado 25 anos (um quarto de século, uma quase eternidade quando se é jovem) desde o falecimento do arqueólogo Caetano Mello Beirão, uma figura determinante para a Arqueologia do Sul nos anos 80 do século passado. 

Quis confirmar a data exacta da sua morte, ocorrida na Alemanha no decurso de uma cirurgia arriscada, mas não encontrei dados sobre o óbito, mesmo na Internet, onde julgamos estar tudo. Infelizmente,  até "O Arqueólogo Português" deixou passar a oportunidade de, em devido tempo, publicar a mais que justificada nota obituária, até porque Beirão chegou a integrar, ainda que fugazmente, uma comissão directiva do Museu Nacional de Arqueologia. Sei no entanto de fonte segura que tal lapso estará em vias de ser reparado pelo Museu. 

Embora me pareça que a referida omissão não tenha sido propositada, também é verdade que Caetano Mello Beirão (CMB) estava longe de ser uma figura consensual no meio arqueológico. Desde logo porque era de algum modo um "outsider" ou pelo menos "uma vocação tardia". Embora até aos anos 80 fosse comum em Portugal, a Arqueologia ser praticada por profissionais de outras áreas (CMB era formado em Direito e exercera a advocacia), já não era tão habitual, até porque não existia a profissão de Arqueólogo, os "recém-chegados" assumirem a mudança de carreira, como viria a acontecer com CMB a partir de final dos anos 70. Por outro lado também pesaria na apreciação dos seus pares, sobretudo dos mais jovens, o seu pesado passado político-ideológico, assumidamente de extrema-direita (ou mesmo "fascista", já que CMB não tinha medo das palavras). Aliás, as poucas referencias que é possível encontrar hoje na NET sobre CMB, nomeadamente em "sites nacionalistas", valorizam em particular esse aspecto, confundido-o por vezes com o pai, também Caetano Beirão, conhecida figura do "Integralismo Lusitano" de António Sardinha. É verdade que CMB nunca procurou escamotear esse passado e, ocasionalmente, sobretudo quando na companhia de jovens colegas de "esquerda", até se vangloriava dele, contando saborosas histórias do tempo em que fora "secretário particular de Salazar" (?). Como a daquela recepção oficial dada pelo Presidente do Conselho ao Corpo Diplomático no Palácio da Vila em Sintra, em período de deterioração das relações oficiais com a Santa Sé, talvez por ocasião do exílio forçado do Bispo do Porto (1959). As ordens que tinha era evitar, por qualquer meio, que o Núncio Apostólico chegasse à fala com Salazar e Beirão gabava-se de ter evitado o indesejado encontro de forma pouco "canónica", agarrando violentamente a sotaina do Núncio...

Mas, na minha modesta opinião, o seu posicionamento político-ideológico, pouco ou nenhuma influência terá tido na sua, apesar de tudo, curta carreira arqueológica (1969-1991) ou nas atitudes ou decisões que tomou enquanto dirigente.  Entre os seus amigos e colaboradores mais próximos encontrava-se gente dos mais variados quadrantes políticos (até da "extrema-esquerda")  e se é verdade que nalguns casos pode ter havido alguma animosidade da sua parte (estou a pensar por exemplo nas sempre difíceis relações com o Campo Arqueológico de Mértola, dirigido por Cláudio Torres) pessoalmente e pelos dados que tinha dos contactos profissionais com CMB, julgo que tal atitude derivava mais de questões de relacionamento pessoal, muitas vezes condicionadas ou influencias pelas suas relações com terceiros, do que de preconceitos ideológicos. Aliás, se algum defeito poderíamos assacar a CMB enquanto "funcionário/arqueólogo", seria precisamente o de, na sua actuação técnico-administrativa, privilegiar em excesso as relações de amizade. Essa circunstancia vir-lhe-ia a causar alguns dissabores nos últimos anos como Director do Serviço Regional de Arqueologia do Sul (1980-1987), quando as relações se deterioram com um dos seus colaboradores mais chegados, o arqueólogo José Olívio Caeiro  entretanto também já desaparecido  (1949-2009).

Enquanto Director do Departamento de Arqueologia do IPPC e apesar dos Serviços Regionais de Arqueologia dependerem hierarquicamente da Presidencia do Instituto, tive oportunidade de acompanhar de perto aquelas dificuldades. Talvez por isso e também pelo facto de ter vindo a suceder a CMB no lugar de Évora, viria a divulgar-se entre alguns meios o "mito urbano" (que por vezes ainda aflora em conversas de "amigos") de que eu teria sido o grande responsável pela decisão do Engenheiro António Lamas de não renovar em 1987 a Comissão de Serviço de CMB. O próprio Caetano Melo Beirão, conhecedor desse "boato", no entanto, se encarregaria de o desmentir. Em 1988, por ocasião do II Encontro de Arqueologia do Baixo Alentejo, acto em que eu pela primeira vez eu estava presente como novo Director do Serviço Regional de Arqueologia, CMB convidou-me cavalheirescamente para almoçar n' "O Lobo", o velho restaurante de Ourique que costumava frequentar a quando das suas campanhas arqueológicas na região. Com efeito, muito antes do final da sua comissão de serviço, já havíamos discutido a possibilidade da minha futura integração, como simples arqueólogo, nos quadros do SRAZS, uma vez que por razões pessoais já havia decidido deixar a direcção do Departamento em Lisboa. Daquele almoço, e das suas motivações, uma das últimas vezes que estive com CMB, há várias testemunhas, entre elas a Susana Correia, já então arqueóloga do serviço de Évora.

Sobre o arqueólogo Caetano Melo Beirão e a sua obra, não serei certamente a pessoa mais indicada para testemunhar. Recorro para esse efeito a um pequeno texto publicado por ocasião do seu desaparecimento por Mário Varela Gomes, um dos seus mais próximos colaboradores. Esse texto, onde é dado particular realce ao contributo de CMB para o reconhecimento das culturas da Idade do Ferro no Sul de Portugal, está quanto eu saiba, apenas publicado no jornal "O Diabo" de 15 de Outubro de 1991, cujo recorte aqui disponibilizo em "facsimile". O mesmo integra um pequeno "dossier", então editado pelo referido jornal, com testemunhos de âmbito mais político de Jaime Nogueira Pinto e António José de Brito, correlegionários ideológicos de Beirão. Dado o óbvio interesse histórico e biográfico do documento, respeito a integridade dos "recortes", embora o texto de A.J. de Brito tenha sido republicado no "Site Causa Nacional" 

De referir nesta despretensiosa evocação dos 25 anos do desaparecimento de Caetano Mello Beirão, que o seu nome está hoje, de algum modo, perpetuado em Ourique, território onde realizou a maioria dos seus trabalhos de campo, sempre com o apoio do inseparável amigo Manuel Ricardo, o trabalhador rural da Aldeia de Palheiros, seu verdadeiro "pisteiro arqueológico". Com efeito, em resultado de uma parceria entre a Direção Regional de Cultura do Alentejo (herdeira do antigo SRAZS) e a Câmara Municipal de Ourique, está há alguns anos (2009) instalado naquela vila, o "Centro de Arqueologia Caetano de Melo Beirão".  http://cacmb.weebly.com/ É seu principal objectivo o estudo e a divulgação do património cultural da região, em particular o "arqueológico". No entanto, o seu primeiro programa de actividades, passa pelo estudo em curso do vastíssimo conjunto de objectos cerâmicos que foram descobertos e recolhidos por CMB e colaboradores nos anos 80, no chamado depósito votivo de Garvão. Um local de recolha dos contentores de oferendas, relacionado com a actividade de um santuário  religioso da II Idade do Ferro (Séculos IV -III aC) de importância supra-regional, que representou como bem destaca Mário Varela Gomes, uma das grandes descobertas arqueológicas da década.

A edição francesa da Tese de Doutoramento de Caetano Mello Beirão







segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

ALMENDRES
A inexplicável situação do "Stonhehenge português"



Face à continuada ausência de qualquer tipo de gestão ou controle de visitas ao Cromeleque dos Almendres, uma situação que não é de agora mas que se tem vindo a agravar nos últimos anos face ao aumento exponencial de visitantes, a Assembleia da União de Freguesias da Tourega e de Guadalupe, aprovou ontem dia 11 de Dezembro uma Moção manifestando a sua preocupação face à "inexplicável" situação em que se encontra este monumento nacional. 

Apesar de protegido por "lei", a sua localização em propriedade privada, parece (?) impedir as entidades de tutela (nacionais ou regionais) de intervir. Por outro lado, os proprietários, embora não impeçam as visitas, lavam as mãos da sua salvaguarda, embora tal atitude também possa um dia vir a prejudicar os seus interesses. 

Neste contexto o executivo da Junta de Freguesia, ainda que tal não seja propriamente da sua competencia, não quis deixar de assumir a sua quota de responsabilidade no processo e resolveu propor aos proprietários, um modelo de gestão que permitiria ultrapassar o absurdo da presente situação. 

Infelizmente, não foi possível chegar a acordo e o monumento continuará, até ver, entregue ao seu "destino" até que um dia algum acidente grave aconteça que ponha em causa um legado que, ao contrário do que seria de supôr como "nacional", parece afinal estar refém dos interesses de alguns.

Para que se possa ter uma percepção global do problema em causa, e para registo futuro, aqui se transcrevem alguns documentos: a proposta apresentada aos proprietários pela Junta de Freguesia; a Moção aprovada na Assembleia, e por fim, a Nota de Imprensa distribuída pela Junta.







Proposta aprovada em reunião do executivo da União de Freguesias, de 22 de Março de 2016, a ser presente à Sociedade Agrícola dos Almendres

CROMELEQUE DOS ALMENDRES
Monumento Nacional (MN)- Decreto n.º 4/2015, DR, 1.ª série, n.º 44, de 4-03-2015

O Cromeleque dos Almendres, reclassificado recentemente como MONUMENTO NACIONAL, é hoje um sítio arqueológico emblemático, referenciado por todos os guias turísticos e local quase de visita obrigatória para os muito milhares de visitantes que regularmente procuram Évora enquanto cidade e região de cultura, classificada pela UNESCO em 1986 como “Património da Humanidade”.
Localizado em propriedade privada (Herdade dos Almendres- Sociedade Agrícola dos Almendres) este recinto megalítico foi recuperado arqueologicamente por iniciativa do município de Évora nos anos 80, numa altura em que a propriedade estava intervencionada no âmbito da Reforma Agrária. Data da mesma época a requalificação do estradão de acesso.

Após a aquisição da Herdade pelos actuais proprietários (1997) e com o seu acordo, a Câmara Municipal procedeu a uma correção do traçado do estradão original, afastando-o da área habitacional da Herdade e criou um acesso pedonal vedado permitindo a visita ao Menir dos Almendres, localizado na proximidade do monte. Mais recentemente (2012), visando disciplinar o acesso e estacionamento de viaturas, a Câmara Municipal, obtido o acordo prévio dos proprietários, criou uma bolsa de estacionamento a cerca de 200 metros do Cromeleque.

Pese embora estas intervenções de iniciativa municipal, o acesso e visita ao Cromeleque dos Almendres continua a não obedecer a qualquer regra, condicionamento ou restrição (24 horas por dia, 365 dias por ano) com todos os inconvenientes e ameaças daí resultantes, nomeadamente para a salvaguarda e integridade do monumento nacional, para a proteção e conservação ambiental da própria Herdade e até para a segurança dos próprios visitantes. Apesar da ausência de qualquer estatística fiável, é notória a crescente, permanente e massiva devassa do monumento, tornando insustentável a actual situação de indefinição estatutária e legal, quer no que se refere à gestão e controle do acesso e visita pública a este monumento, quer no que concerne à responsabilidade civil ou mesmo criminal decorrentes de quaisquer actos que aí possam vir a ocorrer, atentatórios da integridade do monumento ou dos próprios visitantes.

Face a este contexto de indefinição e de real ameaça à preservação do Cromeleque dos Almendres, o executivo da União de Freguesias da Tourega e de Guadalupe, fazendo-se eco das legítimas preocupações de muitos cidadãos relativamente à salvaguarda e valorização dos recursos culturais do seu território, em particular os declarados formalmente de interesse público ou nacional, sente-se no dever de assumir a sua quota parte de responsabilidades perante este problema.
Nesse sentido e ainda que considerando que essa não será a solução mais adequada face à reconhecida importância nacional do monumento, que justificaria da parte da Administração Pública um outro nível de intervenção, a União de Freguesias manifesta a sua disponibilidade para em conjunto com a entidade proprietária, encontrar uma plataforma de entendimento que permita clarificar a situação estatutária do “monumento” e estabelecer um modelo de gestão da visita pública que garanta as melhores condições para a sua protecção, salvaguarda e valorização.

Deste modo:

Na presunção de que a entidade proprietária da Herdade dos Almendres -apesar de estar no direito de o fazer- não tem interesse em promover ou assumir a gestão e controle das visitas a este monumento nacional localizado em plena Herdade mas com acesso público através de “caminho municipal”;

na presunção que, quer por parte da Administração Pública, quer por parte da Câmara Municipal, não existem planos de intervenção para além das responsabilidades próprias de tutela relativamente à salvaguarda do Monumento (Direção Regional de Cultura do Alentejo e DGPC) ou à manutenção do estradão municipal (C.M. de Évora);

A Junta de Freguesia, consciente das suas obrigações e responsabilidades, decide apresentar aos proprietários uma proposta de acordo que considera vantajosa para ambas as partes, visando em última análise a salvaguarda e valorização do monumento nacional “Cromeleque dos Almendres”, através da prossecução dos seguintes objectivos:

                - gestão, controle e enquadramento da visita pública ao Cromeleque;
                - conservação e manutenção do monumento e do seu espaço envolvente numa pespectiva de salvaguarda patrimonial e ambiental;
                - melhoria das condições de acesso, estacionamento, interpretação e visita pública;

Para prossecução daqueles objectivos, a União de Freguesias propõe à Sociedade Agrícola dos Almendres, o estabelecimento de um acordo de cooperação, assentando nos seguintes princípios:

1.       Sem abdicar da respectiva propriedade, a Sociedade Agrícola dos Almendres, entrega à responsabilidade da União de Freguesias (ao abrigo da figura legal de “comodato”) por um prazo a fixar, nunca inferior a 15 anos, o terreno onde se situa o Cromeleque dos Almendres, incluindo o “parque de estacionamento e a ligação pedonal entre ambos” de acordo com “planta a anexar”;

2.       A União de Freguesias compromete-se, num prazo inferior a um ano e ouvindo a entidade proprietária, a preparar um plano de gestão e controle das visitas, a submeter à aprovação da tutela do património e, que permita estabelecer um regulamento e um horário de visita ao monumento, uma vez criadas as condições materiais indispensáveis para a sua efectiva implementação no terreno;

3.       Deverá estar subjacente ao modelo de gestão, o princípio da “mínima intervenção física possível” no terreno cedido por comodato, até por razões de preservação das condições ambientais e paisagísticas, uma das grandes mais-valias deste monumento. As infraestruturas de apoio que sejam consideradas indispensáveis deverão, preferencialmente, ser localizadas na povoação de Guadalupe, em áreas públicas disponíveis e de passagem obrigatória pelos visitantes.

4.       Para efeito da conceção e implementação do modelo de gestão de visitas, a União de Freguesias, poderá obter o apoio ou a colaboração (administrativa, técnica, logística ou mesmo financeira) de entidades terceiras que aceitem cooperar ou participar na gestão e valorização deste monumento no quadro das condições gerais previstas neste acordo;

5.       Considerando a necessidade de tornar sustentável a gestão das visitas e a manutenção do monumento e da sua envolvente, a União de Freguesias deverá prever no modelo e plano de gestão, para além do concurso a candidaturas disponíveis para apoios financeiros, a capacidade de arrecadação de receitas, nomeadamente as resultantes da cobrança de ingressos, venda de mershandising, exploração dos direitos de imagem, organização de eventos culturais, etc…

6.       Eventuais resultados positivos de exploração, a verificarem-se, deverão ser exclusivamente reinvestidos, nos seguintes domínios:

a.       Valorização do próprio monumento e melhoria das condições de acesso e visita;
b.      Apoio a instituições de solidariedade social existentes em Guadalupe ou Valverde;

7.       Findo o período estabelecido no contrato de comodato, a área cedida incluindo benfeitorias, reverte à plena propriedade da Sociedade Agrícola dos Almendres, salvo se entretanto forem estabelecidas de comum acordo novas formas de cooperação entre as entidades signatárias;

8.       A falta de cumprimento dos princípios acordados, poderá ser motivo para denúncia do acordo e do contrato do comodato por qualquer das partes signatárias.


Moção 

A Assembleia da União de Freguesias de Nª ª da Tourega e Nª Sª de Guadalupe, reunida em sessão ordinária no dia 11 de Dezembro, tendo tomado conhecimento dos resultados inconclusivos das diligências efetuadas pelo executivo da freguesia junto dos proprietários da Herdade dos Almendres, relativamente à precaridade da presente situação do monumento nacional “Cromeleque dos Almendres”, deliberou:

         Manifestar publicamente a preocupação dos membros eleitos, relativamente à situação de total indefinição no que respeita à gestão e à salvaguarda de um dos principais monumentos pré-históricos do território português, o Cromeleque dos Almendres, visitado diariamente por centenas de turistas, sem qualquer regra ou controle por parte de qualquer entidade pública ou privada.

     Lamentar a ausência de acordo da parte dos proprietários da Herdade dos Almendres à proposta de modelo de gestão do monumento sugerida pela União de Freguesias, situação agravada pela ausência, tanto quanto é do conhecimento público, de qualquer solução alternativa por parte dos próprios proprietários.

    Mandatar o executivo da União de Freguesias, no sentido de este alertar as entidades com responsabilidades legais na salvaguarda do património cultural, nomeadamente no património classificado como “nacional”, sobre as graves ameaças que nas presentes circunstâncias, se colocam à salvaguarda deste monumento e à segurança dos milhares de visitantes que o procuram.

   Lembrar que, nos termos da Lei de Bases do Património Cultural, compete às entidades competentes da Administração Pública, a tomada de todas as medidas que a salvaguarda de um Monumento Nacional exijam, incluindo a sua expropriação, caso se conclua que essa é a solução mais adequada à sua proteção.

  Dar amplo conhecimento público desta tomada de posição da Assembleia de Freguesia, através de nota a enviar à Câmara Municipal, à Direção Regional de Cultura do Alentejo, aos Grupos Parlamentares da Assembleia da República e à Comunicação Social. 

São Brás do Regedouro, 11 de Dezembro de 2016




Nota para a comunicação social
A inexplicável situação de um Monumento Nacional
Aprovada “moção” na Assembleia da União de Freguesias da Tourega e Guadalupe sobre o “Cromeleque dos Almendres”

O Cromeleque dos Almendres, identificado arqueologicamente há cerca de meio século e recentemente reclassificado como Monumento Nacional (Decreto 4/2015 de 4 de Março), é atualmente um dos monumentos pré-históricos mais conhecido e visitado em todo o país, sendo hoje um verdadeiro “ex-libris” da cultura megalítica do Ocidente Ibérico. Foi objeto de restauro e de valorização durante os anos 80 do século passado por iniciativa do município de Évora, numa época em que a Herdade dos Almendres estava intervencionada no âmbito da Reforma Agrária. Após a devolução da propriedade aos seus antigos donos, o monumento, ainda que classificado desde 1974 como “Imóvel de Interesse Público”, deixou de estar na alçada pública. Apesar da Herdade ter sido vendida no final dos anos 90, o Estado não exerceu então o direito legal de preferência, até porque estava em causa uma área muito restrita de uma propriedade agrícola com quase 1000 hectares. Na altura, de acordo e por interesse dos novos proprietários, foram apenas feitas algumas alterações nos acessos públicos, quer ao Cromeleque, quer ao vizinho Menir dos Almendres, também abrangido pela classificação.
De então para cá e pese embora o facto de os proprietários nunca terem levantado dificuldades à visita, também se tornou evidente que a capacidade de intervenção pública estava fortemente condicionada pela titularidade privada do monumento, inviabilizando qualquer possibilidade de novos investimentos públicos na salvaguarda ou valorização de um monumento cada vez mais conhecido e procurado pelo turismo. Ainda assim, em 2012, após um processo negocial demorado e face a uma situação que se tornava calamitosa e insustentável, com autocarros, autocaravanas e todo o tipo viaturas a estacionarem e manobrarem dentro do próprio monumento, a Câmara Municipal conseguiria autorização dos proprietários para instalar um parque de estacionamento provisório a uma distância razoável de segurança.
Tal facto, ao melhorar significativamente as condições ambientais na envolvente do monumento, acabou por ter outras consequências. Sem qualquer publicidade ou marketing especial, para além do seu valor intrínseco, do passa-palavra dos próprios visitantes e da proximidade de Évora, o Cromeleque dos Almendres transformou-se rapidamente no monumento arqueológico mais conhecido da região, um verdadeiro “Stonehenge” português, procurado quer por turistas individuais, quer por grupos enquadrados por operadores turísticos de todo o tipo, atuando a partir de Évora, de Lisboa, do Algarve ou mesmo de Espanha. Até porque, com todas as implicações imagináveis, a ausência de qualquer gestão do monumento, permite a visita 365 dias por ano e, literalmente, 24 horas por dia.
Assim, são já hoje evidentes os efeitos da excessiva e desregulada carga de visitantes, acelerando a erosão do terreno e pondo em perigo a estabilidade dos menires, tornando-se também frequentes os actos de vandalismo, por ausência de qualquer vigilância, traduzidos em usos indevidos do local, “grafitis”, lixo e perigosos vestígios de fogueiras deixados por “visitantes” noturnos. Acresce a esta situação, o agravamento dos problemas de manutenção do estradão de acesso, face ao aumento do tráfego incluindo pesados de passageiros. Ultimamente, e apesar da atenção dada ao assunto pela GNR, o local tem também atraído o “interesse” dos gatunos, multiplicando-se os assaltos às viaturas estacionadas. 
Perante uma situação que se tem vindo a agravar, com riscos cada vez mais elevados para a salvaguarda do monumento e para a segurança dos visitantes, quer a Câmara Municipal de Évora, quer a União de Freguesias de Valverde e Guadalupe, têm procurado atuar dentro dos limites das suas capacidades e competências embora muito condicionadas pelo estatuto privado do monumento. Alertando as autoridades policiais para os problemas de vigilância e segurança, reparando periodicamente o estradão de acesso ou procurando manter a limpeza possível dos espaços. Mas há consciência de que se trata de mero paliativo para uma situação sem qualquer controlo e inexplicável para a maioria dos visitantes, nacionais ou estrangeiros, convencidos que estão a visitar um “monumento público”.
Foi neste contexto, visando encontrar uma solução que permitisse congregar esforços e meios para instauração urgente de um qualquer modelo de gestão de visitas e de clarificação do estatuto do monumento, que a União de Freguesias decidiu avançar recentemente com uma proposta concreta junto dos proprietários, a “Sociedade Agrícola dos Almendres”. Fê-lo partindo dos seguintes pressupostos: embora estivessem no direito de o fazer, os proprietários já demonstraram não estar interessados em explorar comercialmente a visita pública ao monumento; a gestão da visita ao Cromeleque dos Almendres, nos moldes propostos pela Junta, em nada interferiria, direta ou indiretamente, com a atividade económica da Herdade; bem pelo contrário, essa gestão, aumentando a vigilância e evitando as presenças indesejáveis, em particular durante a noite, constituiria uma assinalável mais valia para a própria propriedade.
A proposta presente à Sociedade Agrícola dos Almendres, previa a cedência à União de Freguesias, por contrato de comodato e por um período de 15 anos, do terreno do monumento, incluindo acessos e estacionamento, transferindo para esta entidade a responsabilidade da sua manutenção e do controle da sua visita pública. Para esse efeito a União de Freguesias, comprometia-se a elaborar um plano de gestão, associando-se a entidades terceiras (Câmara Municipal e Entidade Regional de Turismo, entre outras) com vista à obtenção dos necessários meios técnicos e financeiros. Do ponto de vista da intervenção física, seria evitada qualquer construção na propriedade privada, para além da estritamente necessária (vedação e arranjos paisagísticos de espaços exteriores) até por razões de preservação paisagística e ambiental. Do ponto de vista da exploração comercial das visitas, indispensável à sustentabilidade da própria gestão, ficava estabelecido que em caso de resultados positivos, estes seriam investidos na valorização do monumento ou canalizados para apoio às instituições sociais da aldeia de Guadalupe.

Numa primeira reunião, a reação do representante dos proprietários foi de aparente recetividade. Infelizmente a União de Freguesias viria a ser informada posteriormente que a eventual aceitação daquela proposta por parte da Sociedade proprietária, estaria dependente de uma condição prévia, relacionada com a “viabilização” pelas autoridades competentes da renovação do licenciamento para um empreendimento turistico na Herdade, um antigo “PIN” conhecido como “Resort dos Almendres”. Face a uma condição prévia que nada tinha a ver com os objetivos da proposta de salvaguarda do monumento nacional e que, independentemente de considerações sobre as respetivas motivações éticas ou enquadramento legal, ultrapassam completamente as competências de uma Junta de Freguesia, a posição do executivo só poderia ser de recusa, ainda que mantendo em aberto o interesse na negociação de quaisquer outras condições particulares, desde que legitimas e dentro das suas competências, tendo sempre em vista a salvaguarda do interesse público em causa, ou seja a salvaguarda do Cromeleque dos Almendres para as gerações futuras.


quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A encenação do passado


Esta estranha foto remete-nos para a Primavera de 1995. Dir-se-ia um acampamento improvisado face a uma qualquer crise de refugiados. 

No entanto, estas tendas às portas do Museu Nacional de Arqueologia e do Mosteiro dos Jerónimos, em pleno coração turístico de Lisboa, eram então sinal da radicalização da luta dos arqueólogos e de uma parte significativa da sociedade (uma conjugação rara e quase improvável, tornada possível face ao apelo mediático do extraordinário slogan das "gravuras que não sabiam nadar"), contra a construção da Barragem do Côa. 

Reencontrei há dias a foto que, pelos seus múltiplos significados, usei para ilustrar um artigo publicado no Diário de Notícias de 1 de Junho de 1995. O tema era a Idade do Bronze, e a plausível "encenação do poder", algures Mil anos antes de Cristo..., a propósito de uma exposição em curso no MNA. 

Apesar do texto ter sido mais tarde publicado pela Europa-América, em obra de parceria com Luis Raposo ("A Linguagem das Coisas", 1996, pp 169), pareceu-me interessante, revisitar a sua versão original e a imagem que a acompanhava. Que melhor representação/ encenação/ discurso de poder face aos Jerónimos? Não é isso que afinal, os arqueólogos fazem no dia a dia ao "reinventar" um passado que só existe afinal através da palavra?

O seguimento da história, é bem conhecido. O tema do Côa, muito com a ajuda de Mário Soares, acabou por estar muito presente na Campanha eleitoral desse Verão. E o Outono de 95, acarretaria o fim do Cavaquismo e a vitória de Guterres. O cumprimento da promessa de abandono da Barragem do Côa, seria uma das primeiras decisões do novo governo.

PS_ por pura coincidência, já depois de "publicado" o presente post, chegou ao meu conhecimento que hoje mesmo (30 de Novembro de 2016) saíu no Diário da República a resolução do Conselho de Ministros para a Viabilização da Fundação Côa Parque. Mais um passo na já longa e por vezes difícil caminhada de duas décadas. Para além do Link directo para o PDF do diploma em causa, anexa-se me imagem o texto da resolução

https://dre.pt/application/conteudo/105283925

Lisboa-Belém, Maio de 1995












segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Registos da arqueologia eborense, nos anos 30


Em fim de semana de chuva, reencontrei alguns recortes da imprensa eborense dos anos 30 do século passado ("Notícias d'Évora") que julgo merecerem alguns comentários. São quase todos assinados por alguém que usa o pseudónimo de "Tito Lívio Eborense" mas cujo nome real desconheço. Aceita-se ajuda para esclarecer o mistério...

Duas pequenas notícias de 1937 (Outubro e Dezembro) referem a descoberta de um povoado Neolítico, próximo da cidade de Évora, não sendo porém citado qualquer topónimo que nos permita identificar o local em causa. Julgo ser de descartar a hipótese do "Alto de São Bento de Cástis", uma vez que esse  sítio com vestígios pré-históricos, seria objecto de referencias deste mesmo autor já em 1938. A descrição de 37 aponta para um sítio com características diversas (ver a esse propósito uma entrada de Mário carvalho no Blog Carta Arqueológica de Évora) como se deduz dos recortes que divulgamos referentes ao Alto de São Bento (de Maio de 1938).

O que destaco nestas pequenas notícias, é a insistência no nome de Manuel Heleno, (ou nos sócios do Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia, o que ia dar ao mesmo...) apontado sempre como grande especialista, cuja visita à Évora se aguarda mas que parece nunca acontecer. Manuel Heleno na década em causa vinha regularmente a Montemor-o-Novo (ver o recorte de Junho de 1938), onde procedia a numerosas (e demasiado rápidas) escavações nas antas da zona, em particular nos núcleos a Norte daquela localidade, já nos limites de Coruche ou Mora. É natural que ocasionalmente viesse também a Évora, e de facto parece haver uma pequena nota no conhecido trabalho de Saavedra Machado (Subsídios para a História do Museu Etnológico...) que a certa altura coloca Heleno na Herdade das Atafonas (entre Torre de Coelheiros e São Manços). Este sítio que surge também nos recortes que agora relembramos (Abril de 1938) é referido pela descoberta de importantes vestígios romanos no decurso de trabalhos agrícolas. Pelos dados da notícia, que fala do aparecimento de colunas de mármore e mosaicos, deveria estar-se em presença de uma importante villa romana, infelizmente nunca objecto até hoje de qualquer intervenção arqueológica. As circunstancias fazem recordar a descoberta da Villa de Torre de Palma uma década mais tarde (ver aqui) que então seria acompanhada de forma muito estreita por Heleno e pelos seus colaboradores do Museu Etnológico. Só que nos anos 30, Manuel Heleno tinha outros interesses e a villa romana das Atafonas, mesmo que tenha sido por si visitada, acabaria por ficar no esquecimento, até hoje.

E de facto, a primeira metade do Século XX não seria muito frutífera no que se refere à arqueologia nos territórios de Évora. Apesar do reconhecimento precoce da riqueza megalítica do Concelho, graças sobretudo a Emile Cartaillac, Leite de Vasconcelos e Gabriel Pereira (final do Século XIX, início XX), seria necessário aguardar pelos trabalhos de Georg e Vera Leisner nos anos 40, ainda que muito centrados no inventário das antas, para se ter finalmente uma noção da extraordinária riqueza arqueológica desta região. Em 1949 Georg Leisner, publica na revista A Cidade de Évora (com reedição em livro pela Nazareth) o livro "Antas dos Arredores de Évora", com a referencia e descrição de 152 antas localizadas num perímetro de cerca de 20 km em torno da cidade. Prenunciava-se desta forma uma época de importantes descobertas e investigações pré-históricas na região que, de algum modo, teriam o seu ponto alto nos anos 60, com a identificação da Gruta do Escoural, da Anta Grande do Zambujeiro e dos Cromeleques dos Almendres e Portela de Mogos, entre outros.




16 de Outubro 1937

30 Dezembro 1937


6 de Abril de 1938

14 de Abril de 1938



20 de Maio de 1938



1 de Junho de 1938

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

AS PEDRAS TALHAS DOS ALMENDRES

nas memórias dos mais velhos


Recentemente a União de Freguesias da Tourega e de Guadalupe, estrutura administrativa que abrange um território conhecido pela sua riqueza megalítica, única em todo o país, promoveu a gravação dos depoimentos de três dos seus habitantes, visando o registo das suas memórias pessoais sobre o Cromelque dos Almendres, ou "Alto das Pedras Talhas", como localmente era conhecido. Com efeito, a identificação arqueológica dos Almendres, apenas aconteceria em 1964 quando o local foi visitado pela primeira vez por Henrique Leonor de Pina, conduzido pelo guarda da Mitra "António Gadunhas", um "verdadeiro camponês arqueólogo", nas palavras do próprio Pina. A divulgação científica aconteceria alguns anos mais tarde, no II Congresso Nacional de Arqueologia que teve lugar em 1971 na cidade de Coimbra.

À data daquele reconhecimento, já todos os três entrevistados eram homens adultos, residentes em Guadalupe e interessava-nos ouvir as suas próprias experiências relativamente ao "antes", ao "durante" e ao "depois". Com efeito o Ti Bento Rosa Calhau, nascido em 1936 na Torre dos Coelheiros, viria ainda criança para a Herdade dos Almendres, onde fez de tudo um pouco como "jornaleiro". É o único sobrevivente do trio de trabalhadores (integrado também por Jacinto Samina, do Monte das Pedras e António Canaverde, da Boa Fé) que por volta de 1959, às ordens e sob a orientação do proprietário da Herdade, Eng. Miguel Soares, procedeu aos primeiros levantamentos de menires no Cromeleque. Ainda que sem qualquer enquadramento científico, presume-se que às motivações de Miguel Soares, estaria já subjacente algum reconhecimento empírico da natureza pré-histórica do local. Cruzando várias informações, incluindo entrevista realizada em 2014 com o Ti Bento, o malogrado arqueólogo Pedro Alvim (falecido em 2015), chegara à conclusão que aqueles trabalhos de 1959, incidindo sobre menires semitombados e realizados apenas com meios tradicionais e força humana, não terão desvirtuado no essencial, a estrutura básica do monumento, posteriormente completada com os trabalhos arqueológicos de Mário Varela Gomes.





Sobre Joaquim Feliz Casquinha, mais conhecido por Joaquim Cristéta, já aqui tinhamos deixado anterior notícia ( http://pedrastalhas.blogspot.pt/2016/11/o-ti-cristeta-e-as-pedras-talhas.html ). Nascido em 1925, é o mais idoso dos três entrevistados. Já aposentado de uma longa vida de trabalhador rural, foi um entusiástico colaborador nas escavações realizadas nos anos oitenta no Cromeleque e dirigidas por Mário Varela Gomes, com a colaboração de Francisco Serpa. Era importante registar o seu testemunho pessoal sobre essa sua experiência, que inclui até algumas "quadras" dedicadas ao Cromeleque.




Por fim, seria também importante recolher o testemunho de Manuel Estevão, nascido em 1935 no Monte da Pedreira, ao Escoural. Tal como os outros entrevistados, Manuel Estevão trabalhou desde criança na agricultura, onde fez de tudo um pouco. Ainda jovem já era pastor mas a dureza daquela vida ("estava meses sem poder ir a casa") levaram-no a procurar outros trabalhos após o serviço militar. Viria a especializar-se como "canteiro", profissão que chegou a exercer na emigração. No entanto seria como funcionário da pedreira municipal da Fiúza (Évora) que viria a ser chamado no final dos anos 80 para colaborar nos grandes trabalhos de restauro coordenados por Mário Varela Gomes e promovidos pela autarquia eborense (na altura a Herdade dos Almendres estava ainda integrada na UCP de Guadalupe). À sua experiencia e conhecimento técnico se ficou a dever não apenas a reerecção de diversos menires mas também a remontagem e colagem de alguns que se encontravam partidos. Reconhecida a qualidade do seu trabalho, viria a colaborar também no restauro do vizinho Cromeleque da Portela de Mogos, e mais tarde, há cerca de duas décadas, na delicada operação de remontagem do gigantesco menir de Meadas em Castelo de Vide. Interessava pois também gravar as suas memórias pessoais das Pedras Talhas.





À esquerda João Bacelar, o operador de câmara, e Panagiotis Sarantopolos (arqueólogo da Câmara Municipal de Évora), durante a recolha dos depoimentos