Regresso aos Capuchos e à Ponta do Cabedelo
No último fim de semana o Coro Eborae Musica (agremiação musical dedicada sobretudo à divulgação da tradição musical barroca da Sé de Évora e que integro há alguns anos) andou praticamente em tournée. Começou na tarde de Sexta-feira (16 Dezembro 2016) com uma intervenção na Câmara Municipal de Évora, por ocasião do 110 aniversário do nascimento de Fernando Lopes Graça, compositor sempre presente nos reportórios do Eborae Musica e de quase todos os Coros nacionais. Seguiu-se nessa mesma noite um concerto inteiramente dedicado à obra de Manuel Cardoso na matriz de Fronteira, para encerramento das comemorações dos 450 anos do nascimento daquele compositor, um dos grandes mestres da Escola da Sé de Évora. No sábado voltámos à estrada, para um duplo concerto de Natal. Primeiro no Convento dos Capuchos, Almada, depois na Igreja de Santiago em Alcácer do Sal. Finalmente, no domingo 18, encerrámos esta maratona musical com o Concerto final do Ciclo Música de Inverno, na Igreja dos Remédios em Évora, também dedicado ao Natal.
Detalhes da folha de sala do concerto dos Capuchos |
Pessoalmente e por razões várias tocou-me especialmente o regresso aos Capuchos e ao seu recuperado "Convento", hoje transformado em activo "centro cultural" gerido pelo município de Almada depois de adquirido em avançada ruína em 1952. De facto ligam-me a este local antigas memórias familiares com quase meio século, naturalmente ligadas ao veraneio na vizinha Caparica.
Mas, o motivo principal deste "post" são algumas referências arqueológicas com algum significado indissociáveis do topónimo "Capuchos". Para além de ter chegado a funcionar no Convento nos anos 80 uma estrutura arqueológica municipal dinamizada pelo "Centro de Arqueologia de Almada" (cheguei aqui a participar em encontros promovidos por aquela Associação), o retorno a este lugar trouxe-me à memória um significativo sítio arqueológico, hoje quase esquecido. Refiro-me à Ponta do Cabedelo, onde nos anos 40 Henri Breuil (na sua estadia em Portugal, durante a II Guerra Mundial), Zbyszewski, Afonso do Paço e o inevitável Maxime Vaultier, o dono do automóvel, recolheram abundantes materiais líticos então classificados como "Languedocenses" (conceiro introduzido em França/Languedoc pelo próprio Breuil) e classificados genericamente como Paleolíticos. sobre Vaultier, ver . Mas o que trouxe alguma notoriedade a este local, seria um artigo publicado uma década depois no Arqueólogo Português (2ª série, vol.1) por Bandeira Ferrreira aceder aqui ao texto em PDF . Este arqueólogo não chegou fazer escavações, mas aí recolheu novos materiais no início os anos 50, incluindo também numerosos fragmentos de cerâmica pré-histórica. Este facto motivou em Bandeira Ferreira uma importante reflexão sobre a identidade cronológico-cultural do chamado "Languedocense", uma indústria essencialmente produzida a partir dos seixos rolados, matéria prima abundante nos antigos terraços marítimos ou fluviais. Afrontando corajosamente a "autoridade" de Breuil e de Zbyszewski, Bandeira Ferreira refere em nota de pé de página que, a frescura do talhe de muitas peças ditas "Languedocenses", permite colocar a hipótese de elas serem contemporâneas dos fragmentos cerâmicos ali recolhidos e portanto post-paleolíticos. E refere em apoio desta tese, a descoberta de "picos asturienses", uma indústria lítica caracterizada no Noroeste Ibérico aparentada com o "Languedocense", em estações da Idade dos Metais.
Esta problemática oportunamente abordada por Bandeira Ferreira, viria mais tarde, anos 70, a ser aprofundada pelos resultados de escavações de Luis Raposo e eu próprio, nas margens do Guadiana (Xerez de Baixo), numa zona hoje submersa pela Barragem do Alqueva. A recolha de materiais tipicamente "languedocenses" em níveis neolíticos, esteve na origem de vários trabalhos que viríamos a publicar nas revistas "Setúbal Arqueológica" e "O Arqueólogo português". Hoje, embora o assunto possa naturalmente continuar a justificar alguma atenção, sobretudo após os trabalhos sistemáticos realizados nas margens do Guadiana, no âmbito do Alqueva, já ninguém se referirá ao "Languedocese" como uma entidade de base cronológico-cultural. Estas indústrias sobre seixos agora normalmente apelidadas de "macrolíticas", na falta de melhor expressão, e parecem corresponder essencialmente a um padrão de exploração tecnológica expedita da abundante matéria prima (seixos rolados) existentes em zonas de antigos terraços fluviais ou marítimos. Parecendo surgir no final do Paleolítico (Epipaleolítico), há cerca de 10 000 anos, esta técnica de trabalho da pedra, perduraria no tempo. Leite de Vasconcelos ainda observou pescadores que nas praias portuguesas, fabricavam "pesos para as suas redes", lascando seixos rolados...
Apesar da sua importância, porém, a Ponta do Cabedelo (tanto quanto eu saiba) nunca foi objecto de escavações e desconheço mesmo a sua actual situação, embora a localização em plena arriba fóssil da Caparica, possa favorecer a sua salvaguarda. No entanto, o Centro de Arqueologia de Almada viria a realizar uma intervenção de emergência no final dos anos 70, junto ao Miradouro dos Capuchos, julgo que motivada por obras de arranjo dos acessos. Ainda que, muito provavelmente ambos os sítios estejam correlacionados, a Carta Arqueológica do Distrito de Setúbal e a base de dados "ENDOVÉLICO" identificam este último como uma nova estação, o "Miradouro dos Capuchos". Também aqui, a par dos abundantes materiais líticos "de técnica languedocense" foi recolhida cerâmica "Campaniforme" (final do Calcolítico), confirmando a justeza das precoces reflexões de Bandeira Ferreira.
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