O Paleolítico do Ródão
As "Portas do Ródão" perderam alguma da monumentalidade natural bem como parte da sua visibilidade e reconhecimento público com a construção da Barragem do Tejo no Fratel, alguns quilómetros a jusante, e o posterior desvio do trânsito entre Lisboa e Castelo Branco. Ainda assim continuam a ser um marco fantástico na paisagem, tal como o terão sido no passado ao longo de milénios. A sua presença carismática, qual "axis mundi", foi até já apontada como o referente material definidor de um território sagrado, profusamente marcado por simbólicas manifestações rupestres aqui deixadas pelo homem pré-histórico, desde os finais do Paleolítico até aos alvores da romanização. Acontece que tão fantástico acidente tem uma antiquíssima história geológica de interacção com o Tejo, estando na origem a montante e a jusante do mesmo, da formação durante o período do Quaternário, de todo um complexo de terraços sedimentares que há muito atraíram a atenção dos geólogos e geógrafos. Foi aliás a busca de eventuais vestígios de presença humana Paleolítica, eventualmente associada aos diversos níveis de terraços, que atraiu ao Ródão no início dos anos 70 alguns estudantes da faculdade de Letras de Lisboa, os mesmos que com a ocasional e inesperada descoberta se dedicariam nos anos seguintes ao reconhecimento e divulgação da Arte Rupestre do Tejo antes da subida das águas do Fratel. No entanto, o objectivo inicial não seria esquecido e, submersa a arte rupestre, parte da equipa dedicar-se-ia à prospecção dos terraços do Ródão, em particular na margem Norte do Tejo. Se bem que os vestígios do Paleolítico estejam um pouco por todo o lado neste território, em resultado da natural erosão dos antigos terraços, alguns locais pelas condições de jazida mereceram especial atenção, nomeadamente o Monte do Famaco, onde se recolheu uma fantástica colecção de "bifaces" do Paleolítico Inferior, ou ainda Vilas Ruivas e Foz do Enxarrique, dois sítios desde logo atribuídos ao Paleolítico Médio pelos seus materiais, cronologia mais tarde confirmada por datações absolutas.
Tendo estado envolvido em todo aquele processo nos meus tempos de estudante de História e tendo o meu interesse pela arqueologia nascido no Ródão, perceber-se-á os sentimentos que me terão ocorrido quando ontem na sala dos actos da Universidade de Évora, assisti às provas de Doutoramento defendidas com sucesso pelo Nelson Almeida. O tema, "O Paleolítico Médio das Portas de Ródão. A margem esquerda (Nisa- Portugal)", mergulha directamente nas minhas mais antigas memórias arqueológicas, já que a bacia do Arneiro, onde o Nelson encontrou, sondou e estudou para a sua tese algumas jazidas também datadas do Paleolítico Médio, se localiza imediatamente em frente da Fonte das Virtudes, a velha casa onde no final dos anos 70 se aboletavam as equipas que escavavam os sítios de Vilas Ruivas, fronteiro ao Arneiro e a Foz do Enxarrique. Por outro lado, no próprio júri, havia também reflexos desses e doutros tempos memoriáveis da arqueologia do último quartel do século passado. Um dos arguentes, José Meireles, professor na Universidade do Minho, ainda estudante da Universidade do Porto, chegou a participar nas escavações de Vilas Ruivas, antes de se dedicar ao Paleolítico do litoral minhoto e um dos orientadores, Thierry Aubry, é investigador na equipa do Vale do Côa, tendo tido um papel importante, com João Zilhão (outro estudante de Vilas Ruivas) na confirmação da cronologia paleolítica da Arte Rupestre do Côa. Finalmente também não é displicente para o caso, o facto de Nelson Almeida ser um dos "jovens" a quem a criação do efémero Instituto Português de Arqueologia abriu as portas (hoje praticamente encerradas) de uma carreira pública na Arqueologia, hoje integrado na Direcção Regional de Cultura do Alentejo. É verdade que, estranhamente, hoje as condições para o desenvolvimento de projectos de investigação, parecem ser bem piores do que há alguns anos atrás, facto que só valoriza o esforço daqueles que, por paixão e sem que daí já lhes advenha qualquer vantagem material ou mesmo profissional, ainda conseguem abalançar-se a objectivos tão elevados com meios tão reduzidos.
O Nelson Almeida prestando provas de Doutoramento (27/10/2014) |
As omnipresentes Portas de Ródão |
A Fonte das Virtudes, imediatamente a jusante das Portas do Ródão. Na margem oposta, à esquerda, as "conheiras" da Bacia do Arneiro, largamente exploradas pelos Romanos em busca do ouro aluvionar. |
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