Visita aos Almendres, recordando a "Reforma Agrária"
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Abílio Fernandes, fazendo as apresentações no Cromeleque dos Almendres (21/10/2017) |
O acompanhamento de uma visita ao
Cromeleque dos Almendres de um grupo de sócios da URAP (União de Resistentes Antifascistas Portugueses), a pedido do meu "velho" amigo Abílio Fernandes, serve aqui de pretexto para recordar um texto que escrevi há alguns anos e algo ambiciosamente intitulado " A Arqueologia e a Reforma Agrária". O mesmo foi publicado numa obra colectiva coordenada pelo António Murteira (U
ma Revolução na Revolução_ Reforma Agrária no Sul de Portugal, Campo das Letras, 2004, 508 pp) e já neste blog tinha deixado um link para o PDF deste artigo (
ver aqui ). Tendo reencontrado a versão original em "word", pareceu-me que poderia ser útil disponibilizar o artigo num formato mais acessível. Como recordo naquele texto e lembrei hoje de novo na visita com o Abílio Fernandes, o muito que se conseguiu fazer nos anos 80 para valorização do Cromeleque, hoje um dos sítios arqueológicos mais visitado no país, deveu-se à circunstancia da Herdade dos Almendres estar então ainda sob controle da extinta Cooperativa de Guadalupe. Tal facto dava liberdade e legitimava os investimentos então promovidos essencialmente pela Câmara Municipal de Évora (sob a presidência de Abílio Fernandes, sendo vereador o saudoso Celino Silva), com destaque para o estradão que coloca hoje este monumento no fulcro das cada vez mais procuradas rotas megalíticas alentejanas. Infelizmente, nem as propostas do antigo Serviço Regional de Arqueologia do Sul, apesar de apoiadas pela SEC de então, Dra Teresa Patrício Gouveia, nem os requerimentos dos deputados Lino de Carvalho e José Manuel Mendes, foram suficientes para evitar a entrega do monumento aos antigos proprietários (já devidamente restaurado graças ao investimento público), conjuntamente com a devolução da Herdade...
A
Arqueologia e a Reforma Agrária
apontamentos para o registo de um “desencontro”
histórico
Apesar de alguns sintomas de mudança que haviam
acompanhado a tímida abertura cultural e social da época marcelista, a
Arqueologia era no nosso país às vésperas do “25 de Abril”, uma actividade
quase residual, tanto no contexto do ensino superior e da investigação
científica, como no da política cultural do Estado Novo. A pouca investigação
produzida, desfasada dos avanços teóricos e metodológicos verificados no
pós-guerra por toda a Europa, dependia praticamente da iniciativa e até dos
meios pessoais de alguns arqueólogos, normalmente “amadores” e de formações
académicas ou actividades profissionais muito diversas. Do ponto de vista da política
patrimonial, este era um domínio que pouco motivava o aparelho de estado,
prioritariamente interessado na conservação e promoção dos grandes “monumentos”
que pelo seu significado histórico ou valia estética mais podiam contribuir
para a exaltação patriótica primária usada como instrumento de controle
ideológico e político. Para além de um quadro legal obsoleto remontando aos
anos 30 e que, no que respeitava aos bens arqueológicos, privilegiava antes de
mais a acção recolectora a favor do Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia,
não existiam quaisquer meios concretos de actuação tanto ao nível da prevenção
como da salvaguarda.
No entanto, justifica-se, até
pelo que representou de novidade absoluta e de contraste perante o vazio no
resto do país, referir a actividade arqueológica realizada no início dos anos
70 no contexto do projecto da “Área de Sines”, acção que nos seus últimos anos
acompanha já cronologicamente os primeiros anos da Democracia. Projecto
“bandeira” da política económica marcelista, o empreendimento industrial de Sines
implicava um vasto plano de obras concentradas numa faixa de território
costeiro do Alentejo, incluindo a construção de um grande complexo portuário,
novas infra-estruturas urbanas e industriais bem como as respectivas vias de
acesso. Tratava-se de uma grande operação de planeamento e intervenção
territorial no qual eram inevitáveis os impactes negativos sobre os potenciais
vestígios arqueológicos da zona do projecto. Só compreensível no contexto da
tímida evolução cultural e científica da fase pós-salazarista, e tirando
partido do modelo centralista e planificado do projecto de desenvolvimento em
causa, foi em 1972 posto em prática um inédito programa de intervenção
arqueológica de natureza preventiva ou de “salvamento”.
Esta excepção permitiria enquanto durou (até 1977), mostrar como a oportunidade
da realização do reconhecimento arqueológico sistemático dum território, desde
que acompanhado por medidas concretas de intervenção de campo, acaba quase
sempre por se traduzir em resultados importantes do ponto de vista da
transformação do conhecimento científico e da cultura. No caso concreto do
Gabinete da Área de Sines, esse contributo revelou-se particularmente
significativo no domínio da Pré-história Recente, proporcionando, por exemplo,
novos dados que permitiram a elaboração de todo um modelo explicativo coerente
sobre o desenvolvimento das primeiras comunidades camponesas nesta região, um
tema que nos parece particularmente oportuno aqui recordar.
Os primeiros agricultores
alentejanos
A descoberta e estudo de
diversos sítios na costa alentejana com padrões culturais semelhantes, quer na
escolha da localização e estruturação do habitat, quer ainda na
composição do “pacote” artefactual, mas
revelando uma clara sequência evolutiva ao longo do VI Milénio a.C. (6000 a
5000 aC) entre vestígios de grupos humanos ainda “caçadores-recolectores
mesolíticos” e de grupos já “neolíticos, sedentários e produtores de
alimentos”, sugeria que se poderia estar perante comunidades que tinham
elas próprias protagonizado essa transformação crucial que Gordon Child chamou
com grande oportunidade de “Revolução Neolítica”. Segundo sugere este modelo
interpretativo, a apropriação das novas tecnologias, como a cerâmica e pedra
polida, e dos novos processos produtivos, como a agricultura e o pastoreio,
ainda que influenciada através de um lento e progressivo processo de
aculturação iniciado um milénio antes no Mediterrâneo Oriental, ter-se-ia dado
preferencialmente no seio de comunidades localizadas junto à costa,
nomeadamente em ambientes de estuário. Tais zonas terão proporcionado condições
especialmente propícias à mudança, quer esta fosse de origem endógena e
induzida pela especial diversidade de recursos exigindo uma maior capacidade
adaptativa, quer esta fosse exógena, facilitada por uma incipiente navegação
costeira. Posteriormente, a partir dos estuários e seguindo o curso dos vales
dos maiores rios, as novas aquisições técnicas e os novos meios de produção
ter-se-iam, progressivamente expandido ao interior Alentejano. A presença de
importantes comunidades Neolíticas em todo o Alentejo, há muito que era
inferida, dada a importância excepcional do fenómeno megalítico na região,
representado em particular por centenas de “antas” formando amplas necrópoles
pré-históricas, objecto de interesse e estudo, pelo menos desde meados do
Século XIX. No entanto, desconheciam-se os povoados dos construtores de
megálitos, o que decorria fundamentalmente do atraso da pesquisa e da ausência
de projectos de investigação de âmbito territorial que acompanhassem de perto
as sucessivas transformações que a terra alentejana ia sofrendo. De facto, só
nos últimos anos, graças sobretudo ao desenvolvimento da componente
arqueológica dos estudos de impacte ambiental, foi possível dar sequência às
descobertas da zona de Sines e começar a perscrutar as origens e consolidação
das primeiras comunidades camponesas em muitas regiões do Alentejo. Não deixa
de ser sintomático que significativos contributos neste domínio, se tenham
verificado, como há três décadas, no quadro de um outro grande projecto de
desenvolvimento, devidamente enquadrado do ponto de vista da arqueologia
preventiva, o projecto de Alqueva. Apesar de algumas dificuldades decorrentes
das hesitações políticas que rodearam durante anos a fio a concretização
daquele Empreendimento,
acabaram por ser criadas na sua fase final as condições que permitiram concluir
o reconhecimento sistemático de um sector importante do vale Guadiana, entre o
Ardila a Sul e o Caia a Norte, uma área particularmente sensível. Essas
circunstâncias permitiram identificar centenas de novos sítios arqueológicos,
uma boa parte dos quais com interesse directo para a temática da Neolitização e
cobrindo todas as grandes fases do processo, desde o final dos tempos
Paleolíticos até ao aparecimento e desenvolvimento dos grandes povoados
fortificados da Idade do Cobre. Assim e independentemente das grandes
transformações neolíticas serem interpretadas enquanto processo puramente autóctone
ou, pelo contrário, um fenómeno induzido pela chegada de populações
mediterrânicas, como alguns autores actualmente defendem, podemos afirmar com
toda a segurança, que a introdução da agricultura no Alentejo se faz ao longo
do litoral alentejano no VI Milénio e que no milénio seguinte tal prática
estava já claramente implantada no interior, em particular ao longo dos vales
dos grandes rios, como o Tejo, o Sado ou o Guadiana, graças a pequenos grupos
agro-pastoris já portadores das novas tecnologias mas ainda parcialmente
dependentes da caça e da pesca. Estaríamos perante uma população pouco densa,
organizada em pequenos núcleos familiares, com mobilidade no interior de
territórios que conheceriam bem e que explorariam através de uma agricultura de
subsistência associada ao pastoreio de ovinos, caprinos e bovídeos. Este
sistema agro-pastoril consolida-se durante o IV Milénio, período em que perante
a intensificação da exploração do território e um aumento gradual da população,
se terá assistido a uma primeira grande alteração do coberto vegetal florestal
por acção do próprio homem que tende a fixar-se num determinado território,
escolhendo pontos dominantes de fácil controle visual para implantar os seus
povoados e abrindo caminho para o posterior desenvolvimento das primeiras
aldeias fortificadas já da Idade do Cobre (III Milénio A. C.). Em paralelo ao
processo de expansão e consolidação das comunidades agro-pastoris, reforçando
os laços de dependência dentro do grupo no qual se complexifica o sistema de
relações parentais, assiste-se ao aparecimento das primeiras formas de culto
dos antepassados, de que as “antas”, enquanto túmulos individuais ou
colectivos, representam um vestígio material claramente destacado na paisagem.
A implantação e distribuição no território destes monumentos, especialmente
densos nalgumas regiões do Alentejo, associada a outras manifestações
megalíticas, não parece ser aleatória, sendo entendida como a primeira grande
manifestação de controlo do espaço vital pelas comunidades responsáveis pela sua
construção.
O aprofundamento dos
conhecimentos neste como em muitos outros domínios da nossa história remota
dependerá, no entanto, cada vez mais de uma apropriação cultural do território
na sua globalidade, assumido como um bem colectivo, intemporal, indispensável
não apenas à satisfação das nossas necessidades físicas actuais ou futuras mas
também como uma arquivo precioso herdado dos nossos antepassados de cuja
decifração e entendimento, depende também afinal a construção e aprofundamento
da nossa consciência social enquanto espécie pensante. Embora, actualmente,
haja a tendência para relativizar, por vezes em excesso, a questão da
propriedade ou da tutela do património,
sabemos como na prática as questões da titularidade são afinal determinantes
sempre que estão em jogo interesses contraditórios, particularmente de natureza
material. Tendo em conta, as alterações sociais no regime de propriedade e
consequentemente na relação com a terra verificadas no contexto do processo da
Reforma Agrária, ter-se-ão verificado alterações comportamentais quer nos
agentes da época mais relacionados com o património da região quer das
populações rurais como actores preferenciais no processo, no sentido de um
maior interesse ou preocupação com os vestígios do passado, pelo menos os mais
óbvios, localizados nas herdades intervencionadas?
Património cultural e consciência social
Ainda que apenas a partir de conjecturas empíricas e
algumas recordações pessoais, pode afirmar-se que no intenso e generalizado
debate que se seguiu ao 25 de Abril, salvo raras excepções em âmbitos
restritos, nomeadamente a nível universitário, ainda não havia espaço para as
preocupações sociais com o património cultural. Antes de mais porque as
prioridades da agenda política eram obviamente outras e bastante mais
prementes. Mas também porque os efeitos decorrentes da evolução dos conceitos
de património, nomeadamente após a aprovação da Carta de Veneza (1964) que
contradiziam em absoluto a política oficial consubstanciada nas intervenções da
DGEMN (Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais) quase não tinham
chegado a Portugal, como bem recordou Michel Giacometti. “O Estado fascista
deixou que se deteriorasse parte substancial do nosso património
arquitectónico, erudito e popular, civil e religioso e, nos raros casos em que,
neste domínio, meteu mãos à obra, preocupou-se em absoluto com o chamado
património nobre, ou seja, aquele que requeria a sua intervenção por razões
sobretudo de mistificação histórica ou propaganda política.”
Num primeiro momento de descompressão cultural, assistiu-se mesmo da parte de
certos sectores, a uma reacção de desvalorização, se não mesmo de rejeição
quase iconoclasta, relativamente a determinados monumentos históricos em face
da sua abusiva apropriação ideológica pelo velho regime. Essa reacção natural
contra os símbolos mais directamente associáveis ao Estado Novo, fenómeno que
se manifestou nos mais diversos campos da vida político-social da época, viria
a encontrar algum paralelismo na atitude anti-centralista que entretanto se
manifesta a nível regional ou local. Mas aí, pelo contrário, o “património
cultural”, mesmo o tradicionalmente desprezado ou ignorado pelo Estado por não
corresponder aos padrões de avaliação estética “oficiais”, passa a ser destacado
e valorizado como contributo essencial para a definição de uma identidade
cultural própria, assumida como fundamento e justificação da almejada
emancipação política, económica e social. Significativamente, antes mesmo de o
Estado central ser capaz de reorganizar e adequar as suas débeis estruturas
patrimoniais às transformações políticas do “25 de Abril”,
nascem e prosperam múltiplas “associações locais de defesa do património
cultural”. Apesar de se tratar essencialmente de um movimento de raiz urbana e
intelectual, não deixa de ser significativo que o mesmo se desenvolva
prioritariamente em localidades periféricas em relação aos grandes centros
metropolitanos. É o caso das associações surgidas logo a partir de 1975 em
Alcobaça, Santarém, Braga, Tomar ou Setúbal, e que irão, de algum modo, liderar
este movimento associativo que conheceria a sua máxima força no início da
década de 80. Por
outro lado, reflectindo os novos conceitos de património e as novas correntes
científicas avidamente sorvidas do estrangeiro, teve também um especial
significado que estas associações assumissem sem reservas um conceito
abrangente de património, integrando desde logo as componentes ambiental e
natural nas suas preocupações estatutárias. Esta concepção original que, infelizmente,
se viria em grande parte a perder,
conferia à questão da “salvaguarda do património” uma muito especial relevância
política no contexto então prioritário da luta pela melhoria da qualidade de
vida das populações, questão que viria pouco a pouco a ser assumida pelas novas
autarquias, ainda que com concepções e abrangências culturais muito
diversificadas. Não deixa de ser também sintomático que a “Campanha Nacional
para a defesa do Património”, promovida pelo Estado no ano de 1980 e que
culminou com a criação do IPPC (Instituto Português do Património Cultural),
tenha ocorrido na sequência do I Encontro Nacional das Associações do
Património Cultural e Natural realizado em Santarém, em Fevereiro desse
mesmo ano, numa altura em que estavam recenseadas mais de uma centena de
associações deste tipo, de Norte a Sul do País. Infelizmente, este movimento
que ainda realizaria outros encontros nacionais (Braga, 1981, Torres Vedras,
1982 e Setúbal 1983) iria perdendo ao longo da década de 80, grande parte do
seu inicial fulgor, ao mesmo tempo que, face às crescentes preocupações
ecológicas, as associações prioritariamente ambientalistas ganhavam crescente
peso e protagonismo. No entanto, no seu curto período de relativa influência
social, no que respeita concretamente ao Alentejo, terá chegado a haver alguma
actividade das associações locais de defesa do património que pudesse, de forma
directa ou indirecta, ter influenciado a acção das cooperativas agrícolas no
sentido de precaver ou salvaguardar eventuais interferências negativas com o
património cultural e particularmente com o arqueológico? O enunciado que
seguir fazemos de algumas situações concretas de que obtivemos notícia ou
registo, aparentemente não perspectivam qualquer estratégia concertada nesse sentido.
Arqueologia nas terras
intervencionadas- encontros e desencontros
Na esteira de uma tradição de estudo arqueológico de
pendor regionalista que o arqueólogo Abel Viana fomentara em Beja,
materializada em especial através de uma revista (“Arquivo de Beja”) e
de um Museu Regional (“Rainha D. Leonor”), surge a seguir ao “25 de
Abril” uma associação de defesa do património que está na base da constituição
de um Gabinete para a Defesa e Estudo do Património Cultural (GADEPC).
Integrando jovens arqueólogos originários ou radicados na região, o grupo
torna-se responsável por algum trabalho de campo, sobretudo no âmbito da
prospecção arqueológica, abrangendo a sua actividade não apenas o concelho de
Beja mas também territórios de concelhos vizinhos. Como era comum a estes
grupos, o GADEPC integrava na sua acção preocupações de âmbito pedagógico e
social, organizando em 1978 uma importante exposição documental sobre a “Arqueologia
no Distrito de Beja” que viria a percorrer várias localidades da região.
Acompanhava a exposição um texto de apoio policopiado que logo no preâmbulo
revelava as motivações político-sociais dos respectivos autores. “(...)O
nosso esforço de divulgação de alguns dos resultados obtidos pela pesquisa
arqueológica no Distrito de Beja só terá significado se puder ser inserido na
luta, muito mais vasta, por uma ordem social mais justa, onde a ciência não
seja privilégio de alguns”. Aliás, o documento, de grande rigor científico
e teórico, apesar das preocupações de carácter divulgativo, mostra uma clara
orientação fundamentada no materialismo-histórico, abrindo com uma longa
citação de Gordon Childe,(1892/1957) arqueólogo britânico, conhecido pela
aplicação do paradigma marxista à investigação arqueológica. No entanto, apesar
da clara perspectiva social que os arqueólogos do GADEPC conferiam à sua
actividade, não há qualquer indício que aponte para uma articulação directa da
sua acção de campo com as numerosas cooperativas da região. Antes de mais, não
o esqueçamos, porque estamos a falar de arqueólogos amadores, agindo quase
exclusivamente com os seus próprios meios nos intervalos de outras actividades profissionais.
Mas também, porque a noção de uma arqueologia interagindo preventivamente com
as actividades económicas de impacte territorial, se bem que presente do ponto
de vista conceptual, era então ainda uma prática excepcional. Naturalmente,
algumas das prospecções realizadas por elementos do GADEPC realizam-se em
herdades ocupadas e, eventualmente, poderiam estar relacionadas com a intensificação
do trabalho agrícola em terras até aí abandonadas. Mas, mesmo que tal tenha
acontecido, não há referência de tal circunstância. Em todo o caso, e dado que
nalgumas situações concretas houve interesse ou possibilidade em ir além do
simples inventário e passar mesmo à escavação, a articulação com as
cooperativas responsáveis pela exploração das terras em causa, acabou por ser
inevitável. Dos registos que encontrámos podemos referir as escavações
realizadas em 1978 na Necrópole da Idade do Bronze da Herdade do Pomar
(Ervidel) envolvendo a cooperação do GADEPC com os arqueólogos Jorge Pinho
Monteiro e Mário Varela Gomes que haviam referenciado o interesse arqueológico
do local na sequência de trabalhos agrícolas mecanizados da responsabilidade da
respectiva cooperativa, os quais tinham posto a descoberto lajes denunciando a
existência de uma necrópole de cistas, em cujo contexto foi entretanto
descoberta uma importante estela funerária decorada.
Segundo testemunho pessoal do arqueólogo Rui Parreira, membro do GADEPC e um
dos intervenientes nesta escavação, os trabalhos arqueológicos foram
programados e concretizados para o período entre a colheita e a nova sementeira
de modo a minimizarem-se os prejuízos agrícolas resultantes da intervenção
arqueológica, tendo os “cortes” abertos sido reentulhadas logo de seguida. Não
por razões de conservação ou salvaguarda de eventuais vestígios ainda
preservados “mas porque qualquer palmo de terra era útil e necessário para a
batalha da produção”. A colaboração com a cooperativa passou ainda pela
cedência de trabalhadores auxiliares para as escavações, aproveitando
possivelmente o período de menor exigência de mão de obra para os trabalhos
agrícolas. No ano seguinte (1979) Rui Parreira e o GADEPC viriam a estar também
envolvidos em escavações no chamado Serro de São Brás, Serpa,
povoado do Calcolítico e da Idade do Bronze localizado em terrenos ocupados
pela UCP Margem Esquerda, na altura incultos porque sobre os mesmos
pendia já um pedido de reserva por parte do antigo proprietário. Estas
escavações contaram com o apoio logístico do Centro de Cultura Popular
de Serpa que funcionava então num casarão ocupado do centro da vila de Serpa, e
que era propriedade de Barros e Sá, conhecido lavrador e coleccionador de
antiguidades. Como era comum nesta época noutras zonas do país, a associação
tinha uma secção de Arqueologia com actividade de prospecção desenvolvida por
amadores na área do concelho.
Naturalmente, as escavações em terras ocupadas não se
limitaram à região de Beja. Carlos Tavares da Silva relatou-nos um episódio
datado de 1981 de colaboração do Museu de Arqueologia e Etnografia de Setúbal,
com a “UCP Che Guevara” de Alvalade, envolvendo a identificação e
escavação do sítio arqueológico neolítico que ficaria conhecido como “Herdade
da Gaspeia”. Esta descoberta deve-se inteiramente aos respectivos trabalhadores
que ao prepararem terrenos para o plantio de tomate, encontraram e recolheram
diversos materiais pré-históricos que entregaram na Casa do Povo de Alvalade do
Sado, entidade que por sua vez contactou com o Museu de Setúbal. Interrompidos
os trabalhos agrícolas a pedido dos arqueólogos do Museu, logo naquele ano
(Outubro de 1981) se realizaram escavações que confirmaram o interesse
científico do local. Segundo recorda
Carlos Tavares da Silva, a zona considerada como de interesse arqueológico
ficou depois sob “reserva” por proposta do Museu, deixando de ser cultivada
enquanto durou a UCP. Infelizmente, por falta de interlocutores igualmente
diligentes da parte da Arqueologia, nem sempre as coisas funcionavam assim. A
antiga revista “Informação Arqueológica”, no seu número 1 referente a 1977/78,
dá conta através de nota de um já desaparecido “Centro Elvense de
Arqueologia”, de uma situação bem diferente. No Monte da Alfarófia, próximo
do Caia, um terreno onde estavam identificados vestígios de uma estação romana,
eventualmente uma “villa”, e que por esse motivo durante 20 anos estivera
interdito à prática de quaisquer actividades agrícolas, passara de novo a ser
agricultado com grande prejuízo para os vestígios arqueológicos. Tal
circunstância terá ocorrido a partir do momento em que a respectiva herdade,
propriedade do Estado, passara a ser administrada pela Comissão de
Trabalhadores. Mas
o caso paradigmático desta deficiente circulação da informação, ou melhor, da
notória incapacidade das instituições para encontrarem as respostas adequadas a
estas situações, pode ser exemplificado pelo caso da estátua de bronze romana,
descoberta durante trabalhos agrícolas em 1976 na Herdade das Oliveiras, na
altura integrada na Cooperativa Agrícola Unidade dos Trabalhadores de São
Manços. Tratava-se de uma estátua romana, de época flaviana (2ª metade Século I
dC), com 72 cm de altura, de grande qualidade artística, e sem dúvida, no seu
género, uma das mais belas peças clássicas do território português. Encontrada
noutras circunstâncias e considerando o seu elevado valor comercial, é bem
possível que acabasse por ser desviada clandestinamente para o mercado
internacional de antiguidades, ocultando-se, como é habitual, as condições e o
local do achado. No entanto, por estranho que pareça e apesar da sua descoberta
ter sido divulgada na altura, pelo menos a nível regional,
a estatueta acabaria por ficar esquecida durante década e meia num armário dos
humildes escritórios da Cooperativa em S.Manços.
Não só as condições físicas em que a peça se encontrava, colocavam graves
problemas de conservação e segurança como, ao contrário do que aconteceu em
Beja no caso da “estela de Ervidel”, se comprometeram as possibilidades de
esclarecer as condições do achado que permitiriam a sua melhor contextualização
histórica.
Quando em 1988 os serviços da Secretaria de Estado da Cultura procuraram
finalmente encontrar uma solução que salvaguardasse os interesses patrimoniais
em causa, acabaram por deparar com alguma resistência, quer por parte dos
trabalhadores que ainda integravam a UCP, quer por parte da própria população
de São Manços, que viam nessa atitude mais um acto de esbulho patrimonial por
parte do poder central. Foi necessária alguma diplomacia para finalmente em
1991 a estátua ser entregue aos cuidados do laboratório de restauro do Museu de
Conimbriga, nos termos de um acordo firmado com os representantes da UCP e
segundo o qual, uma vez restaurada esta seria depositada no Museu de Évora,
sendo produzida uma cópia para ser exposta na localidade de São Manços. Tanto
quanto sabemos, ainda que com algum atraso, os termos do acordo foram
entretanto cumpridos continuando, no entanto, por esclarecer o exacto contexto
arqueológico da descoberta.
Os sítios arqueológicos e a
propriedade da terra
Para além da componente de arqueologia de emergência
ou salvamento a que os casos referidos aludem e cuja amplitude terá ficado
muito aquém do que um movimento deste tipo teria noutras circunstâncias
implicado, não poderemos ainda ignorar as novas condicionantes trazidas à
gestão patrimonial, uma vez que importantes sítios e monumentos arqueológicos
alentejanos, classificados ou não, estavam localizados em propriedades cuja
ocupação lhes havia conferido um estatuto público. Tendo em conta a consulta a
dados disponíveis nos arquivos do IPPC/ IPPAR, poderemos referir alguns casos.
Regressando desde logo à zona de Beja podemos começar por recordar os
importantes campos de trabalho internacionais organizados pelo próprio GADEPC
no final dos anos 70 nas ruínas da “Villa Romana dos Pisões” localizada
na Herdade da Almocreva então intervencionada mas sob administração da
Universidade de Évora. Para além do envolvimento nos trabalhos de escavação e
restauro, principal motivo do campo de trabalho, aos jovens vindos de vários
países eram proporcionados “contactos com as realidades económicas, sociais
e culturais da região, nomeadamente através de visitas a UCPs, cooperativas e
explorações agrícolas”, conforme se pode ler em notas de imprensa da época.
O interesse pelas “villae”, as grandes
casas de campo da Época Romana, representado noutras importantes estações
arqueológicas alentejanas, tinha antigas motivações que, pelo seu significado,
vale a pena recordar no presente contexto. O sítio arqueológico paradigmático
é, sem dúvida, representado por “Torre de Palma”, localizado próximo de
Monforte e identificado nos anos 40. Para além da descoberta de muros e pedras
trabalhadas, o que terá motivado o especial interesse dos proprietários,
grandes latifundiários da família Falcão, terá sido a descoberta de diversos
painéis de mosaicos. Avisado o próprio Manuel Heleno, o todo poderoso director
do Museu Nacional de Arqueologia e Catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa
que desenvolvia outras pesquisas na região, este promoveu com a colaboração dos
proprietários, grandes escavações no local que culminam com a descoberta de
várias salas decoradas com pavimentos de mosaicos, alguns de grande valia
artística, nomeadamente os chamados “Mosaicos das Musas” e dos “Cavalos”.
A aparente boa relação entre Manuel Heleno e os proprietários, deve ter
facilitado o levantamento e depósito dos mosaicos mais valiosos em Lisboa, no
Museu Nacional, assumindo a intervenção arqueológica de Torre de Palma,
uma das maiores escavações realizadas durante o Estado Novo, um cariz
inequivocamente ideológico.
Com efeito, era tentador estabelecer uma conexão quase directa entre a “villa”
romana e o “monte” alentejano, justificando-se arqueologicamente a
inevitabilidade e perenidade do grande latifúndio. Mais tarde, ainda antes do
25 de Abril, o Estado viria a negociar, em conjunto com várias jóias romanas,
conhecidas como “Tesouro da Lameira Larga”, descobertas noutra propriedade da
Beira Baixa pertencente à mesma família Falcão, a compra do perímetro das
ruínas, desanexando-as definitivamente da actividade agrícola. A posterior
ocupação da Herdade e constituição de uma UCP com sede no Monte da Torre de
Palma, veio facilitar o retomar de trabalhos de investigação e de salvaguarda
já em plenos anos 80. Com efeito as equipas de arqueologia, nomeadamente a
equipa da americana Stephanie Maloney que aqui desenvolveu importantes
investigações, contaram sempre como o apoio logístico da UCP, recorrendo às
dependências do chamado “palácio” que a cooperativa não utilizava, para
alojamento e trabalho. Mais tarde, já no final dos anos 80, até porque a UCP
foi uma das últimas a desaparecer, contrariando enquanto pode a política
asfixiante da imposição de “reservas” através de um plano de aquisições de
terras, chegou a ser equacionada pelo IPPC a possibilidade de instalação no
próprio Monte, em cooperação com a UCP, de um centro de acolhimento e de
interpretação para as ruínas romanas, projecto entretanto abandonado após a
extinção da cooperativa.
O caso de Torre de Palma, remete-nos para a
atitude dos grandes latifundiários face ao património arqueológico
eventualmente existente nas suas propriedades e que não parece obedecer a
padrões específicos, decorrendo antes de mais da preparação e posicionamento
cultural dos mesmos. Podemos citar alguns exemplos e outras tantas
interrogações. Porque razão as ruínas da cidade romana de Amaia (Aramenha,
Marvão), reveladas por Leite de Vasconcelos no final do Século XIX, apesar de
classificadas como Monumento Nacional nos anos 40, estiveram sempre fora do
acesso dos investigadores?
Teria a ver, como consta, com o peso social ou político dos antigos
proprietários, os Condes de Monsaraz, avessos a qualquer intromissão estranha
nas suas propriedades? Por outro lado, porque é que, apesar de todas as
facilidades e mesmo apoios concedidos pela Casa Cadaval, para estudo dos
Concheiros Mesolíticos de Muge (Salvaterra de Magos), estes sítios arqueológicos
nunca tenham sido objecto de classificação apesar de _ até às descobertas do
Côa_ serem dos sítios portugueses mais conhecidos no mundo científico
internacional? Desleixo por parte da administração competente ou pouca vontade
em afrontar alguns poderes ou interesses particulares?
No entanto, nem sempre o Estado Novo demonstrou
complacência no domínio da política de salvaguarda do património arqueológico
relativamente aos interesses dos proprietários, como se prova com o caso da
Gruta do Escoural, descoberta em Abril de 1963, na Herdade da Sala em
Montemor-o-Novo, durante trabalhos de exploração de uma pedreira de mármore,
devidamente licenciada. As condições excepcionais do achado e sobretudo a
grande curiosidade pública, dada a rápida divulgação por um correspondente
local do Diário de Notícias, atraíram a atenção de Manuel Heleno, o Director do
Museu Nacional que enviou ao local o seu assistente Farinha dos Santos. Este
fez interromper os trabalhos da pedreira e impedir o acesso dos curiosos, conseguindo
deste modo preservar um sítio arqueológico que se viria a revelar de
importância excepcional com a descoberta das primeiras pinturas e gravuras
rupestres em território português atribuídas ao Paleolítico Superior.
Até aqui tudo exemplar, embora algo condicionado pelo interesse pessoal destes
arqueólogos e deveras facilitado pelo “peso político” de ambos. A gruta viria a
ser classificada como Monumento Nacional num prazo “record” de seis meses
e aberta ao público, ainda que em condições absolutamente precárias com a
contratação local de um guarda pago por verbas do próprio Museu.
Da consulta do processo da antiga Junta Nacional de Educação concluímos que o
advogado dos proprietários da Herdade da Sala onde se localizava a Gruta, ainda
requereu, nos termos da lei, que o local fosse expropriado e a paralisação da
pedreira devidamente indemnizada, até porque estavam em causa, conforme então
alegou, diversos postos de trabalho. No entanto, tais esforços foram
infrutíferos sem que chegasse sequer a obter uma resposta aos sucessivos
requerimentos. Quando, uma década depois a Herdade da Sala foi ocupada pelos
trabalhadores agrícolas do Escoural, e integrada na UCP local, a situação
mantinha-se exactamente na mesma. Os serviços de arqueologia do IPPC, assumindo
integralmente a natureza pública do espaço arqueológico, limitaram-se então a
definir a zona de interesse arqueológico e a proceder à sua vedação,
introduzindo progressivamente algumas melhorias nas condições de visita,
paralelamente ao desenvolvimento de novos projectos de investigação, quer no
interior da Gruta quer num povoado identificado no seu exterior. Dada a
natureza tão específica deste sítio arqueológico, sem qualquer interferência
com a exploração agrícola, nunca houve da parte da UCP qualquer envolvimento
directo nestas acções. Essa articulação passou sempre antes de mais pelo
especial interesse e motivação quer da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo quer
da Junta de Freguesia do Escoural.
Não muito longe da Gruta do Escoural, mas já em terras
do concelho de Évora e próximo da localidade de Guadalupe, localiza-se um
grande recinto megalítico, conhecido como “Cromeleque dos Almendres”,
actualmente um dos monumentos pré-históricos mais visitados no território
português. Embora a sua identificação científica só tenha ocorrido nos anos
sessenta, já estava referenciado há bastante tempo pela população local como o
sítio das “Pedras Talhas” e o próprio proprietário, o conhecido agrário Miguel
Fernandes Soares, procedera alguns anos antes por iniciativa própria ao
levantamento de diversos menires,
conforme confessa a certa altura: “Há na Herdade dos Almendres” um conjunto
de pedras arredondadas que pela sua forma o vulgo designa pelas “Pedras
Talhas”, hoje classificadas de “cromelech” e “menir” e que, enquanto caídas no
chão ninguém via, e de depois de começar a ergue-las, todos as têm descoberto.
Há até tanta novidade nas descobertas que se esquece, ou desconhece, que já em
1893/94, quando a escassas centenas de metros das “Pedras Talhas” foi manteado
o terreno para plantação de uma vinha, se encontraram bastantes machados de
pedra cuja quase totalidade meu Pai deu com destino aos museus de Évora e
Lisboa” .
Reconhece-se nesta passagem um certo tom irónico que se confirma pela leitura
de outros documentos arquivados no antigo processo da Junta Nacional de
Educação e que mostra a relutância e, no mínimo, alguma má vontade, com que
este grande proprietário ainda hoje recordado pela população local pelo seu
temperamento difícil, acompanhou os primeiros trabalhos realizados por Henrique
Leonor de Pina no final dos anos sessenta.
Na sequência destas investigações foi possível desencadear o respectivo
processo de classificação que, no entanto, seria concluído já depois do 25 de
Abril com a publicação em Diário da República em Dezembro de 1974. Mesmo com os
problemas ou dificuldades colocados pelo proprietário entretanto ultrapassados
pela ocupação da Herdade e o reconhecimento da sua importância cultural
estabelecido através da classificação legal, só a partir de 1981, após a
criação dos Serviços Regionais de Arqueologia, a situação deste monumento
começaria a interessar as entidades responsáveis pelo património. Seria, no
entanto, a Câmara Municipal de Évora, com a colaboração e o apoio da UCP de
Guadalupe, que viria a assumir os custos da resolução dos problemas de acesso,
que condicionavam todos os outros. De facto, para permitir a visita turística
ao monumento, foi necessário construir um estradão com meia dezena de
quilómetros, entre Guadalupe e o Cromeleque, atravessando parte da Herdade.
Esta obra, uma vez concluída, teve resultados práticos evidentes. Por um lado
facilitou a realização de novas escavações e trabalhos de restauro, dirigidos
no final dos anos 80 por Mário Varela Gomes com os apoios financeiros da
autarquia e logístico da UCP.
Por outro lado, ficaram criadas as condições objectivas para integração deste
monumento, conjuntamente com a vizinha Anta Grande do Zambujeiro numa “rota megalítica” cada vez mais
procurada pelas centenas de milhares de turistas que visitam Évora todos os
anos, em particular a partir da sua integração na Lista do Património Mundial
da UNESCO (1986).
Finalmente, a oportuna construção da referida estrada, com a total conivência
da cooperativa, evitou que, anos mais tarde, uma vez devolvida a Herdade aos
antigos proprietários, estes acabassem por impedir o acesso ao monumento, sob o
argumento de devassa da propriedade, como aliás ainda tentaram, sem êxito.
Aliás, o caso do Cromeleque dos Almendres, dada a sua importância científica e
patrimonial, especialmente potenciada devido aos importantes investimentos
públicos concretizados na sua recuperação, quer ao nível da investigação quer
da salvaguarda, viria a servir de teste quanto ao posicionamento do Governo no
final dos anos oitenta, relativamente o respectivo entendimento de interesses
público no caso do património arqueológico.
Em 7 de Julho de 1989, os deputados Lino de Carvalho
e José Manuel Mendes da bancada do Partido Comunista Português apresentaram na
Assembleia da República um requerimento sobre este assunto que merece ser
reproduzido na íntegra:
“Ex.mo Sr.
Presidente da Assembleia da República
Assunto: Afectação ao IPPC de Imóveis Arqueológicos
Classificados situados em áreas entregues como reservas ao abrigo da legislação
sobre a Reforma Agrária
1. No perímetro de áreas expropriadas ou
nacionalizadas ao abrigo da legislação sobre a Reforma Agrária encontram-se
várias estações, imóveis e outros monumentos arqueológicos classificados.
2. No quadro de uma alegada aplicação da Lei,
actualmente a Lei 109/88, estão a ser entregues a título de reserva, a diversos
proprietários, áreas de terrenos onde se situam alguns desses monumentos.
3. Em muitas dessas zonas foram, inclusivamente
feitos investimentos em pessoal e infraestruturas pelo Estado e as autarquias
para dispopnibilizar à fruição pública os monumentos aí existentes. Entre
outros estão nessas condições a Gruta do Escoural, no concelho de
Montemor-o-Novo e o Cromeleque dos Almendres, no Concelho de Évora.
4. No processo de demarcação de “reservas” e a
afectação aos reservatários de áreas expropriadas e nacionalizadas devem ser
criadas as condições que permitam salvaguardar o domínio público sobre os
imóveis arqueológicos e a sua fruição pública.
5. Não se entenderia, aliás, que outro fosse o
entendimento do Governo e “privatizasse” também tais monumentos.
Assim, nos termos Regimentais e Constitucionais
aplicáveis requerem-se ao Governo as seguintes informações:
a) Prevê o Governo a adopção de medidas legislativas
e práticas que permita manter no domínio público e afectas ao Instituto
Português do Património Cultural os imóveis arqueológicos classificados sitos
em áreas expropriadas e nacionalizadas e em vias de serem entregues como
reservas?
b) Que medidas pensa o Governo adoptar para se
manterem tais monumentos à fruição pública? “
Desconhecemos a resposta do Governo ao requerimento
dos Deputados mas existem registos nos arquivos do IPPC mostrando que o assunto
fora anteriormente objecto de estudo por iniciativa daquele organismo e que,
numa primeira instância, uma solução que defendia os interesses públicos em
causa merecera o apoio da então Secretária de Estado da Cultura, Teresa
Patrício Gouveia. Com efeito, tendo em conta o precedente que se havia
verificado em 1984 com as Ruínas da Villa Romana dos Pisões,
pertencentes a uma Herdade de Carolina Almodôvar, cujas parcelas haviam sido
desanexadas a favor do Estado, através da Universidade de Évora “para fins
de utilidade pública” ,
por proposta do IPPC, o Gabinete da Secretária de Estado da Cultura remeteu no
início de 1989 ao Ministério da Agricultura uma proposta concreta de
desanexação e afectação àquele Instituto de algumas estações arqueológicas, por
motivos de salvaguarda do interesse público, nomeadamente o Cromeleque dos
Almendres, a Gruta do Escoural e a Anta Grande da Comenda da Igreja.
Analisada a proposta nos serviços respectivos (Gabinete de Gestão e
Estruturação Fundiária, da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo)
estes limitaram-se a informar que todos os “ex-titulares dos prédios em
questão requereram a aplicação da sua reserva à Lei 109/88, aguardando a
análise dos respectivos processos, cujos requerentes poderão, eventualmente,
ver as suas áreas de reserva alargadas nos prédios em presença”. Como era
de esperar, o despacho do ministro da Agricultura, Álvaro Barreto, não foi
favorável à proposta da Secretaria de Estado da Cultura, e os sítios em questão
acabaram por regressar à posse dos anteriores proprietários.
A situação da Gruta do Escoural seria
resolvida quase uma década depois, através da aquisição pelo Estado duramente
negociada e com a qual, os herdeiros procuraram e conseguiram ser por fim
indemnizados, muito favoravelmente segundo consta, por alegadas perdas de
rendimento face à suspensão da laboração da antiga pedreira no longínquo ano de
1963. Os quase mil hectares da Herdade dos Almendres, incluindo os
classificados Cromeleque e menires (Almendres e Vale de Cardos), tal como tem
acontecido a muitas das propriedades da extinta Reforma Agrária, mudaram de
dono logo que apareceu um forasteiro com meios para corresponder às
expectativas financeiras dos herdeiros de Miguel Soares. O novo proprietário,
apesar de alguns excessos iniciais no acto de “vedar”, cortando ou lavrando
caminhos centenares, rapidamente se apercebeu que a solução inteligente, face à
insistente procura daqueles monumentos arqueológicos já mencionados em todos os
roteiros turísticos, passava pela colaboração com a Câmara Municipal no
encontrar de soluções que, sem pôr em causa a sua privacidade, facilitassem o
acesso público aos mesmos. Infelizmente, esta atitude não é hoje a mais comum,
e face à indefinição da Lei, o acesso a muitos monumentos arqueológicos do
Alentejo, mesmo os classificados, está cada vez mais dependente do humor dos
proprietários.
Interesses públicos, propriedade
privada
A posse pública da grande propriedade alentejana
verificada no curto interregno da “Reforma Agrária”, contribuindo pontualmente
para a resolução de algumas questões da salvaguarda do património arqueológico,
parecia proporcionar uma saída para a velha contradição entre o reconhecido
interesse público desse património e a sua efectiva posse privada, problema de
fundo da gestão patrimonial e que, tem sido abordado sob as mais diversas
perspectivas, na generalidade dos casos pouco satisfatórias ou, no mínimo,
pouco claras. De facto, tendo em conta a sua mais valia social ou colectiva, o
património arqueológico, móvel ou imóvel, é por tradição, e até certo ponto por
definição, considerado como algo independente da propriedade onde, por mero
acaso, se encontra “enterrado” e vem a ser ocasional ou intencionalmente posto
a descoberto. Adequando este princípio quase do senso comum à evolução do
próprio conceito de património arqueológico a que aludimos no início, o
património arqueológico, ainda que materializado em objectos ou estruturas,
passaria a integrar uma categoria quase imaterial de “recurso” colectivo, quase
como o ar que respiramos. Esta tradição talvez explique porque motivo os bens
móveis resultantes da actividade arqueológica, o chamado “espólio” descoberto
em prospecção ou escavação, raramente tenham sido reclamados pelos
proprietários dos terrenos em causa, apesar do disposto no Código Civil sobre a
descoberta de “tesouros”.
Por essa mesma tradição, o acesso à visita ocasional de sítios arqueológicos,
desde que não interferindo demasiado com a privacidade ou os interesses
económicos dos proprietários, também raramente era impedido. De algum modo, a
Lei de Bases do Património Cultural, a célebre Lei13/85 de 6 de Julho, aprovada
por unanimidade e só recentemente revogada, parecia consagrar tal “tradição” no
seu Artigo 36º estabelecendo que “Os bens arqueológicos, móveis ou imóveis,
são património nacional”. Acontece
que, em face do crescente exacerbamento da defesa dos interesses privados mesmo
quando antagónicos aos interesses colectivos e o sacrifício de quase todos os
valores éticos ou sociais às sacrossantas leis do mercado, aquele princípio
legal começou a revelar-se demasiado difuso ou ambíguo. Não apenas em termos
técnicos como alguns juristas periodicamente vinham recordar
como, especialmente, em termos práticos, quando os tribunais na apreciação de
denúncias concretas de atentados contra bens arqueológicos bem identificados
mas não classificados, acabavam por arquivar os respectivos processos sob o
argumento de que, apenas face a “bens classificados”, seriam os actos em causa
passíveis de incriminação.
Ainda assim e apesar de todos os avisos e recomendações, a nova lei do
património (Lei 107/2001 de 8 de Setembro) não veio resolver o problema. Não só
manteve a tal “expressão” considerada ambígua como, ainda por cima, a
restringiu a uma parcela limitada dos bens arqueológicos, retirando-lhe
definitivamente o valor de princípio ético universal, ainda que juridicamente
impreciso. Reza assim o nº 3 do Artº 74 da nova lei do Património Cultural. “
Os bens provenientes da realização de trabalhos
arqueológicos constituem património nacional, competindo ao Estado e às Regiões Autónomas
proceder ao seu arquivo, conservação, gestão, valorização e divulgação através
dos organismos vocacionados para o efeito, nos termos da lei”. Por exclusão de partes, todo o
restante património arqueológico não classificado, conhecido ou desconhecido,
móvel ou imóvel, parece ficar à mercê da boa vontade ou dos interesses dos
proprietários ou usufrutuários dos terrenos onde estes porventura se encontrem.
Vale a pena comparar a situação com as disposições da legislação espanhola,
aprovada na fase inicial do Governo do PSOE, decisivamente mais clara neste
domínio, conforme se depreende do artigo 44º da Lei 16 de 25 de Junho de 1985:
“São bens do domínio público todos os objectos e restos materiais que
possuam os valores próprios do património histórico espanhol e que sejam
descobertos na sequência de escavações, remoções de terras ou obras de qualquer
índole ou por mero acaso (...)” O
mesmo articulado acrescenta ainda que o descobridor casual de um bem
arqueológico é obrigado a declarar o achado e que, nestas situações, nunca se
aplica a norma do Código Civil sobre “achados de tesouros” embora, para motivar
ao cumprimento da Lei, se estipule o pagamento de um prémio correspondente a
metade do eventual valor comercial do bem declarado. De facto, diz-nos a
experiência que nesta matéria, independentemente da maior ou menor rigidez da
lei, enquanto houver mercado (legal ou ilegal) para antiguidades, se revela
extremamente difícil evitar o extravio de objectos ou peças com valor monetário
as quais devidamente contextualizadas, poderiam ser fontes de informação
histórica preciosa. Assim, considera-se hoje que, mais do que resolver a questão da “propriedade” dos bens
arqueológicos, que varia muito de país em país em função da respectiva tradição
jurídica,
interessa criar mecanismos que promovam ou encorajem a “declaração” pública dos
eventuais achados, permitindo a intervenção dos organismos competentes da
Administração sempre que estejam em causa interesses públicos.
Em conclusão
Estamos pois, afinal, no que respeita ao tema a que
arriscámos abordar, perante um mais do que evidente “desencontro”. Entre uma
Arqueologia, que se pretende guardiã dos “arquivos da terra” mas à época
ensaiando em Portugal os primeiros passos de uma caminhada que apenas ao fim de
duas décadas a levaria à profissionalização e ao reconhecimento de hoje. E um
torrencial movimento social, a Reforma Agrária Alentejana, fortemente
politizado nos seus objectivos de transformação do regime latifundiário de
propriedade e de exploração da terra e no qual a premência da “luta pelo
trabalho e pelo pão” não deixava grande espaço para preocupações de âmbito
cultural, pelo menos na perspectiva subjacente às preocupações patrimoniais
aqui tratadas. A Arqueologia praticamente esteve ausente nesta fase de
intensificação e transformação das práticas agrícolas com potenciais impactes
negativos no subsolo alentejano, quer numa perspectiva preventiva, acautelando
pela prospecção, pela informação ou pela pedagogia o registo de eventuais
ocorrências, quer numa perspectiva de gestão e salvaguarda do vasto património
que, de um momento para o outro, passou a fazer parte “de facto” e sem
reservas, da herança colectiva do povo português.
Onde estava afinal, a Arqueologia quando os
camponeses alentejanos de 75 e 76 lutavam pelo primeiro e mais ancestral dos
bens patrimoniais, a terra, que na sua perspectiva lhes deveria garantir no
futuro, o trabalho, o pão e, finalmente o acesso à cultura? Recordámos como
alguns arqueólogos, mais próximos da realidade do terreno e mergulhados no
efervescente ambiente social e político da época, tomaram consciência da
importância e da necessidade da apropriação e fruição popular do património
cultural, incluindo os vestígios arqueológicos. Não tanto pelo seu valor
intrínseco, de ordem estético, histórico, ou mesmo identitário mas sobretudo
pelo reconhecimento do seu papel enquanto elementos demonstrativos do progresso
da Humanidade e da inevitabilidade do desenvolvimento social. No entanto, e
como parece também ter ficado demonstrado, à Arqueologia, após a longa
travessia do deserto salazarista, pouco mais restava então do que lançar
algumas sementes. O que é notável, e isso talvez ajude a explicar o rápido
crescimento da disciplina e o seu presente desenvolvimento, é que apesar do ambiente
de militância e urgência política poder não ser particularmente favorável, os
arqueólogos tenham desde logo compreendido e intuído a importância de aliar à
prática e aos objectivos sociais, as exigências e os rigores da metodologia
científica: “Não basta uma mera descrição, classificação dos achados e
atribuição de cronologias. Isso é fundamental para uma correcta abordagem
histórica, mas é necessário que os arqueólogos vão mais longe, colocando o seu
trabalho directamente ao serviço da transformação social. É necessário neste
caso, determinar a estratégia correcta a aplicar numa sociedade não
transformada e tentar elevar sempre o nível de consciência das populações,
desenvolvendo nelas um espírito crítico.”
Poderíamos concluir com algum realismo_ tendo até em
conta a situação de abandono de alguns sítios há muito na posse efectiva do
Estado_ que, sem uma profunda alteração de mentalidades e comportamentos e um
progresso generalizado noutros domínios sociais, não seria certamente a posse
pública da generalidade das terras alentejanas que teria automaticamente
resolvido os problemas da salvaguarda do respectivo património cultural, móvel
ou imóvel .
Mas, por outro lado, não podemos deixar igualmente de reconhecer que, o
retrocesso social verificado nos meios rurais do Alentejo, que se acentuou
dramaticamente com o fim das UCPs e das Cooperativas, trouxe novos problemas e
novas ameaças. O êxodo da generalidade dos trabalhadores rurais para as novas
migrações, esvaziou os campos alentejanos da sua principal riqueza patrimonial,
as pessoas e a sua cultura. Já nos referimos a outros impactes, decorrentes das
transferências de propriedade que se seguiram à Reforma Agrária. Em todos os
casos, as alterações provocadas no regime de exploração económica, da florestação
intensiva, à exploração cinegética ou turística, tiveram sempre como corolário
inevitável, a dispensa de mão de obra com o abandono progressivo dos montes e o
despovoamento acelerado das aldeias ou a sua transformação em esquecidos
“lares” da terceira idade. Em muitos casos, as vedações e cortes de caminhos,
alienando as populações já envelhecidas, da tradicional liberdade de circulação
ou acesso, quer para simples fruição cultural de sítios ou lugares _como as
capelas, as fontes, as ou as ribeiras_ quer até para fins de sobrevivência ou
complementaridade económica _recolha de matos e lenhas, pesca ou caça,
recolecção de cogumelos ou frutos silvestres_ representaram um rude golpe na
cultura popular alentejana
e, indirectamente, no património cultural, nomeadamente no arqueológico. Os
poucos trabalhadores que se empregam nas novas explorações agrícolas, guardas
da caça ou quanto muito pastores, são eles próprios quase sempre já deslocados,
sem qualquer ligação cultural ou afectiva aos novos espaços de actividade,
quando não são mesmo já, eles próprios novos emigrantes, chegados das mais
desvairadas paragens. Com efeito, com a partida ou alienação cultural dos mais
novos e a morte dos mais velhos, perde-se para sempre um capital insubstituível
de conhecimentos e saberes práticos dos sítios e dos lugares, produto de muito
tempo passado no trabalho do campo ou de histórias antigas ouvidas aos mais
velhos.